José Lima Santana*
Vendida eu fui. Eu era uma menina
franzina, assustada como um preá diante de uma cascavel. Irmãos morrendo de
fome. Minha mãe, tísica e sem meios, deu-me ao senhor Beltran da fazenda
Rochedo Vermelho em troca de uns níqueis para matar a fome das crianças.
O velhote arrastou-me de casa para me
arranchar num casebre testa de bode, pequeno, imundo, nas proximidades da
fazenda dele. Doze anos. Era a minha idade. Escola nunca tive, até então. Do
mundo eu nada sabia, menos ainda de pelejar com homem. Fiquei sozinha ali. Era
o fim da manhã.
À tarde um negro roliço, em nome do
senhor Beltran, levou coisas para eu comer. Bati a porta. Fiquei só com as
minhas lágrimas. Meu corpo miúdo trocado por comida para meus irmãos. Muitas
meninas como eu caíram nas garras do senhor Beltran. Era o esporte favorito
dele: desvirginar crianças.
Com pouco tempo, ele se enjoava e as
botava no olho da rua, para viverem na prostituição. Duas delas, falava-se,
preferiram a morte, enforcando-se. Pobres meninas! Não haveria um jeito, uma solução
para nós, meninas pobres que caiam nas garras do velho urubu?
Chorei. Muito eu chorei. Não tive
vontade de comer, embora as tripas roncassem como um bicho acuado. Se meu pai
fosse vivo, eu não estaria acuada naquele casebre, esperando que o velho urubu
em minhas carnes fracas cravasse o seu bico nojento. Meu pai foi picado por uma
cobra venenosa, na roça. Botou sangue por tudo que foi canto, por todo orifício
do corpo. Disseram que teria sido uma coral mijo-de-sangue.
Seis filhos para mãe criar, sozinha,
trabalhando nas roças alheias, quando achava serviço, recebendo como paga o que
era a metade da paga de um homem. Miséria. Quando dava, eu e Carlinhos, a mim
encostado na idade, íamos ao riacho pegar uns peixinhos. Aos sábados, mãe ia
com a gente. Rendia mais a pescaria.
Cuidados mãe tinha com as espinhas de
peixe para a gente não se engasgar. Mas, um dia, Ritinha quase morreu
engasgada. Uma aflição. Dona Tereza de “seu” Pedro Oião acudiu. Ritinha teve
que engolir uns bocados de farinha, para ajudar a espinha a descer. Espinha
pequena de peixe pequeno. Desceu, a muito custo, mas desceu. Alívio. Mãe
ajoelhou-se e agradeceu a Papai do Céu.
Bem. O que seria de mim, naquelas
condições? O senhor Beltran disse que voltaria em três dias, para esticar-se
comigo na cama. Foi o que ele disse. Eu tinha aprendido que Papai do Céu não
deixava a gente sofrer mais do que era possível suportar. Era mentira. Muita
gente sofria demais da conta. Bastava olhar para a minha mãe, doente, tossindo
muito, escarrando sangue, capaz de passar a doença do pulmão fraco para todos
nós.
Meus irmãos passando fome, a ponto de
mãe me trocar por comida para eles. Ao menos para isso eu servi. Estaria
condenada a virar, um dia, mulher de vida livre? Ninguém poderia me acudir?
Continuei chorando. Não culpei minha mãe, coitada. Vi o seu rosto escavado pela
doença banhar-se de lágrimas.
O meu coração miúdo quase estourou
quando ela me abraçou e disse: “Não tenha medo. Apenas abra as pernas para
‘seu’ Beltran”. Ninguém me disse o que significava abrir as pernas, mas eu
entendi. Não era uma coisa boa. Não era. Meu corpo por comida. Para salvar meus
irmãos e minha mãe, por uns dias. E depois?
Ritinha, a mais velha depois de mim,
só tinha oito anos. Ela também seria trocada por comida? Não naquela idade. E
se mãe morresse, quem cuidaria dos meus irmãos? Dona Tereza fazia remédios
caseiros para mãe. Ela dizia que mãe ficaria curada. Seria mesmo?
Era já a boquinha da noite quando eu
comi dois pães duros, molhando-os na água do pote. O sono queria vencer-me,
porém, a minha agonia por estar naquela situação não me deixava dormir. Pensei
em morrer. Pensei nas duas meninas que se enforcaram, para fugir ao bico de
urubu do senhor Beltran. Um monstro! Por que os monstros como ele não morriam?
Por que Papai do Céu permitia que eles vivessem, para desgraçar meninas pobres
como eu? Ele, Papai do Céu, não tinha tempo para cuidar de todos, dos pobres em
especial? Fiz muitas perguntas. Porém, eu não sabia as respostas. Eu não tive
escola.
Uma hora qualquer, eu acabei
adormecendo. Tive sonhos ruins. Assustadores. Acordei com um barulho lá fora.
Estava molhada. O suor escorria por todo o meu corpo. Alguma coisa deveria
estar acontecendo lá fora. Um cachorro latia sem parar. Ouvi passos vindo em
direção ao casebre. Tremi como uma vara verde. Quem seria? O urubu velho?
Aquele negro roliço que trouxe as coisas de comer? Ele se atreveria a
desgraçar-me antes do senhor Beltran? E se ele me desgraçasse, o urubu velho
iria me querer, ao menos por um dia? Não me botaria no meio do mundo? Não
mataria minha mãe e meus irmãos? Minha cabecinha de pouco miolo começou a
endoidecer.
Os passos aproximaram-se. Pancadas na
porta. Comecei a chorar, baixinho. Papai do Céu não me queria bem? Não tinha
tempo para olhar pelos pobres? Para livrar minha mãe da tosse e do sangue
escarrado? Para arranjar comida para meus irmãos? E para todos os pobres? Perto
da gente tinha muitos outros pobres. O meu choro foi aumentando. “Eu quero
morrer! Eu quero morrer!”.
Ouvi uma pancada forte na porta do
fundo. Alguém a botou abaixo. Desespero. Os passos aproximaram-se do pequeno
quarto sem porta. Um candeeiro ou outro troço alumiava quem se aproximava.
Fechei os olhos. Aguardei o pior. Não tive mais forças para arrancar lágrimas
dos olhos. Desfaleci.
Quando voltei a mim, assustei-me com
a figura daquele negro roliço, sentado num tamborete. “Ele vai me matar!”,
pensei. E seria melhor do que ser desgraçada pelo velho urubu. Ao menos, o meu
sofrimento acabaria ali. Só doía não poder mais ver minha mãe e meus irmãos.
Onde deveria estar Papai do Céu? Onde? Onde?
“Meu nome é Severino”, disse o negro
roliço. Fez uma pausa. Pareceu-me uma cobra malvada, pronta para dar o bote.
Encolhi-me. A luz na sua mão me cegava. Fechei os olhos. Esperei pela desgraça.
Senti aquele Severino sentar-se ao meu lado, na cama. Encolhi-me ainda mais.
Pobre de mim. Era o meu fim.
“Não tenha medo, menina. Eu vim lhe
tirar daqui. Vou levar sua pessoa pra casa da minha mãe. É distante daqui. O
seu pai, um dia, salvou a minha vida, numa briga. Eu vou lhe salvar. Não tenha
medo. Se ‘seu’ Beltran descobrir, ele é capaz de mandar me matar. Mas, ele não
vai ter você no bico sujo. Ele é malvado. Um traste”.
Olhei para aquele negro roliço, ainda
assustada. Agora, parecia um anjo. Eu não sabia se havia anjo negro. Ele me
tomou pela mão. De repente, eu me senti segura, tomada por aquela mão grande e
forte.
Severino montou no cavalo. Deu-me a
mão. Pulei na garupa. Eu era leve, magrinha. Caímos na escuridão. Papai do Céu
não estava dormindo.
*Padre, advogado, professor
do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da
Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense
de Letras, Academia Sergipana de Educaçãoe Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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