José Lima Santana*
As pragas de Constância nunca eram em
vão. Boca santa, para não dizer o contrário. “Ave Maria! Tidiscunjuro, diaba de
sete rabos!”, vociferou Tertuliano de Cristóvão do Carvãozinho, persignando-se
e cuspindo longe, ao saber da última praga. Aquele domingo prometia.
No decorrer do dia, o rebuliço em
Capela do Arari não poderia ser maior. De cima a baixo, rua por rua, beco por
beco, não se falaria noutro assunto. Mal Totoinho de Ranulfo Boca Preta abriu o
bar, o primeiro freguês, Américo de Sá Domitila de João Fedegoso, chegou com a
novidade.
O dono do bar deu de ombros. “Isso
não me diz respeito, ‘seu’ Américo. E, pelo que eu sei, nem ao senhor. Olhe lá
que o senhor tem quatro filhas, todas saracotiando pra lá e pra cá. Tome tento
do que é seu, antes que o alheio venha tomar”. O freguês novidadeiro engoliu,
calado, a dose de conhaque barato. Puxou uma cadeira e sentou-se.
Aos poucos, foram chegando os
habituais fregueses para o café com pão e manteiga. Um ou outro, pão com queijo
de coalho do próprio fabrico de Totoinho, ou melhor, de sua esposa, dona
Gracinda, que, de boca grande, ganhava bem à frente de Américo. “Peste
fofoqueira. O que tem o marido de boca de siri, tem a mulher de boca de
caçapa”, reclamava Anália, vizinha da frente, ao que dona Gracinda costumava
responder: “Aquela dali vive xeretando o padre Afonso. Pensa que mijo de
vigário é santos óleos”. Bocas infelizes. Cada uma, pior que a outra.
A marinete de Monte Belo com destino
à capital parou em frente ao bar. Fregueses certos. Alvoroço. Zé Fernandes e
Brió, de 17 e 15 anos, filhos de Totoinho, já ajudavam o pai no atendimento aos
fregueses, que tinham os cabelos duros de poeira e os olhos remelentos. Quando
aquelas estradas sofridas ganhariam asfalto? Dois governadores tinham
prometido. Cumprimento de promessas de certos políticos era igual a perna de
cobra. Ninguém via.
O bar, único aberto àquela hora, no
domingo, foi-se enchendo de gente tagarela. Américo, o falador, gritou para o
menino Brió, que passou a mão nos olhos, para tirar uma nibrina: “Ô Brió, vá
lavar essa mão suja de remela!”. O menino, que tinha a matraca solta como a
mãe, respondeu, também gritando: “Vá cuidar de suas pontas, seu corno fio da
peste!”. Algazarra geral. Até Américo sorriu. Amarelo, mas sorriu. Melhor não
levar a conversa adiante.
Cada macaco sabia em qual pau se
trepava. Enfim, falavam coisas da mulher de Américo. Nada provado, entretanto.
“Basta olhar pra cara das filhas dele, pra ver que são filhas só no registro”.
Era a voz do povo. Do povo, vírgula. De quem não tinha o que fazer. Nem dizer.
A filha de Maria Zarolha, uma mocinha
mirrada, chegou com um tabuleiro de pasteis bem morninhos. De carne-de-sol, de
queijo, de frango e de camarão. Não eram pasteis de vento. Deliciosos. Quando
chegavam, não davam para quem queria. Aqueles voaram num átimo.
A massa dos pasteis da Zarolha era
suculenta, macia, quase sem gordura. E os recheios? Um encanto! Ela fornecia
quatro vezes ao dia. Não sobrava nada. Com café ou com refresco, os pasteis
desciam goela abaixo, que era uma beleza. Ah, um refresco de graviola, de
jenipapo ou de caju, no tempo certo, adocicado com raspa de rapadura como só
Berto do finado Josias Leite sabia fazer! E o tabuleiro de pasteis das dez
horas ou a do meio da tarde, com caldo de cana caiana com limão? Puxa! Dava
água na boca...! Era de lamber os beiços.
A marinete partiu. O bar quase
esvaziou. Totoinho contou o dinheiro apurado. Catou as notas graúdas e as meteu
no bolso da calça. Os dois rapazes lavavam e enxugavam pratos, xícaras e
talheres. Mais tarde, um iria olhar o gado na solta e o outro, ajudar o padre a
dizer Missa, para desgosto da mãe, que não tinha religião, embora fosse
batizada, crismada e casada na Igreja. Mas, torcia as ventas para chamegos de
rezas.
Ah, a praga de Constância, a última!
Diziam que praga dela secava até pimenteira. Aliás, bastava o olho. Olho gordo.
Olho infeliz. Se ela botasse o olho, por exemplo, em um animal capado, um
porco, um frango, fosse o que fosse, era hemorragia na certa. O bicho se esvaia
em sangue até morrer. E quando a boca se abria para um maldizer, podia-se
esperar a desgraça. Era tiro e queda.
O filho único de Constância, um bocó,
mal-ajambrado, que só pensava em juntar dinheiro, no negócio herdado do pai,
comprando e vendendo algodão, estava de noivado marcado com Ana Rosa, filha da
professora Germana, vice-prefeita da cidade, amada por todos, defensora dos
direitos das mulheres e do meio ambiente.
Estava. Noivado para maio e casamento
para o início do outro ano. Estava. Pois então, pifou. No dia anterior, sábado
de tardinha, Ana Rosa, olho no olho, comunicou a João Pedro, o bocó do algodão,
que estava terminando o namoro. Estaria de partida para o Rio de Janeiro, onde
morava a irmã.
A desistente tinha sido Rainha do
Milho e da Primavera por dois anos seguidos, no Ginásio. Por beleza e simpatia,
tantas vezes fosse, ela ganharia. Uma boneca, como a ela se referiam as amigas
da mãe, desde pequena. Um pedaço de mau caminho, na boca suja de Alípio,
gerente do Cine Odeon e eterno arrastador de asas para o lado dela, como tantos
outros rapazes.
Ao saber do término do noivado, a
megera praguejadora quase explodiu de contrariedade e raiva. “Então, aquela
sonsa, metida a gostosa, está pensando o quê? Que é melhor do que o meu filho,
um partido por quem toda moça desta cidade sonha em ser levada ao altar? Aquela
esnobe desgraçada, que quer se soltar na cidade grande, para andar de braço em
braço, de entreperna em entreperna, de cama em cama? Pois ela vai é se
estrepar. Nunca há de ser mãe. Vai secar o útero. Vai voltar para esta terra
lascada como uma mulher-dama. Quem viver, verá!”.
Todo mundo, na cidade, dava como
certo o noivado e, claro, o casamento do bocó do algodão com a boneca Ana Rosa,
que, a bem da verdade, era moça de fina estampa e primorosa educação. Não se
sabia o que ela tinha visto no bocó, para lhe ter dado trela. Bem que ela
merecia um moço melhor.
De qualquer forma, o desenlace era a
sensação da cidade, desde a noite anterior. Mas, foi no domingo que a notícia
ganhou corpo, correu ruas e becos. Moças e rapazes, homens e mulheres deram
vivas a Ana Rosa. “Bem fez ela. Andar de mistura com a raça de Constância, era
beber lama no lugar de água”.
Dois anos se passaram desde aquele
domingo. O bocó do algodão desposou a filha de um fazendeiro do Grotão das Antas.
Coitada! Não segurava menino. Teve dois abortos, um atrás do outro. Quanto à
praga de Constância sobre Ana Rosa, deu certo, em parte. Sim, ela andava de
braço em braço, no Rio de Janeiro. Em cena. Virou atriz da TV Tupi.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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