José Lima Santana*
Amelinha aproveitava a fresca da
tarde, no oitão da casa, ouvindo o farfalhar das palhas das bananeiras tocadas
pela viração do vento, que vez em quando soprava. Sentada na cadeira de balanço
preferida de Dona Clementina, sua avó, que morava com a filha, o genro e os
quatro netos, desde que viuvou, desde que Antero Queirós dela se despediu numa
boquinha da noite, pouco antes de ser fulminado por um ataque do coração, ainda
homem rijo, na luta com a fazenda de gado, comprando garrotes e vendendo bois
para o abate.
Dona Consuelo, a filha, fez questão
de acolher a mãe, como, ademais, foi o gosto do marido e dos filhos, Amelinha e
os três rapazes, todos apaixonados pela sogra e avó. Família unida, família do
bem-querer.
A única moça, dentre os filhos de
Dona Consuelo, ou seja, Amelinha, acabara de debutar. Era o tempo do glamour
das debutâncias em que rapazes do colegial se travestiam de cadetes, imitando
as fotos das festas de debutantes das capitais, que saiam nas revistas O Cruzeiro
e Manchete. Às vezes, com roupas mal amanhadas, mas era o que se tinha como
cover.
Num buraco como Charco dos Caborjes,
qualquer imitação ultrapassava a realidade. Para alguns. A festa de Amelinha
abalou a cidade. Claro, isso é o modo de dizer. Afinal, não houve nenhum
terremoto. Porém, a grã-finagem do Charco marcou presença. Festa de arromba,
como Gilson Pacheco de Sousa e Amarante costumava dar. Festeiro por DNA. Era
assim a sua família, desde os tempos do baronato. Seu bisavô, Pedro Henrique de
Álvarez e Amarante, foi o Barão do Angico, promovedor de animadas danças de
salão e novenas para tudo que era santo.
De certo mesmo, foi que a cidade
ferveu naquele sábado da debutânçia de Amelinha. De par com ela, um moço
contratado, que era locutor numa rádio da capital. Fez as vezes de
mestre-de-cerimônia e dançou a valsa com a aniversariante. Dançou, não. Fez lá
uns arremedos, uns siricoticos, que fez Duda Marques, pé de valsa de botar no
chinelo até um tal de Fred Astaire, torcer os beiços, dar uns tuncs. “Se fosse
em Pão de Açúcar, minha terra, esse sujeito saía daqui chutado no traseiro”.
Despeita. Também, não era para tanto. Vamos e convenhamos.
Fernando de Lisandro, esse o nome do
dançarino improvisado. Sujeito bem apessoado, falante, mas com um chiado na
voz, ao pronunciar os “esses”, que dava nojo. A Duda Marques. Pelo menos a Duda
Marques. Despeitado que só ele. Segundo pareceu a muita gente, Amelinha
derreteu-se pelo sujeito, qual um picolé ao sol.
Se foi mesmo assim, não cabe nenhuma
censura. Uma debutante era uma debutante. Sonhos. Fantasias. Glamour. Tudo nos
limites e nos conformes. O resto devia ser falação. Festa sem falação não era
festa de verdade.
Quase um ano depois do décimo quinto
aniversário de Amelinha, Fernando Lisandro ainda oferecia músicas a Amelinha,
no seu programa diário na Rádio Aventura. Escrevia cartas semanais. Por três
vezes, esteve na cidade. Visitou a família de Amelinha. O seu programa que era
intitulado “Manhã Alegre”, passou a chamar-se “Sonho de Enamorados”. Uma tolice.
Mas, os pais de Amelinha não desgostavam do que ia ocorrendo. Era um moço da
capital. Locutor famoso. Jovem de futuro. Ver-se-ia no que haveria de dar. Nada
de barreiras nem, tampouco, de ilusões.
“Seu” Germínio dos Correios, no seu
trançar de pernas de rua em rua, entregando cartas e encomendas, foi portador
de um pequeno pacote para Amelinha. Era um livro. Ah, a dedicatória! Amelinha
encheu os olhos de lágrimas. Não era somente uma dedicatória, porém, sim, uma
dedicatória em forma de poema.
Um acróstico, que ela nem sabia o que
significava, até que a professora Lourdes Fontes lhe explicou. A-M-E-L-I-N-H-A.
Cada letra, um verso, formando uma oitava. Lindo! Amelinha não mostrou o livro
a ninguém de casa. Nem a capa. Era só seu. Só seu. Ah, mas nem tudo seriam
flores, na vida da sonhadora Amelinha!
No meio do caminho dos seus sonhos,
tinha uma pedra. E essa pedra era a sua melhor amiga. Ou, ela pensava que
fosse. Dulce de Fabrício de Marta de Joao Domingues. Dulce, Dulce, Dulce...
Criadas juntas, vizinhas, pulando uma casa, de uma para a outra. Colegas de
escola, do Infantil ao Colegial.
Juntas, liam as revistas de amor,
como eram chamadas as revistas Sétimo Céu, Contigo, Capricho... A confidente de
Amelinha, que lhe ajudava a responder as cartas de Fernando Lisandro. Pois foi
a melhor amiga quem abriu a boca e espalhou no Colégio da Mãe Imaculada que o
locutorzinho estava botando Amelinha no caminho da perdição.
O título do livro era “Uma Moca
Perdida”. Voz de rasga-mortalha agourenta: “Com a cabecinha de vento de
Amelinha, logo, logo, a perdição vai bater na porta de “seu” Gilson e dona
Consuelo”.
Dulce contou à mãe, dona Marta de
João Domingues, sobre o título do livro de Amelinha. Dona Marta, prestimosa,
sabia Deus, correu e botou no bico de dona Consuelo. Desta para o marido,
bisneto de Barão. “Seu” Gilson podia ser festeiro, estava enfincado no seu DNA,
mas era um chefe de família de impor limites em sua casa, de dar rédeas curtas,
ou quase, aos meninos, e curtíssimas à filha. “Uma Moça Perdida, Consuelo! Isso
é lá título de livro que um rapaz dê de presente a uma menina que ainda vai
completar 16 anos? Rasgue esse livro maldito, que eu vou me botar pra a capital
e acertar contas com aquele descarado”.
Dona Consuelo chamou Amelinha às
falas, de cinta na mão. “Cadê esse livro de safadezas que aquele maldito da
Rádio lhe mandou? Passe para cá, já e já!”. Uma ordem dura. Nunca um filho de
Gilson e Consuelo discutiu uma ordem dada. Amelinha quis protestar: “Mas,
mãe...”. Nem completou a frase. Recebeu uma cintada nas pernas, que deixou o
vinco. Chorou. Entregou o livro.
Caiu na cama aos prantos. “Uma Moça
Perdida”. Na capa, a foto de uma moça ruiva, no emaranhado de uma floresta. Ah,
dona Consuelo estudou na capital! Colégio de freiras. Sabia das coisas. O emaranhado
da floresta queria dizer a perdição do mundo. Não, na sua casa ninguém se
perderia, muito menos Amelinha.
Ali estava a dedicatória. O
acróstico. No verso da primeira letra, estava escrito: “Amelinha, teus lábios
em flor serão a minha perdição”. Ai! “Miserável! Destruidor de inocências! Uma
surra bem dada é pouco. Gilson, você deve levar consigo Zé Antero, pau pra toda
obra. Quebrar os ossos do infeliz. Arrancar-lhe os bofes”.
Por três semanas, Fernando Lisandro
esteve afastado da Rádio. Ao regressar, trouxe de volta o antigo título do
programa. Nunca mais dedicou músicas a Amelinha. Nem escreveu cartas. Dona
Consuelo não destruiu o livro. Guardou-o a sete chaves. Anos depois, Amelinha
já casada e mãe, dona Consuelo atreveu-se a ler o livro “Uma Moça Perdida”. Era
de um escritor eslavo, que narrava o resgate doloroso de uma moça que se
perdera na floresta boreal russa.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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