José Lima Santana*
Cardosinho de Zé Timbira foi dormir
depois da meia-noite. Tinha passado um tempão acocorado na calçada, cismando,
mirando a lua cheia que se derramava no céu com sua cara gorda. Seus raios
desciam sobre o terreiro, sobre a estrada, sobre o mundo, onde era noite.
Tia Suzana, aparentada com o povo do
Chapadão dos Caboclos, lugar de mistura de negros com índios, dizia que os
raios da lua cheia eram os cabelos prateados de uma moça morta pelo namorado
ciumento.
O filho mais velho de Zé Timbira
estava apaixonado. Mas, não era ciumento. Também, nem o podia ser. Era paixão
recolhida, guardada no silêncio do peito. Paixão que o deixava agoniado,
suspirando pelos cantos.
Flecha certeira atravessara o seu
coração desprevenido. Foi um choque. Um baque igual ao de uma jaca caindo sobre
a cabeça de alguém, vinda lá do galho mais alto da jaqueira. Foi de deixá-lo se
arrastando pelo chão, moído, dor de barriga, daquela que pegava na ponta da
costela e descia para a parte esquerda do ventre. Dor fina, também conhecida
por dor de veado. Na verdade, dor desviada. Essa, a correta expressão.
Cardosinho preferiu deitar-se na
rede, balançando-se para lá e para cá, ouvindo o ranger dos armadores na
parede. Rram-rram-rram... O sono tinha parado nalgum canto. Não chegava aos
olhos. Ah, que frouxidão! Não tinha a coragem, o ímpeto, o fogo aceso do irmão
do meio, dois anos mais novo que ele, mas já de namoro na porta de “seu”
Domício Venta de Mergulho. Namorava a caçula dele, Celinha, moça prendada,
porém, esquisitinha.
A dele, não era esquisita nem nada.
Era uma flor de mandacaru, de bochechas avermelhadas, olhos da cor das águas
plácidas do riacho Marmeleiro, assentadas depois das cheias do inverno. Azuis
claros. Duas pedras preciosas, que ele nem sabia o nome. Só sabia que eram lindos
de endoidecer um-qualquer. Ah, que sorriso de abrir as portas do céu! Não havia
quengo que não girasse, que não ficasse perturbado diante de tamanha formosura.
Ele era um sujeito desmedidamente
trabalhador. Aos vinte e um anos, ainda não se tinha botado para moça nenhuma
com propósito de namoro sério. Andara, aos dezoito anos, querendo arrastar asas
para uma prima, mas recolheu-se. Não, não seria aquela a andar de salto alto no
seu coração.
Afora isso, uns ligeiros chamegos sem
futuro com duas colegas da escola. Nuvens passageiras, portadoras de chuviscos.
Nada mais. Na verdade, Cardosinho vivia para o trabalho. Tinha, há um ano e
meio, um bom emprego, na agência de coleta do IBGE. Emprego federal. Passara no
concurso em terceiro lugar, em todo o Estado. Nível médio. Seguro, diferente
dos dois irmãos, já fazia o seu pé-de-meia.
Rram-rram-rram... A música dos
armadores não lhe incomodava. Bocejou. Enfim, o sono parecia aproximar-se.
Quisesse Deus! Nos próximos três dias, haveria a preparação para o Censo Econômico.
Dados e mais dados a serem coletados. Ele ajudaria a instruir os recenseadores.
Um galo rouco cantou por perto. Dois
outros responderam com gargantas mais afiadas. Outros mais reverberaram adiante
e assim os galos foram tecendo uma serenata galinácea, naquela noite de lua.
Ah, noite endoidecedora!
Lá para as tantas da madrugada,
enfim, Cardosinho tirou um cochilo. Manhãzinha, Dona Marieta bateu de leve na
porta do quarto do filho, como fazia com os outros. “Tô acordado, mãe!”. Mais
um dia de labuta. Mais um dia para ser flagrado cismando, olhos perdidos na
distância sem fim que somente os enamorados conheciam.
“João Cardoso, o senhor está no mundo
da lua?”, perguntava, de vez em quando, o chefe Oliveira. Sim, estava, sim, no
mundo da lua. Não era raro. O pensamento voltado para Maria Clara. Nunca
trocaram uma palavra sequer. Todavia, bastou um sorriso, que nem fora
endereçado a ele, para o coração ser mortalmente ferido. Oh, desgraçada agonia!
Na cidade, todo mundo sabia que Maria
Clara era pretendida por dez em cada dez rapazes de juízo ou sem juízo. Até o
médico da cidade, há pouco tempo formado, já manifestara pretensões e desejos.
Cobiçada, a moça parecia sem pressa de fazer uma escolha.
Dezoito anos. Com pretensão de
continuar os estudos, na capital, no ano vindouro. Queria ser professora
diplomada. Pedagogia. Desde os doze anos, ajudava os irmãos e vizinhos menores,
nas lições. Tinha tino para o magistério.
Antes do sorriso, naquela tarde de
sábado, há quatro semanas, na casa do chefe Oliveira, aniversário de Solange,
filha do chefe, Cardosinho jamais atentara bem para Maria Clara, embora a moça
fosse quase sua vizinha. Moravam na mesma rua, passando oito ou dez casas, um
do outro.
Ela lhe parecia inacessível. Mas,
naquela tarde, os olhos azuis como as águas do riacho, fizeram-no suspirar.
Faltava coragem para lhe dirigir a palavra. Para dizer o que lhe ia n’alma.
Ora, era só desencantar as palavras. Temia um “não”? O mundo desabaria sobre a
sua cabeça? Era possível. Um coração apaixonado, derrubava qualquer um, quando
o “sim” acalentado não vinha. Que frouxidão! Uma pergunta, umas palavrinhas.
Nada mais. O problema era, sim, o temor da resposta, se negativa fosse.
Frouxidão.
O ponto do ônibus, que diariamente
transportava os habitantes da cidade para a capital, ficava na Praça da
Independência, onde se situava a agência de coleta. Na terça-feira, por volta
das cinco e pouco da tarde, Cardosinho deixou o trabalho e atravessou a Praça.
O ônibus do Expresso Eldorado acabara de encostar no ponto.
Pessoas descendo, pessoas esperando.
Algazarra. Cumprimentos. Abraços. O coração do agente de coleta parou,
disparou, parou, disparou. Pressão arterial descontrolada. Maria Clara
atirou-se nos braços de um rapaz moreno, de porte atlético, muito bem vestido, vivaz,
alegre como um assanhaço comendo mamão, manhã cedinho.
Pequena mala na mão esquerda, a mão
direita colada na mão esquerda de Maria Clara, o rapaz parecia brilhar mais que
o sol prestes a explodir no crepúsculo. Pobre Cardosinho, apaixonado!
Como sofrem os platonicamente
apaixonados! Como o sangue gelava nas veias, em diversas situações, como
naquela! Maria Clara atirada nos braços de um rapaz, antes nunca visto por
Cardosinho. Sim, devia ser o namorado. Ela tinha passado as férias na capital,
no mês anterior, na casa dos avós maternos. Por certo, arranjara um namorado.
Ali estava o sujeito.
Naquela noite, os armadores da rede
rangeram sem parar. Rram-rram-rram... No escuro do quarto, um tanto quebrado
por um raio de luar, a forçar entrada por uma fresta, os olhos de Cardosinho
marejaram. Frouxidão! As faces avermelhadas como flor de mandacaru de Maria
Clara já tinham dono.
Rram-rram-rram... A ponta da costela
voltou a doer. A dor desceu para o lado esquerdo da barriga. Mais forte que
nunca. Um acesso de vômito. Mal deu tempo para chegar ao banheiro. Maria Clara
era a flor desejada, mas que se despetalara aos seus pés, tomada por outro.
Frouxidão.
Pela manhã, a mesa posta, Dona
Marieta disse que mais tarde iria à casa de Dona Rosa Veiga, para conhecer o irmão
mais novo dela, que tinha chegado no ônibus da tarde anterior. Dona Rosa era a
mãe de Maria Clara. Coração aos baques, Cardosinho suspirou.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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