José
Lima Santana*
–
Ô ruma de povo besta, meu Deus! Adonde já se viu dizer que um bicho vindo da
China vai dar de botar todo mundo pra bater a caçoleta? Só mermo na cacunda de
Belmiro de Chico de Maria, sujeitinho loroteiro que nem franga de primeira
postura, que desembesta a gritar assustando até cobra que é mouca das duas
oiças.
Pois
foi assim que Tunico de Zé Gamela de Tonho de Francisquinho danou-se a desdizer
o que o guarda sanitário Belmiro Alarico de Ferreira Fontes andava a alardear
pelos bares e mais lugares de Cancela do Rio Comprido, cidadezinha modorrenta
no encostado da Mata Grande, terra de moça bonita e homens descarreirados,
tantos que eram os afamados pistoleiros ali gerados, a despeito dos muitos
também tombados, podendo-se contar um magote infeliz de cruzes nas curvas de
muitos caminhos. Tocaias em tocaiadores. E assim aquele mundo perdido girava e
desgirava pela força do fogo expelido das armas.
Um
bicho da China metendo medo até no padre Marcão Guedes, das gentes lá dos
Guedes do Morro dos Macacos, lugar onde a bem dizer macaco nunca devera de ter
botado os pés. Pois então, o padre Marcão num chegou até a fechar a igreja de
Santa Luzia, protetora das vistas alheias, temendo que a desgraça do homenzinho
de olhos miúdos matasse as beatas e ele próprio?
Padre
sem fé. Desnaturado. Mais temeroso do que cavalo feridento no lombo, quando lhe
vão botar sela ou cangalha. Padre destemente a Deus. Descrente que nem um
herege que arrenegou a água da pia batismal. Um padre daquele nem padre devera
ser. E olhe que era uma toleba de homem de quase dois metros de altura,
parecendo um tronco de jequitibá lavrado. Cabra mal parido! Mal-empregado ser
padre.
Belmiro
era um quase doutor. Ele e Eduardo Rabelo de João de Tonca do finado Pedrinho
Bertioga, dono do arremedo de farmácia do lugar. Não havia médico que desse
batente na cidade, desde que o Dr. Lourival Pacheco por ali andejou há mais de
vinte anos, levado pelo sogro, que desta já se fora.
O
guarda sanitário receitava medicamentos do mato e de farmácia, competindo no
aviamento com Eduardo de João de Tonca. Eram amigos e compadres, mas falavam
mal um do outro, pelas costas. Na cidade apareceu, coisa de dois ou três meses,
um sujeitinho amarelado, de pouca tintura nas veias, olhinhos repuxados, miúdos
e rasos como uma poça de pouca água.
Arranchara-se
na casa de Dona Doninha, mãe de Fulgêncio sapateiro, cujo marido tinha sido um
temido matador, até ser tocaiado no caminho do Grotão, na curva da Mão da Onça.
Pois bem. Ali arranchado, o homenzinho de longo cavanhaque como uma tripinha de
fios mais negros do que as asas de um urubu, danou-se a tirar retratos de quem
podia pagar. Foi uma festa. Embolsou uma papelama em notas sebentas.
Na
falta de pensão na cidade, a casa de Dona Doninha fazia a serventia. Dá daqui e
dá dali, dá dali e dá dacolá o tal sujeito, que se dizia chinês, numa
linguazinha estranha, trocando os “erres” pelos “eles”, fez uma pequena fortuna
na tiragem de retratos. Todo mundo que tinha uns trocados na gaveta, no bolso
ou no colchão, não deixou de ser fotografado. Até Dona Doninha teve que pagar
pelo retrato. Nada demais, todavia. Então ela não cobrou pela estadia do
retratista? Cobrou de um lado, pagou do outro.
Foi-se
o chinês e o bicho ficou. Um bicho que entrava pelos gorgomilhos das pessoas,
estourando os foles da caixa dos peitos. Só podia ter sido herança do
retratista de olhos apertados. Afinal, ele tinha um puxá danado, resfolegando
como motor de fubica em dias de desmaio. Tossia uma tosse intermitente.
Escarrava uma mistura de catarro e sangue. Sim, sem dúvida dele o bicho
escapou.
Bicho
que não se podia ver a olho nu. Uma bactéria, dizia o farmacêutico. Um vírus,
rebatia o guarda sanitário. Da discrepância de pensamento originou-se uma
contenda. Cada qual arrastou consigo um magote de seguidores. Belmiro receitava
aos contaminados uma infusão de folhas de sabugueiro com cloreto de sódio em
pedra, vulgo sal grosso. Ao passo que Eduardo Rabelo de João de Tonca aviava um
vermífugo com mastruz e mijo de vaca.
Cada
um, ou cada uma, ingeria o que achava da sua conveniência. O primeiro a morrer
foi o velho Sabino sacristão, para o desespero do padre. Depois dele, a mulher
de João das Porteiras, apelidada de Boca-de-autofalante. Falava mais do que
Valtinho de Gonçalo quando estava bêbado e dava para fazer discurso político,
fora do tempo de eleição.
Dali
para frente, as pessoas foram caindo. O coveiro não dava conta. A Prefeitura
contratou mais dois coveiros. E mais dois. Muita gente recolheu-se em casa.
Mas, havia os que não davam fiança ao bichinho chinês. Estavam nos aglomerados,
imprevidentes. O presidente da Associação Bolso Raso, uma entidade de
defensores das armas de fogo, esbravejou contra a China, disse cobras e
lagartas. O povo, no dizer dele, deveria sair à cata do retratista de língua
estranha para dar-lhe uma sova bem dada. Tirar o couro, isto é, a pele. Fazer
dele um pingo de carne e osso. Pense num cabra brabo, o tal presidente! O mal
do chinês, como ficou conhecida a esquisita doença, escapou de Cancela do Rio
Comprido. Afetou a redondeza. As autoridades cochilaram. Fizeram pouco caso.
Após
duzentas e sessenta e duas mortes contadas, eis que a salvação apareceu. Não
veio do guarda sanitário nem do farmacêutico. Veio não. Na verdade, a
providência divina guiou Dona Margarida de Sá Doroteia do finado Murilo
Amazonas. Ela leu num exemplar antigo do Almanaque “Bayer”, almanaque de
farmácia, que num país distante, lá para as bandas das Índias, um caso
aparentado com aquele de Cancela do Rio Comprido foi curado com uma injeção de
Coringa-vac.
Pronto.
Era só arranjar a dita cuja. Arranjou-se. Em meio a confusões, mas arranjou-se.
Foi cura certa. Não morreu mais ninguém. Razão tinha Tunico de Zé Gamela de
Tonho de Francisquinho. Um bichinho da China não tinha tutano para matar toda
uma comunidade. Porém, matou muitos. E cada vida perdida não tinha, nem tem
preço.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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