José Lima Santana*
Ribeirão dos Porcos. Ah, nome
amaldiçoado da moléstia! Mas, era, enfim, o nome do lugarejo onde o cabo
Amintas e o soldado Edésio foram dar naquele fim de tarde. Andavam à procura de
um facínora, alcunhado por Mula Manca. O nome certo, ninguém sabia. Ele puxava
de uma perna, a esquerda. Um tiro, talvez. Ou uma coisa qualquer. Podia ser de
nascença.
O certo era que o sujeito tinha bofes
ruins. Devia ser aparentado com o próprio demo, pelas malvadezas que fazia.
Roubos, assassinatos, estupros. Matou homens, mulheres e crianças. Uma folha
desgraçadamente grande, entupida de tantas perversidades. A polícia o procurava
no Estado inteiro. Dizia-se que até a polícia baiana ansiava em pôr as mãos no
celerado.
O cabo Amintas era destemido.
Estivera por duas vezes em fogo cerrado contra Lampião. Recebera a fita de cabo
por ter dado conta de matar dois cangaceiros. Esperava chegar a sargento.
Queria casar com Rosinha de Sá Josefa do Mulungú, todo engalanado. Poderia
fazer uma bela carreira na Polícia. De sargento a suboficial e, quem sabia, daí
por diante. Era o quinto homem da família a assentar praça, ele e quatro
primos. Mas, o primeiro a chegar a cabo.
Dois morreram combatendo os
cangaceiros. Um deixou a Briosa, para seguir carreira no serviço público
federal, como agente da Estação Experimental do Algodão. E dois foram expulsos
da Força Pública por se rebelarem contra um tenente e um capitão. Esqueceram-se
da disciplina e da hierarquia.
O soldado Edésio era casado. Pai de
um filhinho de um ano e dois meses, com o segundo no bucho da esposa. Uma
temeridade aumentar a família assim tão depressa, com o soldo miserável que
recebia. Porém, a mulher era modista, costurava roupas femininas, e muito bem.
Ajudava no sustento da casa. Ele
formava par com o cabo há seis meses. Afinaram-se desde o início da parceria.
Confiavam um no outro. Sonhava em ser cabo. Para ele, estaria de bom tamanho.
Ajudaria o cabo a subir de posto, para ficar com a sua fita, caso os superiores
assim mesmo entendessem. Um subiria, arrastando o outro. Cabo Edésio. O seu
pai, cego dos dois olhos, ficaria ainda mais orgulhoso do filho militar.
O sol deu sinais de recolher-se.
Tingiu o céu de cores vivas. Revoadas de pássaros tomavam o rumo dos seus
ninhos. Bichos noturnos despertavam para dar início à noitada. As escassas e
mirradas flores da caatinga deixavam-se balançar pelo vento passageiro, na
espera de, com mais um pouco, recolher gotículas do orvalho em suas corolas.
Um aboio dorido ecoou nalgum lugar,
por perto. Ouviu-se o tilintar de um chocalho. A seguir, outros chocalhos
tocaram a mesma música. O sol baixou um pouco mais no horizonte. As Ave Marias
estavam chegando.
O cabo e o soldado descobriram-se.
Quepes nas mãos, persignaram-se. Que a Virgem velasse por eles. Aquele lugarejo
não tinha boa fama. Diziam, na cidade, que o diabo andou por ali, há muito
tempo. Um velho beato, no fim do século, passando com destino à Bahia, no
delírio de restaurar a Monarquia, pregou uma santa-missão e expulsou uma legião
de demônios do corpo de uma moça.
Os entes malditos apossaram-se de um
bando de porcos. Os bichos caíram na ribanceira do ribeirão sem nome conhecido,
que passou a se chamar Ribeirão dos Porcos, dando nome também ao lugarejo que
ali se formou, na margem direita de quem estava a montante.
A boca da noite lutava para engolir
os últimos esperneios do sol. Um caboclo de enxada ao ombro cumprimentou os
policiais, tirando o chapéu de palha em pedaços: “Boas noites”. Os dois, como
autômatos, tocaram nos quepes, sem palavras. O arruado apareceu, depois de uma
curva, à frente das duas autoridades.
Os cavalos estavam estropiados.
Careciam de comida e descanso. Precisariam de um lugar para passar a noite. As
noites sertanejas costumavam ser frias, naquela época do ano, que prenunciava o
inverno. Uma mulher passou por eles com um pote na cabeça, apressada, indo para
casa. Entrou na primeira casa do povoado, afastada das demais. Um menino a
esperava no batente da porta. Ela o puxou pelo braço e bateu a porta. Soldados
metiam medo nas pessoas. Os cangaceiros também. Eram vistos como iguais. Seres
perversos, na compreensão de muita gente.
O cabo Amintas tomou do fuzil.
Engatilhou, colocando-o atravessado sobre o arção da sela. O soldado fez o
mesmo com o parabelum. Nunca se sabia o que viria pela frente. Portas e janelas
foram fechadas. Um velho descamisado permaneceu no terreiro, amolando uma faca.
Olhou para os dois. Cuspiu de lado.
Os dois policiais manobraram as
montarias em direção ao velho, que permaneceu atento ao que fazia. “Boa noite,
meu tio”. Sem olhar, o velho grunhiu uma resposta. “O senhor indica um lugar
onde a gente possa se arranchar por esta noite?”. Só então, ele levantou o
olhar. “Lugar, aqui, de rancho, tem não, sinhô. Se servir, tem ali aquele
telheiro, que é de guardar a carroça e capim pro burro. É o que se pode
arrumar”.
Um minúsculo telheiro. Já era alguma
coisa. Ao menos, não estariam de todo ao relento. Servia. “Agradecido”. O velho
entrou em casa. Bateu a porta. O cabo e o soldado riram. Povinho desconfiado.
Mas, tinha lá suas razões. Sofria-se com os cangaceiros. Sofria-se com as
Volantes, muitas das quais superavam os bandidos em maldades.
Amintas e Edésio se revezariam em
guarda. Não podiam correr riscos. A notícia da presença deles, ali, já estava
correndo trecho. Antes da meia-noite, a presença deles já seria sabida em torno
de algumas léguas. Na caatinga, a invisível rede de comunicação era mais
ligeira que o telégrafo.
A lua quarto-crescente subiu no céu.
Os olhos de Deus miravam os homens. Milhares, milhões de olhos. O céu estrelado
nas noites do sertão era uma belezura. Um ventinho rasteiro arrastava
garranchos, zoando em sussurros. O friozinho catingueiro arrepiava os pelos das
ventas.
Por trás do telheiro estava a
ribanceira, aquela dos porcos endemoniados. O lugar era lúgubre. O soldado
tiraria o primeiro turno da guarda. Até a meia-noite. O cabo Amintas cochilava.
A seguir, garrou no sono. Logo, roncava. Um barulho de coisa ruim parecia vir
da ribanceira.
O soldado deu conta da medalhinha de
Nosso Senhor Crucificado, que o padre Bento, seu padrinho, lhe dera. Beijou-a.
Pôs-se de pé, arma na mão. “O Senhor Jesus é minha luz. E o meu corpo é fechado
contra bala, faca, o diabo”. Ouviu grunhidos atrozes. Um labafero danado.
Repetiu os dizeres benditos. Silêncio. Absoluto silêncio.
De repente, um grito diabólico. O
cabo acordou, meio atordoado. Um demônio, vindo das profundezas dos infernos,
saltou na frente dos policiais. Um estampido seco. A faísca do tiro enfeitou o
ar, como um vagalume. Um baque. O cabo Amintas levantou com o fuzil na mão.
“Tudo bem, cabo. Eu não erro tiro”.
Aproximaram-se do vulto caído. O
soldado bateu o bingo. Colocou a mão contra o vento, para proteger a pequena
chama. Alumiou o demônio. Era Mula Manca, o facínora. Ferido, tentava se mexer,
revólver na mão. Uma noite para matar ou morrer.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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