domingo, 7 de novembro de 2021

O RAPTO DE ESTELINHA


  

 

José Lima Santana*

 

 

“Bença, mãe!”. Dona Júlia acendeu o olhar como um candeeiro cheio de querosene. “Deus te abençoe, meu filho!”. Tocou a cabeça de Rigoberto com a mão direita. O filho baixou a vista, circunspecto. Depois, fitou a mãe e disse: “Vou fazer o que tenho que fazer, na falta do pai”. Virou-se. Encaminhou-se ao cavalo selado e outro mais. Montou. Nos alforges, provisões sertanejas: carne moqueada, farinha de mandioca, broas de milho e rapadura.

Longa seria a viagem. A notícia recebida dava conta de que ela estava nos confins do Chapadão dos Rocha. Depois dos sertões do Murici, do Monte Nublado, das Areias Pretas, Pastos Novos e um pouco mais. O pai deles, de Rigoberto e Estelinha, morreu nas guerras dos Melo e dos Pereira, antigas brigas de famílias, que vinham do século XIX, dos tempos dos barões, atravessando a República, nos tempos dos coronéis.

Amando Melo vingou a morte do irmão e morreu pelas mãos de Chico Pereira, que morreu pelas mãos de Rodrigo Melo, filho mais velho do Amando, quando contava dezesseis anos. Rodrigo também tombou assassinado, meses depois. Muitos outros morreriam, como muitos antes morreram.

Faziam oito anos que as duas famílias estavam em trégua. Mas, bastaria uma faísca no olho de um deles, de qualquer dos dois lados, para se acender um fogaréu. Todavia, viviam-se tempos novos. O governo estava apaziguando os confins dos sertões. A força pública tomava conta dos lugares mais ermos. As escolas se espalhavam pelas cidades, vilas e povoados. A educação começava a domar os impulsos. Tempos novos.

Estelinha era a caçula. Dona Júlia mandara a filha para a casa da tia, na cidade, a fim de estudar no ginásio local, uma novidade. Os estudos nos povoados eram fracos e muitas eram as repetências. Por isso, Estelinha começara o curso ginasial, depois de ser aprovada no terceiro exame de admissão, já aos quatorze anos. Isso era comum naqueles confins. Ela foi desasnando com certo embaraço, mas tinha gosto em aprender. Queria ser professora, ajudar a mãe e o único irmão, trazendo-os para a cidade.

As lutas entre os Melo e os Pereira poderiam ficar no passado. Foram muitas mortes sem sentido. Muito sangue derramado pelo furor do orgulho das duas famílias, que, bem antes das brigas, eram unidas e até aparentadas. Um canário da terra foi a causa da guerra que mergulharia as duas famílias num mar de sangue. Era o que se dizia, embora as mortes começaram em 1876.

O canário da terra que um Melo soltou da gaiola de um Pereira serviu de pretexto para uma rezinga política, na eleição municipal daquele ano. Os Melo e os Pereira que, antes, votavam com os Conservadores, dividiram-se entre estes e os Liberais. Um Pereira matou um Melo. Um Melo revidou. E, ao todo, contavam-se, até aquele ano em que Dona Júlia abençoou o filho, naquela manhã de setembro de 1958, quarenta e seis mortes dos dois lados. Gente de bofes quentes.

Ao meio-dia, Rigoberto parou a marcha na margem direita do riacho Curralinho, um filete de água límpida, que mourejava como se espreguiçasse. Apeou. Deixou os cavalos beberem da água clara do Curralinho, que nascia nas grotas da Cova da Onça e encorpava o rio Marmeleiro. O moço abriu o pequeno saco de farinha, cortou um pedaço da carne moqueada e serviu-se. Comeu uma broa e um naco de rapadura. Bebeu da água da cabaça.

Rigoberto assuntava o que fazer e como fazer. Na falta do pai, era o único homem da família. A ele caberia tomar providências em relação à irmã. “Estelinha não tem mais pai, mas tem mãe e irmão. Os Melo têm sangue no olho. Faça valer o valor de suas calças”, disse Dona Júlia ao filho.

Rigoberto seguiu viagem. Dormiria no Murici, talvez, entre Miranda e Cocho dos Porcos. Suas montarias eram boas. Ele levava dois cavalos, para revezamentos. Estava em boa marcha. Com mais cinco ou seis dias, chegaria às fraldas do Monte Nublado. Depois das Areias Pretas, mais dois dias de marcha, segundo dissera o mensageiro, e, então, ele deveria encontrar Estelinha.

Levava consigo boas armas. Um rifle do tipo papo-amarelo e dois revólveres. Munição em boa conta. Esperava contar com o elemento surpresa. Vacilar não poderia. Tinha ciência de que a empreitada não seria fácil. Rigoberto lembrava da morte do pai, quando ele tinha apenas dez anos. O irmão mais velho fez-se nas armas e vingou o pai, para morrer logo depois.

O que aconteceu com Estelinha era mais do que suficiente para quebrar a trégua. Sete dias se passaram. Rigoberto, enfim, achou-se vencendo as Areias Pretas. Entrou nos Pastos Novos, povoado de alguma prosperidade, região de boas pastagens com terra viçosa e boas águas correntes. Adiante ficava o Chapadão dos Rocha. Uma das fazendas dali pertenceria a Antônio Carlos Pereira, que raptara Estelinha da casa da tia, Dona Cecília, irmã de Dona Júlia. A tia quase morreu do coração ao procurar e não achar a sobrinha. Mais ainda, ao saber do rapto.

Antônio Carlos sumiu no mundo, temeroso da reação dos Melo e de sua própria família, que, certamente, não aprovaria a união dele com Estelinha, ao menos assim tão de repente. Ele teria que trabalhar os sentimentos da família, sobretudo da mãe, já que o pai se tinha ido nas brigas há oito anos cessadas, deixando para ele um vasto cabedal. O casal sumiu sem deixar rastros. Agora, um mensageiro dera notícias verazes do seu paradeiro.

Rigoberto entrou no povoado. Buscou informação. A cerca de meia légua ficava a fazenda Bela Vista, de um jovem casal, cujos nomes eram desconhecidos. Só podiam ser mesmo Antônio Carlos Pereira e Estelinha. Deixou as montarias a certa distância. Avaliou o modo de aproximar-se da casa.

Deixou que a tarde caísse. Atravessou por debaixo da cerca de arame farpado, quase rasgando a camisa. Aproximou-se. Por uma janela entreaberta, pôde ver o raptor numa rede com uma criança nos braços. Fazia um ano e oito meses que se dera o rapto. Meter uma bala pela janela seria fácil. Ele apontou o rifle. Fez mira para não ferir a criança, seu sobrinho, pois dava para precisar o sexo, pela roupinha que vestia.

Naquele instante, Estelinha apareceu na sala com uma mamadeira. Ajoelhou-se. Antônio Carlos esticou-se e a beijou no rosto. Disse, suspendendo o filho: “Um dia, vamos mostrar este Melo Pereira às nossas famílias. Ele vai ser a causa de pôr fim às brigas infames”. Ela murmurou: “Tomara. Deus te ouça!”. Com o cano do rifle, Rigoberto escancarou a janela. O casal assustou-se. O irmão de Estelinha demorou um átimo, levantou o cano do rifle e disse: “Eu faço questão de ser o padrinho de batismo do meu sobrinho”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento e Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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