sábado, 10 de abril de 2021

UMA MOÇA PERDIDA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Amelinha aproveitava a fresca da tarde, no oitão da casa, ouvindo o farfalhar das palhas das bananeiras tocadas pela viração do vento, que vez em quando soprava. Sentada na cadeira de balanço preferida de Dona Clementina, sua avó, que morava com a filha, o genro e os quatro netos, desde que viuvou, desde que Antero Queirós dela se despediu numa boquinha da noite, pouco antes de ser fulminado por um ataque do coração, ainda homem rijo, na luta com a fazenda de gado, comprando garrotes e vendendo bois para o abate.

Dona Consuelo, a filha, fez questão de acolher a mãe, como, ademais, foi o gosto do marido e dos filhos, Amelinha e os três rapazes, todos apaixonados pela sogra e avó. Família unida, família do bem-querer.

A única moça, dentre os filhos de Dona Consuelo, ou seja, Amelinha, acabara de debutar. Era o tempo do glamour das debutâncias em que rapazes do colegial se travestiam de cadetes, imitando as fotos das festas de debutantes das capitais, que saiam nas revistas O Cruzeiro e Manchete. Às vezes, com roupas mal amanhadas, mas era o que se tinha como cover.

Num buraco como Charco dos Caborjes, qualquer imitação ultrapassava a realidade. Para alguns. A festa de Amelinha abalou a cidade. Claro, isso é o modo de dizer. Afinal, não houve nenhum terremoto. Porém, a grã-finagem do Charco marcou presença. Festa de arromba, como Gilson Pacheco de Sousa e Amarante costumava dar. Festeiro por DNA. Era assim a sua família, desde os tempos do baronato. Seu bisavô, Pedro Henrique de Álvarez e Amarante, foi o Barão do Angico, promovedor de animadas danças de salão e novenas para tudo que era santo.

De certo mesmo, foi que a cidade ferveu naquele sábado da debutânçia de Amelinha. De par com ela, um moço contratado, que era locutor numa rádio da capital. Fez as vezes de mestre-de-cerimônia e dançou a valsa com a aniversariante. Dançou, não. Fez lá uns arremedos, uns siricoticos, que fez Duda Marques, pé de valsa de botar no chinelo até um tal de Fred Astaire, torcer os beiços, dar uns tuncs. “Se fosse em Pão de Açúcar, minha terra, esse sujeito saía daqui chutado no traseiro”. Despeita. Também, não era para tanto. Vamos e convenhamos.

Fernando de Lisandro, esse o nome do dançarino improvisado. Sujeito bem apessoado, falante, mas com um chiado na voz, ao pronunciar os “esses”, que dava nojo. A Duda Marques. Pelo menos a Duda Marques. Despeitado que só ele. Segundo pareceu a muita gente, Amelinha derreteu-se pelo sujeito, qual um picolé ao sol.

Se foi mesmo assim, não cabe nenhuma censura. Uma debutante era uma debutante. Sonhos. Fantasias. Glamour. Tudo nos limites e nos conformes. O resto devia ser falação. Festa sem falação não era festa de verdade.

Quase um ano depois do décimo quinto aniversário de Amelinha, Fernando Lisandro ainda oferecia músicas a Amelinha, no seu programa diário na Rádio Aventura. Escrevia cartas semanais. Por três vezes, esteve na cidade. Visitou a família de Amelinha. O seu programa que era intitulado “Manhã Alegre”, passou a chamar-se “Sonho de Enamorados”. Uma tolice. Mas, os pais de Amelinha não desgostavam do que ia ocorrendo. Era um moço da capital. Locutor famoso. Jovem de futuro. Ver-se-ia no que haveria de dar. Nada de barreiras nem, tampouco, de ilusões.

“Seu” Germínio dos Correios, no seu trançar de pernas de rua em rua, entregando cartas e encomendas, foi portador de um pequeno pacote para Amelinha. Era um livro. Ah, a dedicatória! Amelinha encheu os olhos de lágrimas. Não era somente uma dedicatória, porém, sim, uma dedicatória em forma de poema.

Um acróstico, que ela nem sabia o que significava, até que a professora Lourdes Fontes lhe explicou. A-M-E-L-I-N-H-A. Cada letra, um verso, formando uma oitava. Lindo! Amelinha não mostrou o livro a ninguém de casa. Nem a capa. Era só seu. Só seu. Ah, mas nem tudo seriam flores, na vida da sonhadora Amelinha!

No meio do caminho dos seus sonhos, tinha uma pedra. E essa pedra era a sua melhor amiga. Ou, ela pensava que fosse. Dulce de Fabrício de Marta de Joao Domingues. Dulce, Dulce, Dulce... Criadas juntas, vizinhas, pulando uma casa, de uma para a outra. Colegas de escola, do Infantil ao Colegial.

Juntas, liam as revistas de amor, como eram chamadas as revistas Sétimo Céu, Contigo, Capricho... A confidente de Amelinha, que lhe ajudava a responder as cartas de Fernando Lisandro. Pois foi a melhor amiga quem abriu a boca e espalhou no Colégio da Mãe Imaculada que o locutorzinho estava botando Amelinha no caminho da perdição.

O título do livro era “Uma Moca Perdida”. Voz de rasga-mortalha agourenta: “Com a cabecinha de vento de Amelinha, logo, logo, a perdição vai bater na porta de “seu” Gilson e dona Consuelo”.

Dulce contou à mãe, dona Marta de João Domingues, sobre o título do livro de Amelinha. Dona Marta, prestimosa, sabia Deus, correu e botou no bico de dona Consuelo. Desta para o marido, bisneto de Barão. “Seu” Gilson podia ser festeiro, estava enfincado no seu DNA, mas era um chefe de família de impor limites em sua casa, de dar rédeas curtas, ou quase, aos meninos, e curtíssimas à filha. “Uma Moça Perdida, Consuelo! Isso é lá título de livro que um rapaz dê de presente a uma menina que ainda vai completar 16 anos? Rasgue esse livro maldito, que eu vou me botar pra a capital e acertar contas com aquele descarado”.

Dona Consuelo chamou Amelinha às falas, de cinta na mão. “Cadê esse livro de safadezas que aquele maldito da Rádio lhe mandou? Passe para cá, já e já!”. Uma ordem dura. Nunca um filho de Gilson e Consuelo discutiu uma ordem dada. Amelinha quis protestar: “Mas, mãe...”. Nem completou a frase. Recebeu uma cintada nas pernas, que deixou o vinco. Chorou. Entregou o livro.

Caiu na cama aos prantos. “Uma Moça Perdida”. Na capa, a foto de uma moça ruiva, no emaranhado de uma floresta. Ah, dona Consuelo estudou na capital! Colégio de freiras. Sabia das coisas. O emaranhado da floresta queria dizer a perdição do mundo. Não, na sua casa ninguém se perderia, muito menos Amelinha.

Ali estava a dedicatória. O acróstico. No verso da primeira letra, estava escrito: “Amelinha, teus lábios em flor serão a minha perdição”. Ai! “Miserável! Destruidor de inocências! Uma surra bem dada é pouco. Gilson, você deve levar consigo Zé Antero, pau pra toda obra. Quebrar os ossos do infeliz. Arrancar-lhe os bofes”.

Por três semanas, Fernando Lisandro esteve afastado da Rádio. Ao regressar, trouxe de volta o antigo título do programa. Nunca mais dedicou músicas a Amelinha. Nem escreveu cartas. Dona Consuelo não destruiu o livro. Guardou-o a sete chaves. Anos depois, Amelinha já casada e mãe, dona Consuelo atreveu-se a ler o livro “Uma Moça Perdida”. Era de um escritor eslavo, que narrava o resgate doloroso de uma moça que se perdera na floresta boreal russa.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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