domingo, 5 de setembro de 2021

UM CURIÓ EM CANTORIA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Moleque fui de não curta esperteza. Cacei preás aos seis anos. Eram muitos, nas macambiras. Cobra aparecia, nalguma vez. Aprendi com avô meu a fugar de seus botes. Livros de cordel avó minha os lia. Aventuras teimavam fazer morada minha cabeça inocente. Voar num pavão misterioso pras terras do sem fim.

Avó minha, Dona Antonieta, deu de me ensinar lições de ABC. Juntei letras, formei palavras, soletrei velho livro de figurinhas. Pouco aprendi, mas aprendi. Sei ler uma carta e rabiscar outra. Pouco é, bem sei, mas tem serventia. Aprendi muito cedo dar valor natureza. Conheço ervas e árvores pelos nomes. Quem não conhece nomes de árvores, diz pé-de-pau. Triste é desconhecer o que é seu.

Mãe minha morreu quando vim ao mundo. Parteira de parcos recursos. Culpa não teve. Mãe minha botou muito sangue. Morreu da cor de vela, branca, sem tintura nas veias. Pai meu arribou, casou de novo. Fiquei com avós meus e tia minha. Pai não conheci. Terras do Sul o prenderam. Nunca retornou. Abandonado fui, mas boa criação tive.

“Seu” Dioclécio, avô meu, homem de tutano nos ossos. Vaqueiro das antigas, de gibão e perneiras. Cachorro Veludo, preto como a noite, companheiro na caatinga. Boi nunca escapou garras avô meu. Com ele, aprendi ser vaqueiro. A caçar aprendi. A respeitar natureza. A nadar riacho Mulungu e açude fazenda “seu” Amintas. Açude fundo, traiçoeiro. Atravessei vezes muitas. Boas traíras para pesca. E vistosos carás.

Tia minha, Maria Célia, casou com homem da cidade. Eu tinha dez anos. Chorei. Era a mãe que eu tive. Órfão fiquei mais uma vez. Avós meus, porto meu seguro. Olho duro avô meu deu lições, evitou castigos. Nunca levei surras. Avó minha fazia vontades minhas com doces e mel de açúcar desmanchado. Melhor família ninguém teve, ordem de pobre. A respeitar aprendi. E ai! se não aprendesse.

Corpo criei aos doze anos. “Um homenzinho”, dizia avó minha. Nessa idade, já vaqueiro, tangendo gado, apartando bezerros, curando bicheiras. Ligeiro no lombo cavalo meu, presente tia minha, costureira. Família pobre sem dever nada, sem submissão. Honestidade aprendi. “Viver no que é seu e do que é seu”, dizia “seu” Dioclécio.

Vinte e um anos eu tenho. Pé-de-meia formando. Pequena criação de miunças. Tomarei lugar avô meu, na lida do campo. Vista dele anuviando com o sol-a-sol. Dia há de assim chegar pra mim.

Bebida de álcool na boca nunca botei. Segui lição avô meu. Lição de boa prática. Amigos poucos tenho. De conversa, de corridas de mourão. Jamais de bebedeira. Sou esquisito, dizem. Balanço a cabeça, nada digo. Tem uma casa de mulheres onde vou vez em quando. Doença do mundo peguei. Domingos da farmácia me favoreceu com injeção doída e comprimidos duas cores. Beberagens também tomei. Sarei.

“Seu” Armandinho, amigo avô meu, morador duas léguas adiante, seleiro dos melhores da região, dele comprei sela nova. Preço bom. Filha dele trouxe caneco d’água sem qu’eu pedisse. Passou olhos n’eu. Estremeci. Saí com coração agoniado. Moça cabelos de fogo. Bonitinha... Não, não, bem bonita. Bonitona, sim.

Cabeça minha ferve. Devo voltar casa “seu” Armandinho? Fazer o quê? Dizer o quê? Ah, vou dizer que gostei muito sela nova comprada! Terei outro caneco d’água? Tomara... Coração meu vai dar pulos. Vou dar na vista que estou roendo unha? Sei não...

Manhã de domingo. Descanso. Levo miunças minhas para pastar beira do riacho. Comida boa, verde ainda, água encostada. Ingazeira cheia de ingás. Frutos caem n’água. Peixes engordam. Boas águas riacho Mulungu. Camarões também tem. Pescados e assados palha bananeira, ali mesmo. Gostosura, se bem temperados.

Avó minha especial cozinheira, comida sertaneja. Como seria mãe minha? Igual mãe dela, vó minha, Dona Antonieta? Boa cozinheira? Teria me amado, quanto? Queria ter mãe minha, queria colo seu, na meninice. Queria crescer mirando seus olhos, neles me vendo. Não tive. Tia minha e avós meus me deram o que puderam dar. Sou grato. E acho que sou feliz.

Mandacarus enfeitados flores vermelhas. Sinal chuva próxima. Três anos sem seca. Uma bênção. Mais chuva está vindo. Festa no sertão. Aqui porta do sertão. Sertão mesmo dez léguas para cima. Tudo se esturrica. Riachos e aguadas secam. Aqui, seca de menor monta. Riacho Mulungu nunca seca. Vira filete d’água, mas corre.

Olho em volta. Sucupiras soltam flor arroxeada. Bom sinal. Nem sei nome filha “seu” Armandinho. Terá ele outras filhas? E filhos? Não sei. Terá ele gosto, se eu gostar filha sua? Ou não dará aprovação? A moça é quem mais deve contar. Terá já um homem no seu bem-querer? Aquele olhar e o quase sorriso pareciam dizer que não. Como saber?

Tiro roupa. Fico nuzinho em pelo. Por aqui não há passar viv’alma. É manhã, domingo. Riacho faz poço debaixo ingazeiras. Água fria. Água boa. Filha seleiro dará boa companheira. Devo voltar lá. Puxar conversa com pai. Ela vai aparecer. Vai me olhar daquele jeito. Criar coragem vou.

Almoço de bom cozido de cabrito. Gosto muito. Selo cavalo meu. Tô de arribada. Levo brida para conserto. Tenho motivo pra ir casa “seu” Armandinho. Sol baixando. Devem ser umas quatro horas. Sei pelo tamanho da réstia. Passarinhos muitos cantando galhos de árvores. Natureza precisa cuidados. Salvar matas e bicharada.

Casa “seu” Armandinho à vista. Rede vazia balançando telheiro. Dono da casa estará? Filha cabelos de fogo também? Apeio cavalo alazão. Bem escovado, melhor selado. Presente tia minha. Amarro cabresto cavalo aroeira de larga copa. Santo remédio, aroeira, para febre e outros males.

Achego. Gritar “ô de casa”, vou. Porém, nem precisa. Na sala de visita, moça cabelos de fogo sentada ao lado homem bem vestido. Conversa e risadas. Murcho. Murcho como caatinga na seca. Que dizer, não sei.

Desconcertado fico. Estranha dor de barriga. Bucho embrulhado. Pareço querer vomitar. Pernas tremendo. Cabeça sem tino. Moça bonita namorado tem. Dele raiva deverei ter? E dela? Mal não me fizeram. Apenas, tarde cheguei. Olhar dela, outro dia, não era promessa. Não era nada. Deixo brida para conserto? Vou embora calado, sofrido?

Filha “seu” Armandinho levanta ao me ver. “Entre, moço! Pai chega já. Vou buscar caneco d’água. Este, irmão meu, Zeca, mora na cidade”. Tiro chapéu de couro. Enxugo testa. Pernas tremem mais. Adepois, bebo caneco d’água fria de pote. Alma sossegada. Rosinha, esse seu nome, me atravessa com o olhar. Incendeio. No juazeiro, um curió desanda em cantoria.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Um comentário:

  1. Quem é do sertão,sentiu-se presente! Parabéns! Grande escritor, padre ou advogado, porém sertanejo!

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