José Lima Santana*
Moleque fui de não curta esperteza.
Cacei preás aos seis anos. Eram muitos, nas macambiras. Cobra aparecia, nalguma
vez. Aprendi com avô meu a fugar de seus botes. Livros de cordel avó minha os
lia. Aventuras teimavam fazer morada minha cabeça inocente. Voar num pavão
misterioso pras terras do sem fim.
Avó minha, Dona Antonieta, deu de me
ensinar lições de ABC. Juntei letras, formei palavras, soletrei velho livro de
figurinhas. Pouco aprendi, mas aprendi. Sei ler uma carta e rabiscar outra.
Pouco é, bem sei, mas tem serventia. Aprendi muito cedo dar valor natureza.
Conheço ervas e árvores pelos nomes. Quem não conhece nomes de árvores, diz
pé-de-pau. Triste é desconhecer o que é seu.
Mãe minha morreu quando vim ao mundo.
Parteira de parcos recursos. Culpa não teve. Mãe minha botou muito sangue.
Morreu da cor de vela, branca, sem tintura nas veias. Pai meu arribou, casou de
novo. Fiquei com avós meus e tia minha. Pai não conheci. Terras do Sul o
prenderam. Nunca retornou. Abandonado fui, mas boa criação tive.
“Seu” Dioclécio, avô meu, homem de
tutano nos ossos. Vaqueiro das antigas, de gibão e perneiras. Cachorro Veludo,
preto como a noite, companheiro na caatinga. Boi nunca escapou garras avô meu.
Com ele, aprendi ser vaqueiro. A caçar aprendi. A respeitar natureza. A nadar
riacho Mulungu e açude fazenda “seu” Amintas. Açude fundo, traiçoeiro.
Atravessei vezes muitas. Boas traíras para pesca. E vistosos carás.
Tia minha, Maria Célia, casou com
homem da cidade. Eu tinha dez anos. Chorei. Era a mãe que eu tive. Órfão fiquei
mais uma vez. Avós meus, porto meu seguro. Olho duro avô meu deu lições, evitou
castigos. Nunca levei surras. Avó minha fazia vontades minhas com doces e mel
de açúcar desmanchado. Melhor família ninguém teve, ordem de pobre. A respeitar
aprendi. E ai! se não aprendesse.
Corpo criei aos doze anos. “Um
homenzinho”, dizia avó minha. Nessa idade, já vaqueiro, tangendo gado,
apartando bezerros, curando bicheiras. Ligeiro no lombo cavalo meu, presente
tia minha, costureira. Família pobre sem dever nada, sem submissão. Honestidade
aprendi. “Viver no que é seu e do que é seu”, dizia “seu” Dioclécio.
Vinte e um anos eu tenho. Pé-de-meia
formando. Pequena criação de miunças. Tomarei lugar avô meu, na lida do campo.
Vista dele anuviando com o sol-a-sol. Dia há de assim chegar pra mim.
Bebida de álcool na boca nunca botei.
Segui lição avô meu. Lição de boa prática. Amigos poucos tenho. De conversa, de
corridas de mourão. Jamais de bebedeira. Sou esquisito, dizem. Balanço a
cabeça, nada digo. Tem uma casa de mulheres onde vou vez em quando. Doença do
mundo peguei. Domingos da farmácia me favoreceu com injeção doída e comprimidos
duas cores. Beberagens também tomei. Sarei.
“Seu” Armandinho, amigo avô meu,
morador duas léguas adiante, seleiro dos melhores da região, dele comprei sela
nova. Preço bom. Filha dele trouxe caneco d’água sem qu’eu pedisse. Passou
olhos n’eu. Estremeci. Saí com coração agoniado. Moça cabelos de fogo.
Bonitinha... Não, não, bem bonita. Bonitona, sim.
Cabeça minha ferve. Devo voltar casa
“seu” Armandinho? Fazer o quê? Dizer o quê? Ah, vou dizer que gostei muito sela
nova comprada! Terei outro caneco d’água? Tomara... Coração meu vai dar pulos.
Vou dar na vista que estou roendo unha? Sei não...
Manhã de domingo. Descanso. Levo
miunças minhas para pastar beira do riacho. Comida boa, verde ainda, água
encostada. Ingazeira cheia de ingás. Frutos caem n’água. Peixes engordam. Boas
águas riacho Mulungu. Camarões também tem. Pescados e assados palha bananeira,
ali mesmo. Gostosura, se bem temperados.
Avó minha especial cozinheira, comida
sertaneja. Como seria mãe minha? Igual mãe dela, vó minha, Dona Antonieta? Boa
cozinheira? Teria me amado, quanto? Queria ter mãe minha, queria colo seu, na
meninice. Queria crescer mirando seus olhos, neles me vendo. Não tive. Tia
minha e avós meus me deram o que puderam dar. Sou grato. E acho que sou feliz.
Mandacarus enfeitados flores
vermelhas. Sinal chuva próxima. Três anos sem seca. Uma bênção. Mais chuva está
vindo. Festa no sertão. Aqui porta do sertão. Sertão mesmo dez léguas para
cima. Tudo se esturrica. Riachos e aguadas secam. Aqui, seca de menor monta.
Riacho Mulungu nunca seca. Vira filete d’água, mas corre.
Olho em volta. Sucupiras soltam flor
arroxeada. Bom sinal. Nem sei nome filha “seu” Armandinho. Terá ele outras
filhas? E filhos? Não sei. Terá ele gosto, se eu gostar filha sua? Ou não dará
aprovação? A moça é quem mais deve contar. Terá já um homem no seu bem-querer?
Aquele olhar e o quase sorriso pareciam dizer que não. Como saber?
Tiro roupa. Fico nuzinho em pelo. Por
aqui não há passar viv’alma. É manhã, domingo. Riacho faz poço debaixo
ingazeiras. Água fria. Água boa. Filha seleiro dará boa companheira. Devo
voltar lá. Puxar conversa com pai. Ela vai aparecer. Vai me olhar daquele jeito.
Criar coragem vou.
Almoço de bom cozido de cabrito.
Gosto muito. Selo cavalo meu. Tô de arribada. Levo brida para conserto. Tenho
motivo pra ir casa “seu” Armandinho. Sol baixando. Devem ser umas quatro horas.
Sei pelo tamanho da réstia. Passarinhos muitos cantando galhos de árvores.
Natureza precisa cuidados. Salvar matas e bicharada.
Casa “seu” Armandinho à vista. Rede
vazia balançando telheiro. Dono da casa estará? Filha cabelos de fogo também?
Apeio cavalo alazão. Bem escovado, melhor selado. Presente tia minha. Amarro
cabresto cavalo aroeira de larga copa. Santo remédio, aroeira, para febre e
outros males.
Achego. Gritar “ô de casa”, vou.
Porém, nem precisa. Na sala de visita, moça cabelos de fogo sentada ao lado
homem bem vestido. Conversa e risadas. Murcho. Murcho como caatinga na seca.
Que dizer, não sei.
Desconcertado fico. Estranha dor de
barriga. Bucho embrulhado. Pareço querer vomitar. Pernas tremendo. Cabeça sem
tino. Moça bonita namorado tem. Dele raiva deverei ter? E dela? Mal não me
fizeram. Apenas, tarde cheguei. Olhar dela, outro dia, não era promessa. Não
era nada. Deixo brida para conserto? Vou embora calado, sofrido?
Filha “seu” Armandinho levanta ao me
ver. “Entre, moço! Pai chega já. Vou buscar caneco d’água. Este, irmão meu,
Zeca, mora na cidade”. Tiro chapéu de couro. Enxugo testa. Pernas tremem mais.
Adepois, bebo caneco d’água fria de pote. Alma sossegada. Rosinha, esse seu
nome, me atravessa com o olhar. Incendeio. No juazeiro, um curió desanda em
cantoria.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Quem é do sertão,sentiu-se presente! Parabéns! Grande escritor, padre ou advogado, porém sertanejo!
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