José Lima Santana*
Seiscentos. Esse foi o número exato.
Francisquinho de Maria de Terto e Jugurta de Fenelon bacamarteiro contaram tudo
bem direitinho. Estavam todos lá, estendidos no chão. O sangue escorrendo como
água numa bica. Era uma manhã de sol ardente, daquelas manhãs ensolaradas do
verãozão de começo de ano.
E naquela manhã, já meio andada, o
sol tinia e parecia ter descido um pouco mais, despejando faíscas sobre a
caatinga. Não custava nada para tudo pegar fogo, como aconteceu em 1941, quando
a caatinga do Boqueirão de Cima ao Sítio do Pau Torto virou uma coivara só.
Foram precisos dez anos para que tudo se regenerasse por completo, e, ainda,
assim, olhando bem, restaram umas falhas nisso ou naquilo.
Naquele ano, 1962, as brigas
políticas entre o partido de Marcão do Sapé-Mirim e Bernardo de Chico Pintado
prometiam matanças e mais matanças. Terra de gente agoniada, pronta para, por
um pequeno senão, por menorzinho que fosse, fazer um fogaréu com as armas.
As brigas políticas vinham dos tempos
do Império, dos embelecos entre pebas e cabaús, adentrando na República, quando
os barões decaídos se tornaram coronéis de patente comprada, herança da
Monarquia dos dois Pedro, pai e filho, um raparigueiro escancarado e o outro
bem mais comedido.
Na capital, embora as eleições estivessem
longe, cerca de nove meses, falava-se aos cochichos, que haveria uma grande
traição no partido situacionista. Alguns próceres desse agrupamento tendiam a
bandear-se para a oposição, que pretendia retomar as rédeas do poder estadual,
após tê-las perdido, mediante falcatruas, segundo alegavam, oito anos antes.
Cupinchas mais alterados dos dois
lados prometiam arrancar as tripas uns dos outros. Aguardava-se um banho de
sangue. Até a Polícia estava, há muito, dividida. De soldados a coronéis, todos
tinham o seu lado. Havia, pois, no Estado, duas polícias.
Raimundão de Geraldinho da Malhada
Nova, cabra de bofes mais quentes do que forja de ferreiro, caiu na besteira de
meter-se com uma viúva de família contrária ao seu pai. Um cunhado da dita
cuja, Tenório, irmão do falecido marido, este tocaiado após uma discussão numa
noitada de forró, na casa de Belmiro Rosca Frouxa, alardeou que mataria
Raimundão, caso ele continuasse se enxerindo para a viúva, Madalena do finado
Procópio, esse o nome da sujeita.
Por seu lado, Raimundão, na bodega de
Juca de Manezito, estando o salão mais cheio de homens do que o mercado da
cidade em dia de feira, tomou duas lapadas de milone, engarrafado há sete dias,
azeitado, daquela pinga que gerava cuspe grosso, atirado ao pé do balcão como
uma cagada de pato, bem espalhada, e ali estando um primo de Tenório, falou com
voz de trombone: “Num sei vivê ameaçado. Antes de baixar os sete palmos, eu
meto nêgo lá dentro”.
Recado dado, recado passado. A partir
dali todos esperavam um morticínio. Se um morresse, outros morreriam. Era
assim. Brigas de famílias. Sangue quente de cada lado. Ranços de valentias
chamuscadas. Armas de prontidão. Sempre.
A provocação de Tenório de Severino
do Alecrim e a imediata resposta de Raimundão ocorreram uns meses antes da
queda dos seiscentos, naquela manhã de verão. Houve outros estardalhaços de
parte a parte. Pólvora seca perto de fogo. Armas lubrificadas. Dedos nervosos.
Copos cheios d’água, rentes, faltando uma gota para transbordar.
A família de Tenório votava com
Marcão do Sapé-Mirim. E a de Raimundão com Bernardo de Chico Pintado, cujo
partido amargava estar de baixo há oito anos, no Estado e no Município. Os
ânimos acirravam-se mais e mais, a cada dia.
Se, ali, a polícia estava de um lado,
o juiz de direito estava do outro. Mantinha-se, assim, um equilíbrio. Todavia,
a cangibrina estava prestes a provocar queimores em muitos buchos. O padre
Maurício Pontes Madeira, que, na surdina, também tinha lá a sua preferência
política, andava preocupado com os boatos que cresciam.
Uns forasteiros tinham chegado à casa
de Bernardo de Chico Pintado e foram homiziados na fazenda deste. Dizia-se na
cidade que eram pistoleiros vindos de outro Estado. Carnificina à vista. O
padre foi entender-se com o juiz, mas este desconversou, deixou o dito pelo não
dito, não restando ao padre outra coisa, senão rezar. Que Jesus Misericordioso,
padroeiro do lugar, tivesse misericórdia de toda daquela gente de bofes ruins.
Uma desgraça nunca vinha sozinha.
Como se não bastasse o indevido arrastar de asas de Raimundão pela viúva, eis
que, na festa de Natal, na Praça da Matriz, um neto dos Pintados foi flagrado
de conversa com uma afilhada de Marcão do Sapé-Mirim, por este criada.
Estavam debaixo de um oitizeiro,
lugar de pouca claridade, a poucos metros da Matriz. De conversê no escuro, era
moça perdida. Ora, ia-se ver! Um neto de Chico Pintado misturar-se com uma
molequinha da casa de Marcão, que nem da família era? E, se fosse, seria ainda
pior.
Um Pintado juntar os cacarecos com gente
da laia do Sapé-Mirim, nem que a Virgem Maria segurasse nas mãos dos dois. Nem
assim! Nem que a noite virasse dia e o dia virasse noite. Já tinha gente, de
fora das duas famílias adversárias, que antevia o riacho de sangue encharcando
as ruas de Marimbondo. Exagerava-se? Seriam dezenas, centenas de mortes.
Daquela vez, o juiz e o padre
juntaram-se para ajustar a situação. Encontrados debaixo de uma árvore, na
quase escuridão, para os dois só tinha um caminho: o casamento. Ou a moça
ficaria falada. O rapaz tinha dezoito anos e a moça, dezesseis. Eram menores
púberes. Precisariam de autorização. A afilhada de Marcão, órfã de pai e mãe,
era herdeira de um bem avaliado cabedal.
O rapaz se disse satisfeito com o
casamento, mesmo que a família fosse do contra. Moço de opinião. Nisso, provava
ser um Pintado. E com um cabedal à vista... Depois de muito disse-me-disse,
choro da mãe do rapaz, berros de toda a família, ânimos, enfim, serenados,
sabia Deus a qual custo, o casamento foi feito. As brigas ficariam para mais
adiante.
Naquele início de fevereiro, uma
imensidão de caititus invadiu as terras de Marimbondo. Era uma vara enorme.
Devastavam tudo que podiam. Além do mais, alguns foram detectados com a doença
da raiva. Um perigo. Não se sabia de onde tinham vindo. Os donos de
propriedades rurais se uniram contra os invasores. Até os do Sapé-Mirim
entenderam-se com os Pintados. Declararam guerra aos caititus.
O juiz, diante da calamidade causada
pelos porcos-do-mato, não teve alternativa: atendeu a um pedido da Prefeitura
Municipal, autorizando o abate dos intrusos. Naquela manhã da contagem de
Francisquinho de Maria de Terto e de Jugurta de Fenelon bacamarteiro, dois
grupos de caititus foram cercados. Seiscentos foram abatidos. Uns poucos
escaparam. Alívio para a comunidade.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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