José Lima Santana*
Dagoberto Martins de Souza Medeiros e
Albuquerque. Coronel. Rei da empáfia. Sujeito de venta empinada. Mal e mal
pisava no chão. Dizia-se na cidade que o tal era provindo da Paraíba. Ao certo,
porém, não se sabia. Estava na cidade há uns bons lustros. Nos últimos anos,
após perder, na jogatina, a propriedade rural onde outrora funcionara o Engenho
Samambaia, herança da esposa, passava os dias de casa para o bar de João Gomes,
lorotando, jogando gamão e arrotando lodaças. “Hum, num vale um peido frouxo,
esse aí. Num tem pataca nem caráter”, vociferava Pedrinho de Amintas do Pau
D’Arco, a goela mais solta que o mundo conhecia. Coronel de quê mesmo? “De
nada. Nunca que teve patente nem galão. É coronel da boca dele para a boca do
povo miúdo, acostumado a dizer ‘sim sinhô’ a qualquer um que empina a venta”.
Ah, Pedrinho falador! Porém, o povo falava que o coronel tinha uma fortuna em
dobrões de ouro.
O coronel Dagoberto precisava casar a
única filha, encalhada, morrendo de dores e sem amores. Uma donzela em casa,
caminhando para o caritó era uma lástima para qualquer família. Os moleques
faziam algazarra à porta da donzela, serrando um pedaço de pau: “Serra, serra,
serra serrador / serrando a madeira de Nosso Senhor”. Era a madeira do caixão
da vitalina.
Como casar Anália Maria, caída nos
anos, passando dos trinta e cinco, se atrativo material não tinha a família?
Não que ela não fosse uma mulher de boas feições. Boa cara e bom corpo ela
tinha, não havia como negar. Mas, o pai só tinha mesmo a venta empinada e o casarão
onde a família morava, caindo aos pedaços, por bem dizer. Um dinheirão, para
fazer uma boa reforma.
Passada dos anos, Anália Maria já
devia ser maninha. Não haveria de gerar filhos. Um homem precisava fazer filhos
com uma mulher boa parideira. Era o costume do lugar. Podia até ser um costume
cruel para com certas mulheres, mas era o costume. E era o sertão.
Se já não tinha pataca, a não ser na
figuração popular, de onde vinha a falta de caráter, denunciado por Pedrinho de
Amintas? Dos calotes. O coronel era dado a empreender pequenos calotes, pois os
grandes ele não conseguia mais. Ninguém confiava nele. Um ou outro incauto
ainda caía em suas lodaças, por ninharias.
A salvação da família era Dona
Clotilde, filha de uma abastada e nobre família da Várzea, com homens ilustres
na vida política, social, econômica e literária do Estado. De uns irmãos, desde
a derrocada do coronel, ela recebia uma espécie de mesada mensal, com a qual
sustentava o passadio da casa.
Além disso, ela se dedicava a bordar
peças em cambraia de linho, que as vendia para parentes, na capital. Não as
vendiam ali na cidade, para não dar o braço a torcer à gentalha. De qualquer
forma, a empáfia circundava a família. Não era para menos. A burguesia
decadente era uma desgraça.
As trovoadas do fim do ano já davam
sinal de formação. A terra ressecada fazia exalar um calorão insuportável. O
mormaço tomava conta dos dias e das noites. Ao longe, muito longe, relâmpagos
riscavam os céus, como serpentes de fogo. Uma semana depois, por volta das onze
horas, o céu se fechou. Parecia noite, pouco antes do meio-dia. Trovões e
relâmpagos fizeram a professora Glória meter-se na cama. Que medo, ela tinha
das trovoadas! Foram duas horas de chuva grossa sem parar um só minuto.
Nas ruas, as águas desciam de valeta
a valeta, como se fossem riachos. Um raio caiu nas proximidades do açude
municipal, matando duas cabeças de gado de Nelito de Leonardo Borobo. A
chuvarada deu uma trégua de mais ou menos meia hora. Depois disso, as torneiras
de São Pedro se abriram como no dilúvio de Noé. O mundo parecia estar fadado a
ser destruído pelas águas. Choveu até a boquinha da noite. Casas inundadas,
casas destelhadas, paredes de taipa no chão. Um desmantelo. Gente humilde ao
relento.
Naquela tarde de dilúvio, um homem
procurou abrigo no casarão do coronel Dagoberto. Anália Maria, a filha
vitalina, acudiu o viajante. Dona Clotilde rezava no quarto, enquanto o coronel
espremia-se na cadeira de balanço, na sala de jantar. Acolhendo-o, de pronto a
filha deu de saber ao pai da presença do homem.
O coronel arrastou-se até a varanda
para receber o sujeito. Era, segundo ele o disse, um comprador de boiadas, um
boiadeiro de Conceição do Pilar. Vivia de comprar partidos de bois prontos para
a matança, que os revendia para frigoríficos. Tivera notícia, na feira de gado
de Chapadão do Gentio, que dali era morador um seu parente distante, exatamente
o coronel Dagoberto, primo em terceiro grau do seu pai, Feliciano Correia de
Melo Medeiros e Albuquerque, de Cruz dos Afonsos. O coronel animou-se na
presença de um parente. Convidou-o a pernoitar. No vasto quintal, o cavalo do
parente foi apeado.
Depois do jantar, o coronel e o
parente distante, ficaram na conversa até as dez horas. O coronel tentava se
lembrar do primo Feliciano. A cabeça já não funcionava bem, a memória dos
tempos idos começava a dar sinais de lapsos. Feliciano... “Como era o nome do
seu avô?”. Cismou mais um pouco. Sim, lembrava vagamente de um primo chamado
Anacleto, um Medeiros e Albuquerque que se fizera nas armas contra Antônio
Silvino, o grande bandoleiro, anterior a Lampião. Vagas lembranças.
Pela manhã, após o desjejum, Geraldo,
esse o nome do visitante, despediu-se, agradecido. Iria comprar uma boiada no
município vizinho, Serrinha, se as estradas dessem condições de tráfego. Na
despedida, um olhar indecoroso para a suposta prima Anália Maria. Ela corou.
Baixou os olhos. Um calafrio sacudiu o seu corpo, como se o rejuvenescesse.
Duas semanas depois, eis uma carta de
Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque para o coronel, pedindo licença
para namorar Anália Maria. “Oh, Deus bendito!”, entusiasmou-se Dona Clotilde,
não menos entusiasmada que a filha. Enfim, a possibilidade de deixar o caritó.
Enfim, um partido de não jogar fora.
Além de aparentado, um boiadeiro, que
se fazia na vida comprando e vendendo grandes partidos de gado. Devia estar bem
de vida. Não devia viver a contar tostões. Anália Maria já tinha, há muito, um
enxoval pronto. Era só passar na água, na goma de tapioca e no ferro de
engomar.
Casamento marcado. O noivo queria uma
cerimônia simples. Os pais, doentes, não poderiam comparecer. Era filho único,
disse. Pouca gente na igreja. Antes da cerimônia matrimonial, como era de
costume, Berto Sacristão cobrou ao noivo o valor da espórtula do casamento. Um
vexame. Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque não tinha um tostão
furado para fazer o pagamento.
Era um aventureiro, que, na feira de
Chapadão do Gentio, ouviu falar no coronel do casarão, que tinha uma filha
encalhada. Dizia-se que o velho era sovina, mas tinha um cabedal considerável
em dobrões de ouro. Fantasias do povo. E ali, aos pés do altar, estava mais um
caloteiro a ser sustentado por Dona Clotilde.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana
de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação
e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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