José Lima Santana*
Janjão de Totoin Peidão era useiro e
vezeiro em botar apelidos nas pessoas. Um era Boca de Lata; outro, Sapo Morto;
uma era Chica Rabo de Cotia; outra, Ciça Mula Sem Cabeça... E por aí iam os
apelidos. Ali, em Borda dos Angicos, todo mundo tinha um apelido. Até Janjão.
Chamavam-no Assobio de Jegue, porque, de acordo com a avaliação abalizada de
Rute Coceirinha, o tal vivia relinchando como jumento, nos seus dizeres mal
ditos.
Pensem os leitores num sujeitinho
enxerido, dando conta de tudo que se passava, ou não se passava, naquele
arremedo de cidade, que mais parecia um povoadozinho xexelento de pé de grota,
como tantos que havia nos sertões do Barro Preto, terras ásperas, onde achar um
veio d’água era um milagre como aqueles dos tempos do Filho do Criador.
Assobio de Jegue deu de inventar
“cornuras” nas pessoas da cidade vizinha, a mais próxima. Sim, apontar chifres
enfeitando testas de homens e mulheres em Capim Alto, era o seu “esporte”
favorito. Para ele, todo mundo era corno ou corna. Corna, na boca do povo, bem
sabido. Porque a palavra corno não flexiona, serve para os dois gêneros.
Corna, na verdade, é buzina em
italiano, língua na qual Assobio de Jegue era doutor. Oxente! Doutor em
italiano, Janjão de Totoin Peidão? Sì e perché no? Então, ele não arribou para
São Paulo, num dos anos mais secos que canela de defunto, da cova tirada três
ou quatro anos depois do sepultamento?
Pois foi. E por lá meteu-se de
trabalhar como ajudante de padeiro na padaria de uma italianada do Bexiga,
bairro paulistano dessa gringada das Europas. Na volta, depois de seis meses
por lá passados, falava italiano melhor do que os nativos da terra onde o Santo
Padre tem assento.
Foi um botar de banca infeliz! Era um
tal de boun giorno (que ele dizia “bondjurnu”), um tal de grazie mille (ou
“grassmili”, na boca dele) e o escambau. Voltou mais falante do que Ariosto,
Petrarca, Boccaccio, Dante Alighieri, Umberto Eco, Italo Calvino, Elena
Ferrante, Alberto Moravia e o menos maquiavélico de todos os gênios dos
tratados políticos, ele, sim, Nicolau Maquiavel.
E, claro, de tantos outros filhos da
Calabria, da Toscana, do Lazio, do Veneto, da Umbria, da Lombardia (para os
milaneses, essa é a verdadeira Itália) ou de qualquer outra região da famosa
“Bota Europeia”.
De tanto entortar o bico para parlare
italiano, Assobio de Jegue, batizado como João e registrado como João dos
Santos Casado, caiu nas graças da filha de Desidério Pinto, tropeiro das
antigas, que viu rachar muitos cascos de mulas pelos sertões afora. Lucinha
achava uma graça o namorado falante em língua das estranjas.
Aliás, um homem de futuro, podia-se
ver. Na corporação da Briosa. Pois deu Assobio de Jegue, muito bem apadrinhado,
de assentar praça na Polícia Militar, façanha de um primo de sua mãe, que era
metido a trocar pernas ao lado de políticos. Envergando a farda cáqui, Assobio
de Jegue passou a ser o soldado João de Totoin. Uma autoridade a merecer o
respeito de todos.
Quem não lembra da autoridade do
Soldado Amarelo, diante de Fabiano, de Vidas Secas, estando aquele perdido na
caatinga e o vaqueiro de Graciliano Ramos com ganas de descer o facão no quengo
do tal sujeito, que lhe dera uma surra num jogo de cartas, no qual o marido de
Sinhá Vitória entrou por absoluta pressão do soldado sem sangue? Fez aquilo
não. Não lhe rachou o quengo. Ali estava a autoridade, representada pelo
soldadinho amarelo. Melhor respeitar.
Mal completou oito meses de farda
cáqui, Assobio de Jegue, quer dizer, o soldado João de Totoin viu-se diante do
altar da igrejinha de Nossa Senhora do Pilar, olho no olho de Lucinha, que
passaria a chamar-se Maria Lúcia Pinto Casado. O parente distante, que lhe
apadrinhara na entrada para a vida militar, viera de longe com a esposa, uma
matrona cheia de vontades e de cara amuada.
O primo já chegou falando em votos
para o deputado Fulano, de quem era cabo eleitoral. A eleição ainda seria dali
a dois anos. Não custava, porém, prevenir. Em política, naqueles tempos,
devia-se ter passo ligeiro e bolso fundo. “Passarinho madrugador é sempre o
primeiro cantor”, dizia o cabo eleitoral.
Festança em ordem de pobre. Casamento
mais do que promissor. No bucho, Lucinha de Desidério já levava, sem saber,
dois filhos. Um era a conta de que ela tinha certeza, mas eram dois. O soldado
Assobio de Jegue, ou seja, João de Totoin, não era de bater fofo.
Passado um ano e pouco, João de
Totoin foi mudado de cidade. Mandado a destacar em Capim Alto, a cidade, onde,
segundo ele, todo mundo botava e levava chifres. Imaginem os leitores que, nos
confins dos sertões, as falas boas ou más, estas mais ainda, circulavam como
moscas varejeiras. Pois, então?
Em Capim Alto, muita gente já sabia
que Assobio de Jegue, frequentador daquela localidade, especialmente no dia de
feira, o sábado, pois fora feirante, antes de tornar-se um homem da Briosa,
andara difamando as pessoas dali. Num dos dias de feira, um caboclo sem papas
na língua perguntou-lhe se confirmava o que dele se dizia, qual seja, a má fama
que, segundo os boatos, ele botara nas pessoas de bem, pois de bem eram todas,
no entendimento do caboclo.
Assobio de Jegue, pois assim ainda o
era, desconversou, ficou da cor de burro quando foge, maneou o quengo e falou
meio-gago: “Que é isso, amigo? Aqui é lugar de gente da maior finura”. O
interpelador deu-se por satisfeito e tirou a mão da cintura, onde já se
esperneava um três-oitão canela seca.
Águas passadas. Agora, ali estava o
soldado João de Totoin, destacando em Capim Alto. No seu primeiro dia de
serviço, no quartel quase a desabar de tão velho e maltratado como se
encontrava, o outrora Assobio de Jegue indagou ao cabo Pedro Pessoa: “Ô seu
cabo, é verdade que todas as mulheres daqui de Capim Alto gostam de enfeitar a
testa dos maridos?” Sério, o cabo Pessoa respondeu: “Sim. Todas, menos uma”. A
curiosidade do soldado foi aguçada ao patamar mais alto que podia: “Só uma não
bota ponta, seu cabo? E se pode saber qual é?”. Resposta sem titubear do cabo:
“A sua, porque chegou hoje”.
Era uma tarde calorenta e sem vento.
Assobio de Jegue murchou a crina. Tirou o quepe. Abanou-se. Nem sei se assobiou.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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