sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

ZÉ BOSTINHA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Manhã do fim de setembro. Manhãzinha de vento ainda fresco, quase frio, para o gosto dos sertanejos. Um galo cantou daqui; outro galo cantou dali; outro mais cantou dacolá. A aurora tingia o mundo com as cores de um alvorecer primaveril. Primavera só no nome, porque dali a pouco daria lugar ao verão antecipado de todos os anos. Verão antecipado que começaria a queimar tudo, pastos e caatinga, o sol bebendo toda a água das cacimbas, dos poucos riachos que mal mourejavam e dos açudes.

José Ferreira Barbosa de Aleixo, ou Zé de Ferreirinha do finado João do Mulungu, passou pela casa do Dr. Alcides Mamede, único advogado num raio de quinze ou mais léguas, metido na política local e, diziam as más línguas, na criminalidade de mortes matadas. Não era advogado de formatura, mas rábula provisionado. No entanto, doutor de nome e renome. Pai de dois filhos e de uma filha, todos adolescentes.

Zé de Ferreirinha olhou para dentro da casa de porta aberta. O olhar do rapazola pareceu entristecer-se por não ter visto o que esperava ver: a filha do doutor. E, assim, seguiu de rota batida para a pequena venda do pai, uma bodega num fim de rua. A filha do doutor vinha enfeitiçando o rapaz.

Tudo começou quando dançaram a quadrilha junina, na escola, sem, contudo, formarem um par. Num momento, os olhos de jaboticaba dela projetaram-se no fundo dos olhos dele. Foi o quanto bastou. Depois, conversaram algumas vezes furtivas. Engraçaram-se. Prometeram-se.

Línguas frívolas deram conta ao doutor de nome e renome que sua filha Maristela estava de conversê com o moço Zé de Ferreirinha, cujo pai era eleitor do lado de Jerônimo da Sapucaia, eterno adversário do lado no qual o tal doutor estava metido. Aí a garapa azedou para a mocinha, que foi chamada às falas. Uma surra de cinturão, que deixou marcas nas pernas. Proibição de voltar a falar com o rapaz.

E, pouco satisfeito, o doutor botou-se para o dito cujo. Um celerado acoitado pelo doutor botou tocaia naquele de coração derretido e o conduziu agarrado pela gola à casa do doutor. O que lá se passou, Zé de Ferreirinha nunca disse ao pai, nem a ninguém. Engoliu um sapo, que ficou atravessado entre a goela e o bucho.

Porém, espalhou-se na cidade que o doutor prometera dar cabo da vida do filho do bodegueiro, caso este insistisse em dirigir uma palavra à sua filha, ou lhe mandasse recado ou bilhete. E também se espalhou que o doutor chamou o rapaz de Zé Bostinha, apelido que ficaria na boca suja da escória. O apelido desgraçado ecoou pela cidade. Tornou-se praga.

Embora homem de paz, Ferreirinha, o pai, tinha um magote de parentes que se espalhavam por várias cidades e povoados do sertão. Um tio-avô, Zeca Ferreira, negociante de algodão, era afamado em causar rebuliço quando se metiam com os seus.

Desceu para Mata de Dentro onde morava o sobrinho-neto com uma cabroeira volumosa. Era um exército de mais de cem homens armados dos pés à cabeça. Dois caminhões Dodge entupidos. A cabroeira desceu na rua, em frente à casa do rábula provisionado. Teve gente que se borrou de medo diante de tamanho aparato. Zeca Ferreira, então, dirigiu-se ao rábula sem meias-conversas, nesse tom, curto e grosso: “Vim de longe para lhe dizer na taba de suas ventas que se tocar um dedo em gente minha, num Ferreira, nem o satanás vai lhe querer nas profundas do inferno, porque eu vou fazer de você e de sua gente um mingau de carne, osso e sangue misturados com terra. Eu sou Zeca Ferreira e esses são apenas uma terça parte do que eu tenho ao meu serviço. Já toquei fogo em povoado inteiro. Já fiz tremer prefeito e deputado. Já fiz coronel cagar nas calças para mais de quilo e meio. Não tenho sobrosso de nada nesta terra. Tocou no meu sangue, o inferno vem até você com enxofre e danação”.

Oh, dia abençoado!

Alcides Mamede encolheu-se como cobra sem peçonha. Enfim, encontrou uma baraúna prestes a lhe cair sobre a cabeça. Acalmou-se. Meteu o rabo entre as pernas. Na verdade, amofinou-se. Mas, também, vingou-se de Zé Bostinha. Maristela foi mandada para um internato na capital de outro estado.

Desgostoso, por não poder ter a única mocinha que lhe cativara o coração e desassossegara o quengo, meses depois o rapaz tomou o rumo de São Paulo, onde já estavam dois irmãos mais velhos. Lá ajeitou-se na vida, casou e constituiu família. Tornou-se próspero comerciante, no ramo de panificações. Comendador de duas Ordens oficiais. Tentou sepultar o passado. Havia coisas que facilmente se esqueciam. Outras, nem tanto.

Cinquenta e cinco anos depois, já setentão, viúvo, Zé Bostinha retornou a Mata de Dentro, onde só ficara uma irmã que também se encontrava em estado de viuvez. Margarida, a irmã, não cabia em si de tão contente com a volta do irmão. Tratou-lhe com mesuras só reservadas a um rei.

Dela, Zé Bostinha ouviu uma notícia desesperadora: Maristela maluquecera ainda no internato. Andava pelas ruas envergando um vestido de noiva, que de tempos em tempos ela mudava, cantarolando e dizendo coisas sem nexo. Zé Bostinha sentiu um aperreio no coração.

Ainda guardava na lembrança o rosto moreno daquela que lhe desassossegara, que chegou a pensar que com ela se casaria. Sentado numa rede, suspirou fundo. “Vida malvada, vida cruel”, pensou. Era um homem rico, viúvo. Voltara a sua terra depois de tantos anos para – quem sabia? – penitenciar-se da falta de coragem em não ter raptado a sua amada. Quem sabia, ela estaria viúva como ele, ou teria virado solteirona. Quem sabia, não poderiam se ajeitar, no fim dos seus dias? Esperanças perdidas. Ela tinha maluquecido.

Uns dias depois de sua chegada à cidade, caminhando no início da manhã, numa manhãzinha de vento fresco, quase frio, a primavera sertaneja soltando seus botões de flores de sucupira, paus-d’arco, marias-pretas, muricis, e outros tantos, dobrando a esquina da Rua do Xaxado com a Rua do Alvoroço, que, agora, se chamavam Dr. Fulano de Tal e Dr. Sicrano, eis que Zé Bostinha deparou-se com a maluquecida. Vestida de noiva. Um vestido branco, mas escurecido pelo tempo. Cantarolava. Dizia coisas sem nexo. Ele a avistara de longe. Parou. As pernas cambalearam. Quase tropeçara em si mesmo. O coração quase saiu pela boca. Após alguns instantes, avançou em sua direção.

Ao aproximar-se, ela o reconheceu. Parou a cantoria e as palavras sem nexo. Deixou cair um buquê de flores murchas. Tombou. Ele correu para socorrê-la. Tomou-a em seus braços. Ela chorou e soluçou. Um pranto mais do que sentido. Enlaçou-se nele. Proferiu o seu nome: “Zé!”. Estremeceu. Estava morta.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

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