sexta-feira, 12 de março de 2021

OS SEISCENTOS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Seiscentos. Esse foi o número exato. Francisquinho de Maria de Terto e Jugurta de Fenelon bacamarteiro contaram tudo bem direitinho. Estavam todos lá, estendidos no chão. O sangue escorrendo como água numa bica. Era uma manhã de sol ardente, daquelas manhãs ensolaradas do verãozão de começo de ano.

E naquela manhã, já meio andada, o sol tinia e parecia ter descido um pouco mais, despejando faíscas sobre a caatinga. Não custava nada para tudo pegar fogo, como aconteceu em 1941, quando a caatinga do Boqueirão de Cima ao Sítio do Pau Torto virou uma coivara só. Foram precisos dez anos para que tudo se regenerasse por completo, e, ainda, assim, olhando bem, restaram umas falhas nisso ou naquilo.

Naquele ano, 1962, as brigas políticas entre o partido de Marcão do Sapé-Mirim e Bernardo de Chico Pintado prometiam matanças e mais matanças. Terra de gente agoniada, pronta para, por um pequeno senão, por menorzinho que fosse, fazer um fogaréu com as armas.

As brigas políticas vinham dos tempos do Império, dos embelecos entre pebas e cabaús, adentrando na República, quando os barões decaídos se tornaram coronéis de patente comprada, herança da Monarquia dos dois Pedro, pai e filho, um raparigueiro escancarado e o outro bem mais comedido.

Na capital, embora as eleições estivessem longe, cerca de nove meses, falava-se aos cochichos, que haveria uma grande traição no partido situacionista. Alguns próceres desse agrupamento tendiam a bandear-se para a oposição, que pretendia retomar as rédeas do poder estadual, após tê-las perdido, mediante falcatruas, segundo alegavam, oito anos antes.

Cupinchas mais alterados dos dois lados prometiam arrancar as tripas uns dos outros. Aguardava-se um banho de sangue. Até a Polícia estava, há muito, dividida. De soldados a coronéis, todos tinham o seu lado. Havia, pois, no Estado, duas polícias.

Raimundão de Geraldinho da Malhada Nova, cabra de bofes mais quentes do que forja de ferreiro, caiu na besteira de meter-se com uma viúva de família contrária ao seu pai. Um cunhado da dita cuja, Tenório, irmão do falecido marido, este tocaiado após uma discussão numa noitada de forró, na casa de Belmiro Rosca Frouxa, alardeou que mataria Raimundão, caso ele continuasse se enxerindo para a viúva, Madalena do finado Procópio, esse o nome da sujeita.

Por seu lado, Raimundão, na bodega de Juca de Manezito, estando o salão mais cheio de homens do que o mercado da cidade em dia de feira, tomou duas lapadas de milone, engarrafado há sete dias, azeitado, daquela pinga que gerava cuspe grosso, atirado ao pé do balcão como uma cagada de pato, bem espalhada, e ali estando um primo de Tenório, falou com voz de trombone: “Num sei vivê ameaçado. Antes de baixar os sete palmos, eu meto nêgo lá dentro”.

Recado dado, recado passado. A partir dali todos esperavam um morticínio. Se um morresse, outros morreriam. Era assim. Brigas de famílias. Sangue quente de cada lado. Ranços de valentias chamuscadas. Armas de prontidão. Sempre.

A provocação de Tenório de Severino do Alecrim e a imediata resposta de Raimundão ocorreram uns meses antes da queda dos seiscentos, naquela manhã de verão. Houve outros estardalhaços de parte a parte. Pólvora seca perto de fogo. Armas lubrificadas. Dedos nervosos. Copos cheios d’água, rentes, faltando uma gota para transbordar.

A família de Tenório votava com Marcão do Sapé-Mirim. E a de Raimundão com Bernardo de Chico Pintado, cujo partido amargava estar de baixo há oito anos, no Estado e no Município. Os ânimos acirravam-se mais e mais, a cada dia.

Se, ali, a polícia estava de um lado, o juiz de direito estava do outro. Mantinha-se, assim, um equilíbrio. Todavia, a cangibrina estava prestes a provocar queimores em muitos buchos. O padre Maurício Pontes Madeira, que, na surdina, também tinha lá a sua preferência política, andava preocupado com os boatos que cresciam.

Uns forasteiros tinham chegado à casa de Bernardo de Chico Pintado e foram homiziados na fazenda deste. Dizia-se na cidade que eram pistoleiros vindos de outro Estado. Carnificina à vista. O padre foi entender-se com o juiz, mas este desconversou, deixou o dito pelo não dito, não restando ao padre outra coisa, senão rezar. Que Jesus Misericordioso, padroeiro do lugar, tivesse misericórdia de toda daquela gente de bofes ruins.

Uma desgraça nunca vinha sozinha. Como se não bastasse o indevido arrastar de asas de Raimundão pela viúva, eis que, na festa de Natal, na Praça da Matriz, um neto dos Pintados foi flagrado de conversa com uma afilhada de Marcão do Sapé-Mirim, por este criada.

Estavam debaixo de um oitizeiro, lugar de pouca claridade, a poucos metros da Matriz. De conversê no escuro, era moça perdida. Ora, ia-se ver! Um neto de Chico Pintado misturar-se com uma molequinha da casa de Marcão, que nem da família era? E, se fosse, seria ainda pior.

Um Pintado juntar os cacarecos com gente da laia do Sapé-Mirim, nem que a Virgem Maria segurasse nas mãos dos dois. Nem assim! Nem que a noite virasse dia e o dia virasse noite. Já tinha gente, de fora das duas famílias adversárias, que antevia o riacho de sangue encharcando as ruas de Marimbondo. Exagerava-se? Seriam dezenas, centenas de mortes.

Daquela vez, o juiz e o padre juntaram-se para ajustar a situação. Encontrados debaixo de uma árvore, na quase escuridão, para os dois só tinha um caminho: o casamento. Ou a moça ficaria falada. O rapaz tinha dezoito anos e a moça, dezesseis. Eram menores púberes. Precisariam de autorização. A afilhada de Marcão, órfã de pai e mãe, era herdeira de um bem avaliado cabedal.

O rapaz se disse satisfeito com o casamento, mesmo que a família fosse do contra. Moço de opinião. Nisso, provava ser um Pintado. E com um cabedal à vista... Depois de muito disse-me-disse, choro da mãe do rapaz, berros de toda a família, ânimos, enfim, serenados, sabia Deus a qual custo, o casamento foi feito. As brigas ficariam para mais adiante.

Naquele início de fevereiro, uma imensidão de caititus invadiu as terras de Marimbondo. Era uma vara enorme. Devastavam tudo que podiam. Além do mais, alguns foram detectados com a doença da raiva. Um perigo. Não se sabia de onde tinham vindo. Os donos de propriedades rurais se uniram contra os invasores. Até os do Sapé-Mirim entenderam-se com os Pintados. Declararam guerra aos caititus.

O juiz, diante da calamidade causada pelos porcos-do-mato, não teve alternativa: atendeu a um pedido da Prefeitura Municipal, autorizando o abate dos intrusos. Naquela manhã da contagem de Francisquinho de Maria de Terto e de Jugurta de Fenelon bacamarteiro, dois grupos de caititus foram cercados. Seiscentos foram abatidos. Uns poucos escaparam. Alívio para a comunidade.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...