José Lima Santana*
Pegou em cheio. Foi quase mortal. A
pancada fez Ciço Picadinho ser jogado ao chão, contorcendo-se de dor, sufocado,
querendo falar sem poder. Bufou. Lágrimas saltaram de seus olhos com a
ligeireza do espanto. Suas partes fracas pareciam esmigalhadas. Continuaria a
ser homem ou sua macheza iria parar no beleléu?
Dor lancinante. Haveria remédio para
o seu caso? Da farmácia de “seu” João Paes? De uma garrafada de Davi da Malhada
dos Coqueiros? A dor era insuportável. Não conseguiu contê-la. Urrou. Ninguém
para acudi-lo. Ali, somente ele e Mocinha. O que se passava com ela? Ciço nada
fizera para tamanha revolta. Ela quase o matou. Se a pancada tivesse atingido a
cabeça, teria sido fatal.
A relação dele com Mocinha, de uns
tempos para cá, não andava bem. No começo, tudo foram flores. Desde o dia em
que decidiu tê-la como sua, ele se desvelou por ela. Deram-se bem, como se
tivessem sido feitos um para o outro, ou seja, ela para ele. Podia-se mesmo
dizer que fora “amor à primeira vista”, tão logo ele a conheceu, debaixo da
mangueira rosa do quintal de “seu” Américo Mendonça, no povoado Xique-Xique.
Ciço bateu o olho em Mocinha e
derreteu-se todo. Não se sabia dizer se ela também bateu o olho nele, naquele
momento, uma manhã de sol brando no fim da primavera. A mangueira estava
florida e uns brotos de manguinhas já se deixavam ver. Ah, dona Rosita fazia-se
nos cobres, vendendo as deliciosas mangas!
Era a segunda esposa de “seu”
Américo. A primeira morreu de parto, no terceiro filho. A culpa teria sido de
um chá de espirradeira, que, algumas parteiras menos tarimbadas o ministravam
para ajudar no momento do parto. Porém, o chá servia também como abortivo. Daí
algumas mulheres acabavam perdendo a vida. Dona Rosita era prima da mãe de
Ciço. Deu-lhe um prestimoso adjutório na conquista de Mocinha.
Ciço tinha vinte e poucos anos. Antes
de Mocinha, já tivera outras duas. Passageiras. Mas aquela seria definitiva.
Ele assim pensava. Não mediu esforços para tê-la. Ah, despertaria o desejo e a
inveja de muitos!
Naquela tarde, ali estava Ciço
Picadinho contorcendo-se de dor. Um sujeito de sangue no olho seria capaz de
dar fim a Mocinha. Mas, não Ciço. Ele era arriado por ela. E apesar da
inesperada pancada que recebera, ele ainda seria capaz de continuar com ela.
Quantos marmanjos desejavam Mocinha! Então, como ele poderia deixa-la à mercê
de aproveitadores que a queriam com um simples estalar de dedos?
Ciço tentou levantar-se. A dor nas
partes baixas parecia ganhar o corpo todo. Estava definitivamente moído. O
pensamento fervilhou. “Por que, Mocinha? Por que?”. Depois do golpe, ela se
afastou como se não tivesse feito nada. Não parecia ouvir os urros de dor
daquele que torrou os cabelos da cabeça para tê-la. Porém, ela não estava nem
aí. Na verdade, era fria. Não demonstrou sentimentos. Nem poderia. Rústicos
instintos.
A convivência harmoniosa entre Ciço e
Mocinha começou a mudar um ano depois da união entre eles. De início, até que a
situação foi satisfatória. De tudo, é verdade, ele fez para agradá-la. Gostava
de vê-la bem asseada, bem arrumada, para chamar a atenção dos outros. E Mocinha
fazia uma bela figura. Era, sim, uma bela figura.
Boa altura, pernas bem feitas, corpo
de não encontrar rival da Ribanceira de Zuza ao Brejo das Cobras, do Matão do
Alto à Serra dos Papagaios. Não faltavam marmanjos se roendo de desejos por
ela. Porém, Mocinha era de Ciço. Só dele. Que ninguém se atrevesse a meter-se
entre eles.
Traição. Foi o que ocorreu naquela
tarde. Mocinha traiu a confiança que Ciço lhe depositava. Ainda no chão,
arrastando-se no gramado, tentando alcançar a calçada de cimento da casa, ele
quis se dar conta, como se fosse uma espécie de fuga, de que ela nunca merecera
a sua confiança.
De uns tempos para cá, ela foi se
mostrando arisca, dando uns sinais de que alguma coisa não andava bem. Nem
sempre ela o ouvia, nem sempre queria lhe atender. Ficava de venetas.
Enfim, Ciço Picadinho alcançou a
calçada. A dor ainda era muito forte. A pancada desferida por Mocinha tinha
sido pior do que um golpe cruzado no queixo ou no fígado, desferido por um
boxeador peso-pesado no seu oponente de guarda aberta. Ciço conseguiu, a duras
penas, sentar-se. Segurou as partes baixas com as duas mãos, como se quisesse
aliviar a dor. Não aliviava. Encostou-se num banco de madeira. Mocinha tinha
sumido de sua vista.
A vida tinha surpresas nem sempre
agradáveis. Porém, aquela estava fora de cogitação. Mesmo sentindo mudanças no
comportamento de Mocinha, ele jamais esperou aquela terrível reação. “Mocinha!
Mocinha”!
Se sua mãe, dona Margarida, estivesse
ali, por certo faria a fervura de folhas de malva branca, um santo remédio para
inchaços e inflamações. Melhor que remédio de farmácia ou garrafadas de
pai-de-santo. Todavia, a mãe estava na cidade, acudindo a filha mais nova, em
dias de ganhar neném.
Ciço sentiu uma tontura. A vista
ficou anuviada. Pendeu a cabeça. Sentiu que poderia desmaiar, o que não seria
bom. Sozinho, naquele estado, poderia até morrer. E Mocinha ficaria aí,
fanfando. Outro acabaria lhe passando a perna, escovando o seu pelo, aparando a
sua crina.
Mocinha era a burra castanha de Ciço
Picadinho, comprada por seis contos de réis. Um dinheirão. O coice que ela lhe
desferiu atingiu em cheio os seus documentos de macho. Ciço gostava de uma
burra aprumada. As duas anteriores foram muito boas, mas Mocinha desarredava.
Não tinha igual.
Chocalhos de vacas tilintaram por
perto. Um cachorro latiu. Severino, irmão de Ciço, foi-se chegando, para
prender os bezerros das vacas leiteiras. Acudiu o irmão.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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