Antônio Carlos Sobral Sousa*
O
café, antes de se tornar a bebida mais popular do Brasil, percorreu uma
lendária e polêmica trajetória mundo a fora. Os frutos do cafeeiro, planta
nativa da Etiópia, passaram a ser consumidos pelos etíopes, por volta de 575
d.C. após uma inusitada descoberta por um pastor etíope denominado Kaldi.
Todavia,
foi na Arábia que a planta passou a ser cultivada, recebendo o nome de Kaweh e
a bebida produzida a partir do seu fruto, de cor amarelo-avermelhado foi
chamada de Kahwah ou Cahue, que significa força. Segundo relatos, foram os
turcos, durante o império Otomano, os responsáveis pela difusão da bebida, com
a fundação em 1475, em Constantinopla, atual Istambul, da primeira cafeteria, o
Kiva Han.
Os
vienenses, por volta de 1615, introduziram a iguaria na Europa, com a fundação
da Botteghe del Caffè, popularizando o hábito de torrar, moer, coar e adoçar. A
nova bebida do oriente, todavia, desagradou a influente classe religiosa
europeia, causando questionamentos que serviram de inspiração para que ela
fosse romantizada, mediante a Cantata do Café, composta pelo renomado músico
alemão Johann Sebastian Bach, em 1732.
Coube
aos holandeses, no século XVI, detentores do controle do comércio europeu,
disseminar o “ouro negro” pelo mundo. A primeira muda da planta chegou ao
Brasil, por volta de 1727, oriunda da Guiana Francesa, trazida pelo
Bandeirante, a serviço da coroa portuguesa, Francisco de Melo Palhete.
Porém,
somente no século XIX, na região Sudeste, a cultura do café ganhou mais
representatividade, impulsionada pela escassez do ouro e pela alta concorrência
do açúcar, constituindo alternativa necessária para manutenção da opulenta
classe aristocrática.
Os
tipos de café, atualmente produzidos em solo brasileiro, são, principalmente, o
arábica e o robusta (ou conilon), beneficiando inúmeros municípios e nos
projetando como um dos maiores produtores e exportadores do mundo. Rico em
cafeína, que tem ação estimulante sobre o sistema nervoso, o café tem sido
muito utilizado para aumentar o estado de alerta e mitigar a sonolência e a
fadiga comuns em situações de labor ou de estudos excessivos e, também, em
práticas esportivas.
A
quantidade de cafeína, por xícara de café, varia com o tipo do produto, o
expresso (90mg a 200mg) e o instantâneo ou coado (150mg a 300mg). Este efeito,
tem gerado preocupação de que a cafeína possa aumentar o risco de arritmias
cardíacas, particularmente a Fibrilação Atrial (FA), a forma mais comum de
arritmia sustentada, acometendo, aproximadamente, 2% da população.
Vários
estudos têm demonstrado que doses moderadas de cafeína são bem toleradas por
portadores de arritmias e que, surpreendentemente, ela possa oferecer proteção
contra a incidência de FA. Vale lembrar que o "gene do café" (CYP1A2)
auxilia o metabolismo da cafeína e pode ser afetado por hábitos como o de
fumar.
Pessoas
com o referido gene, em pleno funcionamento, metabolizam, normalmente o café,
que pode ser ingerido sem provocar efeitos desagradáveis. Por outro lado,
quando este gene sofre mutações, a metabolização da substância pode ser
desacelerada e seus efeitos serem mais intensos e duradouros.
Para
responder ao questionamento se a ingestão habitual de café está associada ao
risco de arritmias cardíacas (FA ou Flutter, Taquicardia Supraventricular ou
Ventricular e Extrassístole Supraventricular ou Ventricular), e se tal
associação é modificada por variantes genéticas que afetam o metabolismo da
cafeína, foi recém-publicado, no JAMA Internal Medicine
(Doi:10.1001/jamainternmed.2021.3616), um grande estudo populacional.
Foram
analisados, prospectivamente, por um período de três anos, 386.258 indivíduos
com idade média de 56 anos, sendo 52% do sexo feminino, recrutados do Biobanco
do Reino Unido. Após ajustar para dados demográficos, hábitos de vida e
condições que poderiam afetar os batimentos cardíacos, cada xícara adicional de
café, consumida habitualmente, foi associada a uma redução, significativa, de
3% do risco de incidência de arritmias.
Quando
analisadas isoladamente, resultados semelhantes foram, também, observados,
tanto para a FA e/ou Flutter como para a Taquicardia Supraventricular. Os
autores não encontram evidências de que o metabolismo da cafeína, mediado
geneticamente, afetasse essa associação.
A
randomização mendeliana, usando sete polimorfismos genéticos, também, falhou em
fornecer evidências de que o consumo de cafeína estava associado a arritmias.
As propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias, catecolaminérgicas,
bloqueadora de receptores da adenosina, dentre outras, do café, têm sido
responsabilizadas por essas ações protetoras contra algumas arritmias.
Em
conclusão, o consumo moderado de café é, provavelmente, mais benéfico do que
prejudicial à saúde, não sendo a cafeína, droga arritmogênica. Todavia, as
evidências não devem ser tomadas como prova de que o café deve ser prescrito
como “medicamento” antiarrítmico.
Finalizo,
parafraseando o escritor alemão Johann Goethe: “É da moderação que nasce a
maior das virtudes.”
*Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
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