José Lima Santana*
Sinto
fugir de mim as forças do meu ser. As que restam. Escuridão à minha volta. Onde
está Margarida? Os meus filhos, onde estão? Vou morrer sozinho, nesta casa de
paria, comprada há uma semana. Aqui, sem ninguém e sem vela. Velas ninguém
acende mais, para iluminar o caminho da alma liberta da matéria carcomida pelo
tempo ou por alguma desgraça momentânea.
Agora, só
se morre em hospitais, quase nunca em casa, no último aconchego dos seus. O Dr.
Milton me aconselhou a nunca estar sozinho, depois de dois infartos. Órgão
traiçoeiro é o coração. Dá de perder energia vital a qualquer momento. Não
consigo pegar o remédio sublingual.
Tateio
nesse escuro que me envolve. Olho em volta, nada vejo. Margarida não vem. Não
também os meninos. Andrezinho e Rachel. Meus amores, que sinto deixar, se minha
hora chegou. E Margarida, a esposa que encheu os meus dias de afeto. Corajosa.
Paciente. Misericordiosa. Soube esperar que os meus dias de traição fossem
consumidos e eu retornasse à minha consciência de homem casado.
Fraquejei.
Fui um pulha. Aquela morena entortou o meu caráter. Ou eu me entortei por causa
dela. Por meu próprio desejo. Margarida e os meninos só vêm à tarde, depois das
aulas. Eu vim antes, para algumas providências. Estou só. Nem gritar eu
consigo. Tento, mas o pedido de socorro não sai. Garganta travada.
O coração
parece não querer que eu continue por aqui. Dores nos braços, tomando-me por
inteiro. O peito também dói. O sangue parece não estar sendo bombeado como
devia. Vou morrer. Vou morrer. Deixar este mundo aos 49 anos. É tão cedo...
Andrezinho e Raquel sem pai. Mal começando a faculdade. Meus gêmeos. Meus
amores.
Ambos
futuros médicos. Não vão ter tempo de acudir o pai. O fôlego está indo embora.
Nó apertado no meu pescoço. Vi muitos filmes de faroeste. Homens enforcados,
corda quebrando nervos, pés estremecendo, corpos inertes, enfim. Sinto-me como
num processo de enforcamento.
Aquela
morena, Anne Louise, fez-me endoidecer. Mal entrado nos 40, cai no precipício
dos amantes cegos. Fiz Margarida sofrer. E os meninos. A mãe soube acalmá-los.
Nunca saí de casa, nem quando Margarida descobriu o meu descaminho. Fui
acolhido. Fui perdoado.
Tornei-me
um homem triste. A cada vez que olhava para Margarida, o meu coração, fraco por
natureza, parecia perder pulsos. Passei quase um ano sem coragem para tocá-la.
Eu me tornei quase um zumbi. Caído em mim, arrependido, chorei muitas vezes.
Toda vez que os meninos me abraçavam, lágrimas desciam, lentas, dos meus olhos.
Fui
censurado por dois colegas de trabalho, que tinham sido meus padrinhos de
casamento. Dois amigos-irmãos. Quase briguei com eles. Um dia, quase perdi um
prazo processual. Estive desatinado. O fogo da morena, Anne Louise, dominou-me
todo, durante seis meses.
Separação
à vista. Margarida foi aconselhada por amigas, até pela minha irmã, Maria Rita,
que talvez goste mais dela do que de mim, desde que papai morreu e eu impedi
que ela se apossasse de bens cabíveis a mamãe, na partilha. Coisas de herança,
que, muitas vezes, dividem as famílias. E para quê? Para as vaidades deste
mundo, que se acabam com um infarto, um câncer, um desastre, uma bala perdida
ou de premeditado acerto.
Nunca fui
santo. Mantive as rédeas do casamento sem escândalos. Saí com algumas mulheres,
sem, porém, me fixar em nenhuma. Situações do machismo desenfreado que ainda
existe dentro de muitos homens, alguns até se tornando imbecis, violentos
repugnantes e reprováveis.
Nenhuma
mulher merece passar por violência física, moral ou psicológica. Eu fiz
Margarida passar. Pela psicológica, não. Pela física, jamais. Pela moral, acho
que sim. Expor a mulher à traição é uma violência moral. Por nove anos tenho
amargado os efeitos da minha desventura. Deus me tirou do atoleiro. Renasci
como homem casado, mas com uma mancha impregnada em minha alma.
O suor
frio aumenta. Sinto-me gelado, como se fosse um pedaço de carne num freezer.
Aumenta a pressão no meu peito. Margarida não está aqui. Nem os meninos. Minha
compreensiva esposa. Meus filhos amados, meus gêmeos queridos. Meus futuros
médicos, que não terão tempo de cuidar do coração do pai.
Margarida
terá mesmo me perdoado? Ou nela terá ficado um ranço da minha traição? Eu nunca
saberei. Ela foi forte e firme. Soube desvencilhar-se da raiva e da vergonha
por ser traída. Quanta dignidade! Dignidade que eu não tive. Traí a mulher dos
meus sonhos. Namoramos desde adolescentes, no Colégio Arquidiocesano, sob o
olhar vigilante do padre Carvalho.
O
ARQUI... Que Colégio! E que educador, o padre Carvalho! Tudo se acaba. No
desfile de 7 de setembro, ela desfilava de baliza. Lembro bem. Essa dor no
peito e essa tontura ainda não me embotaram a mente, por completo. A baliza à
frente da banda. Eu tocava bumbo, na primeira fileira da formação.
Vendo os
movimentos de Margarida, a minha calça inchava, quase explodia. E agora, eu
estou tão precisado dela. Não a tenho. A vida se vinga da minha traição, como
Margarida não quis se vingar. Ela pensou nos nossos filhos. Talvez tenha
pensado também nos 8 anos de namoro e noivado.
Éramos um
casal feliz. Sempre juntos. No casamento, apesar das minhas furtivas escapadas,
tudo ia bem, até aparecer aquela morena. Um céu ilusório que se tornou o
inferno da minha vida. Margarida, professora querida pelos alunos. Respeitada
pelos colegas da Universidade. Com doutorado e pós-doutorado. Livros
referenciados até no estrangeiro. Uma cabeça brilhante. Mas, eu a traí. Fui um
vilão. Um crápula.
Agora,
essa dor na boca do estômago... Com ela, aumenta a dor no meu peito. Margarida,
me perdoe. Me perdoe... Cuide dos nossos filhos. Andrezinho e Rachel... Meus
doutores. Não estarei na formatura para chorar de emoção. Não viajarei para
visitá-los durante a Residência, provavelmente, em São Paulo, como eles
desejam. Não os beijarei nunca mais. Estou fraco. Uma tosse seca me ataca,
rapidamente. Estou sufocado. O ar está faltando. A escuridão aumenta. A minha
vida se vai. Margarida... Os meninos...
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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