JOSÉ LIMA SANTANA*
O tempo
certo, eu não sei. Foi por volta de 1958, 1959... Porém, o lugar era uma
cidadezinha onde a iluminação pública, advinda de uma termoelétrica da década
de 1920, era apagada às 23 horas, para a Prefeitura conter os gastos. Escuridão
até o romper da aurora.
O padre
Malaquias, passando dos setenta, não tinha sossego com as beatas em busca de
água benta, para aspergir as casas, a fim de afastar o lobisomem. Uma dúzia de
pessoas já o tinha encontrado. A fera soltava-se a cada quaresma.
Corria
trechos, batia sete Freguesias, assombrando homens e mulheres, matando bichos
para beber o sangue. Tonho de Alípio de Sá Francisquinha quase deu cabo do
bicho. Travou luta corporal. Teve duas costelas quebradas, mas deu de cabo de
rebenque na cabeça do excomungado.
As
conversas rolavam soltas. Cada um tinha o que dizer. E inventar. Andar pelas
ruas e becos ficou perigoso depois que as luzes se apagavam. O lobisomem
tornou-se atrevido por demais. Corria e uivava pelas ruas mais afastadas, pelos
becos de Zozimina, de Antero e de Robertina.
Galinhas
espantadas, roupas rasgadas nos varais, cães uivando de forma medonha, saindo
em desabaladas carreiras, eram os sinais incontestes de que o seboso andejava
em maldita penitência. As pessoas de juízo recolhiam-se cedo. Quem não atinava
para o perigo, podia sofrer graves reveses.
Numa casa
de farinha, no subúrbio do Mané Patacão, umas farinheiras largaram a prensa e o
forno e debandaram com o tinhoso atrás delas, pega, mas não pega. Foram
socorridas por Zeca de Maninho, soldado do destacamento policial local, que
ainda atirou a esmo, sem fazer pontaria, pois o lobisomem era mais veloz do que
o carro de praça de Marcolino.
Corria a
mais de 80 por hora. Era esse o cálculo que fazia Zeferino de Zé Biguá. Este
pescador, escondido numa moita, o viu passar lá pras beiras do açude. Parecia
um raio, riscando e sumindo no céu, ele disse. Começaram as suspeitas sobre
quem seria o lobisomem, quem teria a sina pavorosa do encantamento.
Homem e
lobo. Uma besta-fera, um monstro a carregar nas costas a maldição antiga, vinda
das Europas no tempo da colonização. A maldição passava de geração em geração.
Diziam pessoas mais velhas que na Serra da Queda d’Água, nos sertões da
Caatinga Cinzenta, uns vaqueiros deram cabo de um desses bichos.
Mataram-no
com uma bala de prata que um deles carregava na algibeira, pois o seu pai tinha
sido morto por um lobisomem, nas Alagoas. O moço prometeu ao pai agonizante
que, um dia, vingaria a sua morte, fosse com qual lobisomem fosse. Promessa
cumprida. Abatido o lobisomem, ao raiar do dia o encantamento se desfez.
Era o
filho do fazendeiro, patrão daqueles vaqueiros. O rapaz tinha herdado a sina do
avô. O fazendeiro, que fugira de Pernambuco, procurando afastar-se da maldição
que pesava sobre a família desde os tempos dos holandeses, morreu de desgosto
diante da morte do filho único. Era o que diziam. E era no que se acreditava.
Alguns
homens, liderados por Ezequias do finado Vavá do Brejão de Cima, marchante
destemido, bom de briga e de fazer zoada, tomaram a empreitada de emparedar o
lobisomem. Custasse o que custasse, eles acabariam com o malvado. Era o trato a
ser cumprido.
O tenente
Valdomiro Olho de Sola conseguiu com o prefeito uma recompensa em dinheiro
vivo, pois a palavra do alcaide não era suficiente, posto que, ladino, não era
macho suficiente para a cumprir, recompensa a ser dividida entre os tais
sujeitos, se fossem eles os abatedores do bicho.
O próprio
tenente, o sargento Belisário, que, jovem soldado, esteve na Volante do tenente
Firmino Carniceiro, e o soldado Zeca de Maninho formariam outro grupo para dar
caça ao lobisomem. Quarta-feira à noite. Os dois grupos de caçadores eventuais
de lobisomem puseram-se em ação.
O tenente
e os demais militares tomaram o rumo do beco do açude, onde o bicho fora visto duas
ou três vezes. E o grupo do marchante Ezequias rumou para a estrada da
Fazendinha, da qual o lobisomem era vezeiro frequentador, correndo trecho e
cometendo diabruras.
Era noite
de lua cheia. Noite propícia para lobisonagens. Noite de pios assustadores de
corujas rasga-mortalha, de silvos de cobras vadias, de cães em completo
desvario. Dizia-se até ser noite de almas penadas vagando em lamuriosas
penitências e negras assombrações.
A lua
cresceu no céu. Subiu o máximo que pôde. Derramou um bordado de prata sobre o
mundo. As horas da noite deixaram-se vencer pela meia-noite e esta pelas horas
da madrugada. Nas duas sentinelas, a do tenente e a do marchante, nada
aconteceu.
O
lobisomem parecia estar de folga ou traquinando noutras paragens. Àquela
altura, o grupo de Ezequias já tinha dado cabo de seis garrafas de cachaça.
Estavam todos truviluscos. De chofre, um rebuliço na margem da estrada, na
matinha de Geraldinho de Tuca do Baixó.
Espingardas,
facões e porretes de prontidão, Ezequias e seus companheiros avançaram para a
borda da matinha, menos Zito de Maria Gorda, que, tremendo como vara verde,
molhou-se todo e ficou petrificado na estrada, espingarda emperrada nas mãos.
Cabra frouxo da gota!
Eis ali o
virador de lobisomem. Roupa esfarrapada, sujo de sangue, um tatu pendurado pelo
rabo. Os lobisomens bebiam sangue de animais. Ali estava a prova de que Antônio
Amarelo, como muita gente suspeitava, era o lobisomem. Agarraram o sujeito e o
levaram, em algazarra, ao quartel da polícia.
Alguém
foi chamar o tenente. “Pegamos o labisome, tenente”. Passava das três da
madrugada. No quartel, o tenente deu conta de Antônio Amarelo, mais sem sangue
do que nunca, uma perna mais curta do que a outra. A camisa rota, manchada de
sangue. O tatu, no chão, morto, botando sangue pela boca.
O grupo
de Ezequias em alvoroço. O labisone, enfim, estava descoberto. O povo tinha
razão em suspeitar do Amarelo, sujeitinho esquisito, cortador de caminho, que
vivia no esconde-esconde e coisa e tal.
O tenente
balançou a cabeça. Esboçou um sorriso de zombaria. E disse: “Ô bando de
incompetentes, onde já se viu um lobisomem manco? Lobisomem corre trecho, mais
rápido do que cavalo desembestado. Este amarelo é manco. Nem anda direito,
quanto mais correr como a peste. Vocês beberam além da conta”. Um lobisomem
manco?
Era mesmo
para rir. Naquela mesma madrugada, uivos medonhos foram ouvidos para as bandas
do açude, onde o tenente e seus companheiros estiveram de tocaia. Por ali,
cinco galinhas do quintal de Zefinha Cabeça de Balaio amanheceram mortas,
destroçadas. Outro era o lobisomem, e não o pobre manco Antônio Amarelo,
caçador de tatus.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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