sexta-feira, 26 de março de 2021

O FACÍNORA


  

José Lima Santana*

 

 

Ribeirão dos Porcos. Ah, nome amaldiçoado da moléstia! Mas, era, enfim, o nome do lugarejo onde o cabo Amintas e o soldado Edésio foram dar naquele fim de tarde. Andavam à procura de um facínora, alcunhado por Mula Manca. O nome certo, ninguém sabia. Ele puxava de uma perna, a esquerda. Um tiro, talvez. Ou uma coisa qualquer. Podia ser de nascença.

O certo era que o sujeito tinha bofes ruins. Devia ser aparentado com o próprio demo, pelas malvadezas que fazia. Roubos, assassinatos, estupros. Matou homens, mulheres e crianças. Uma folha desgraçadamente grande, entupida de tantas perversidades. A polícia o procurava no Estado inteiro. Dizia-se que até a polícia baiana ansiava em pôr as mãos no celerado.

O cabo Amintas era destemido. Estivera por duas vezes em fogo cerrado contra Lampião. Recebera a fita de cabo por ter dado conta de matar dois cangaceiros. Esperava chegar a sargento. Queria casar com Rosinha de Sá Josefa do Mulungú, todo engalanado. Poderia fazer uma bela carreira na Polícia. De sargento a suboficial e, quem sabia, daí por diante. Era o quinto homem da família a assentar praça, ele e quatro primos. Mas, o primeiro a chegar a cabo.

Dois morreram combatendo os cangaceiros. Um deixou a Briosa, para seguir carreira no serviço público federal, como agente da Estação Experimental do Algodão. E dois foram expulsos da Força Pública por se rebelarem contra um tenente e um capitão. Esqueceram-se da disciplina e da hierarquia.

O soldado Edésio era casado. Pai de um filhinho de um ano e dois meses, com o segundo no bucho da esposa. Uma temeridade aumentar a família assim tão depressa, com o soldo miserável que recebia. Porém, a mulher era modista, costurava roupas femininas, e muito bem.

Ajudava no sustento da casa. Ele formava par com o cabo há seis meses. Afinaram-se desde o início da parceria. Confiavam um no outro. Sonhava em ser cabo. Para ele, estaria de bom tamanho. Ajudaria o cabo a subir de posto, para ficar com a sua fita, caso os superiores assim mesmo entendessem. Um subiria, arrastando o outro. Cabo Edésio. O seu pai, cego dos dois olhos, ficaria ainda mais orgulhoso do filho militar.

O sol deu sinais de recolher-se. Tingiu o céu de cores vivas. Revoadas de pássaros tomavam o rumo dos seus ninhos. Bichos noturnos despertavam para dar início à noitada. As escassas e mirradas flores da caatinga deixavam-se balançar pelo vento passageiro, na espera de, com mais um pouco, recolher gotículas do orvalho em suas corolas.

Um aboio dorido ecoou nalgum lugar, por perto. Ouviu-se o tilintar de um chocalho. A seguir, outros chocalhos tocaram a mesma música. O sol baixou um pouco mais no horizonte. As Ave Marias estavam chegando.

O cabo e o soldado descobriram-se. Quepes nas mãos, persignaram-se. Que a Virgem velasse por eles. Aquele lugarejo não tinha boa fama. Diziam, na cidade, que o diabo andou por ali, há muito tempo. Um velho beato, no fim do século, passando com destino à Bahia, no delírio de restaurar a Monarquia, pregou uma santa-missão e expulsou uma legião de demônios do corpo de uma moça.

Os entes malditos apossaram-se de um bando de porcos. Os bichos caíram na ribanceira do ribeirão sem nome conhecido, que passou a se chamar Ribeirão dos Porcos, dando nome também ao lugarejo que ali se formou, na margem direita de quem estava a montante.

A boca da noite lutava para engolir os últimos esperneios do sol. Um caboclo de enxada ao ombro cumprimentou os policiais, tirando o chapéu de palha em pedaços: “Boas noites”. Os dois, como autômatos, tocaram nos quepes, sem palavras. O arruado apareceu, depois de uma curva, à frente das duas autoridades.

Os cavalos estavam estropiados. Careciam de comida e descanso. Precisariam de um lugar para passar a noite. As noites sertanejas costumavam ser frias, naquela época do ano, que prenunciava o inverno. Uma mulher passou por eles com um pote na cabeça, apressada, indo para casa. Entrou na primeira casa do povoado, afastada das demais. Um menino a esperava no batente da porta. Ela o puxou pelo braço e bateu a porta. Soldados metiam medo nas pessoas. Os cangaceiros também. Eram vistos como iguais. Seres perversos, na compreensão de muita gente.

O cabo Amintas tomou do fuzil. Engatilhou, colocando-o atravessado sobre o arção da sela. O soldado fez o mesmo com o parabelum. Nunca se sabia o que viria pela frente. Portas e janelas foram fechadas. Um velho descamisado permaneceu no terreiro, amolando uma faca. Olhou para os dois. Cuspiu de lado.

Os dois policiais manobraram as montarias em direção ao velho, que permaneceu atento ao que fazia. “Boa noite, meu tio”. Sem olhar, o velho grunhiu uma resposta. “O senhor indica um lugar onde a gente possa se arranchar por esta noite?”. Só então, ele levantou o olhar. “Lugar, aqui, de rancho, tem não, sinhô. Se servir, tem ali aquele telheiro, que é de guardar a carroça e capim pro burro. É o que se pode arrumar”.

Um minúsculo telheiro. Já era alguma coisa. Ao menos, não estariam de todo ao relento. Servia. “Agradecido”. O velho entrou em casa. Bateu a porta. O cabo e o soldado riram. Povinho desconfiado. Mas, tinha lá suas razões. Sofria-se com os cangaceiros. Sofria-se com as Volantes, muitas das quais superavam os bandidos em maldades.

Amintas e Edésio se revezariam em guarda. Não podiam correr riscos. A notícia da presença deles, ali, já estava correndo trecho. Antes da meia-noite, a presença deles já seria sabida em torno de algumas léguas. Na caatinga, a invisível rede de comunicação era mais ligeira que o telégrafo.

A lua quarto-crescente subiu no céu. Os olhos de Deus miravam os homens. Milhares, milhões de olhos. O céu estrelado nas noites do sertão era uma belezura. Um ventinho rasteiro arrastava garranchos, zoando em sussurros. O friozinho catingueiro arrepiava os pelos das ventas.

Por trás do telheiro estava a ribanceira, aquela dos porcos endemoniados. O lugar era lúgubre. O soldado tiraria o primeiro turno da guarda. Até a meia-noite. O cabo Amintas cochilava. A seguir, garrou no sono. Logo, roncava. Um barulho de coisa ruim parecia vir da ribanceira.

O soldado deu conta da medalhinha de Nosso Senhor Crucificado, que o padre Bento, seu padrinho, lhe dera. Beijou-a. Pôs-se de pé, arma na mão. “O Senhor Jesus é minha luz. E o meu corpo é fechado contra bala, faca, o diabo”. Ouviu grunhidos atrozes. Um labafero danado. Repetiu os dizeres benditos. Silêncio. Absoluto silêncio.

De repente, um grito diabólico. O cabo acordou, meio atordoado. Um demônio, vindo das profundezas dos infernos, saltou na frente dos policiais. Um estampido seco. A faísca do tiro enfeitou o ar, como um vagalume. Um baque. O cabo Amintas levantou com o fuzil na mão. “Tudo bem, cabo. Eu não erro tiro”.

Aproximaram-se do vulto caído. O soldado bateu o bingo. Colocou a mão contra o vento, para proteger a pequena chama. Alumiou o demônio. Era Mula Manca, o facínora. Ferido, tentava se mexer, revólver na mão. Uma noite para matar ou morrer.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito  da  Universidade  Federal de Sergipe, membro  da  Academia   Sergipana   de  Letras,  Academia   Sergipana   de   Letras  Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de   Educação   e  do  Instituto  Histórico  e Geográfico de Sergipe.

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