sexta-feira, 14 de maio de 2021

OS CALOTEIROS


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Dagoberto Martins de Souza Medeiros e Albuquerque. Coronel. Rei da empáfia. Sujeito de venta empinada. Mal e mal pisava no chão. Dizia-se na cidade que o tal era provindo da Paraíba. Ao certo, porém, não se sabia. Estava na cidade há uns bons lustros. Nos últimos anos, após perder, na jogatina, a propriedade rural onde outrora funcionara o Engenho Samambaia, herança da esposa, passava os dias de casa para o bar de João Gomes, lorotando, jogando gamão e arrotando lodaças. “Hum, num vale um peido frouxo, esse aí. Num tem pataca nem caráter”, vociferava Pedrinho de Amintas do Pau D’Arco, a goela mais solta que o mundo conhecia. Coronel de quê mesmo? “De nada. Nunca que teve patente nem galão. É coronel da boca dele para a boca do povo miúdo, acostumado a dizer ‘sim sinhô’ a qualquer um que empina a venta”. Ah, Pedrinho falador! Porém, o povo falava que o coronel tinha uma fortuna em dobrões de ouro.

O coronel Dagoberto precisava casar a única filha, encalhada, morrendo de dores e sem amores. Uma donzela em casa, caminhando para o caritó era uma lástima para qualquer família. Os moleques faziam algazarra à porta da donzela, serrando um pedaço de pau: “Serra, serra, serra serrador / serrando a madeira de Nosso Senhor”. Era a madeira do caixão da vitalina.

Como casar Anália Maria, caída nos anos, passando dos trinta e cinco, se atrativo material não tinha a família? Não que ela não fosse uma mulher de boas feições. Boa cara e bom corpo ela tinha, não havia como negar. Mas, o pai só tinha mesmo a venta empinada e o casarão onde a família morava, caindo aos pedaços, por bem dizer. Um dinheirão, para fazer uma boa reforma.

Passada dos anos, Anália Maria já devia ser maninha. Não haveria de gerar filhos. Um homem precisava fazer filhos com uma mulher boa parideira. Era o costume do lugar. Podia até ser um costume cruel para com certas mulheres, mas era o costume. E era o sertão.

Se já não tinha pataca, a não ser na figuração popular, de onde vinha a falta de caráter, denunciado por Pedrinho de Amintas? Dos calotes. O coronel era dado a empreender pequenos calotes, pois os grandes ele não conseguia mais. Ninguém confiava nele. Um ou outro incauto ainda caía em suas lodaças, por ninharias.

A salvação da família era Dona Clotilde, filha de uma abastada e nobre família da Várzea, com homens ilustres na vida política, social, econômica e literária do Estado. De uns irmãos, desde a derrocada do coronel, ela recebia uma espécie de mesada mensal, com a qual sustentava o passadio da casa.

Além disso, ela se dedicava a bordar peças em cambraia de linho, que as vendia para parentes, na capital. Não as vendiam ali na cidade, para não dar o braço a torcer à gentalha. De qualquer forma, a empáfia circundava a família. Não era para menos. A burguesia decadente era uma desgraça.

As trovoadas do fim do ano já davam sinal de formação. A terra ressecada fazia exalar um calorão insuportável. O mormaço tomava conta dos dias e das noites. Ao longe, muito longe, relâmpagos riscavam os céus, como serpentes de fogo. Uma semana depois, por volta das onze horas, o céu se fechou. Parecia noite, pouco antes do meio-dia. Trovões e relâmpagos fizeram a professora Glória meter-se na cama. Que medo, ela tinha das trovoadas! Foram duas horas de chuva grossa sem parar um só minuto.

Nas ruas, as águas desciam de valeta a valeta, como se fossem riachos. Um raio caiu nas proximidades do açude municipal, matando duas cabeças de gado de Nelito de Leonardo Borobo. A chuvarada deu uma trégua de mais ou menos meia hora. Depois disso, as torneiras de São Pedro se abriram como no dilúvio de Noé. O mundo parecia estar fadado a ser destruído pelas águas. Choveu até a boquinha da noite. Casas inundadas, casas destelhadas, paredes de taipa no chão. Um desmantelo. Gente humilde ao relento.

Naquela tarde de dilúvio, um homem procurou abrigo no casarão do coronel Dagoberto. Anália Maria, a filha vitalina, acudiu o viajante. Dona Clotilde rezava no quarto, enquanto o coronel espremia-se na cadeira de balanço, na sala de jantar. Acolhendo-o, de pronto a filha deu de saber ao pai da presença do homem.

O coronel arrastou-se até a varanda para receber o sujeito. Era, segundo ele o disse, um comprador de boiadas, um boiadeiro de Conceição do Pilar. Vivia de comprar partidos de bois prontos para a matança, que os revendia para frigoríficos. Tivera notícia, na feira de gado de Chapadão do Gentio, que dali era morador um seu parente distante, exatamente o coronel Dagoberto, primo em terceiro grau do seu pai, Feliciano Correia de Melo Medeiros e Albuquerque, de Cruz dos Afonsos. O coronel animou-se na presença de um parente. Convidou-o a pernoitar. No vasto quintal, o cavalo do parente foi apeado.

Depois do jantar, o coronel e o parente distante, ficaram na conversa até as dez horas. O coronel tentava se lembrar do primo Feliciano. A cabeça já não funcionava bem, a memória dos tempos idos começava a dar sinais de lapsos. Feliciano... “Como era o nome do seu avô?”. Cismou mais um pouco. Sim, lembrava vagamente de um primo chamado Anacleto, um Medeiros e Albuquerque que se fizera nas armas contra Antônio Silvino, o grande bandoleiro, anterior a Lampião. Vagas lembranças.

Pela manhã, após o desjejum, Geraldo, esse o nome do visitante, despediu-se, agradecido. Iria comprar uma boiada no município vizinho, Serrinha, se as estradas dessem condições de tráfego. Na despedida, um olhar indecoroso para a suposta prima Anália Maria. Ela corou. Baixou os olhos. Um calafrio sacudiu o seu corpo, como se o rejuvenescesse.

Duas semanas depois, eis uma carta de Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque para o coronel, pedindo licença para namorar Anália Maria. “Oh, Deus bendito!”, entusiasmou-se Dona Clotilde, não menos entusiasmada que a filha. Enfim, a possibilidade de deixar o caritó. Enfim, um partido de não jogar fora.

Além de aparentado, um boiadeiro, que se fazia na vida comprando e vendendo grandes partidos de gado. Devia estar bem de vida. Não devia viver a contar tostões. Anália Maria já tinha, há muito, um enxoval pronto. Era só passar na água, na goma de tapioca e no ferro de engomar.

Casamento marcado. O noivo queria uma cerimônia simples. Os pais, doentes, não poderiam comparecer. Era filho único, disse. Pouca gente na igreja. Antes da cerimônia matrimonial, como era de costume, Berto Sacristão cobrou ao noivo o valor da espórtula do casamento. Um vexame. Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque não tinha um tostão furado para fazer o pagamento.

Era um aventureiro, que, na feira de Chapadão do Gentio, ouviu falar no coronel do casarão, que tinha uma filha encalhada. Dizia-se que o velho era sovina, mas tinha um cabedal considerável em dobrões de ouro. Fantasias do povo. E ali, aos pés do altar, estava mais um caloteiro a ser sustentado por Dona Clotilde.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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