José Lima Santana*
Era no tempo dos trens fumegando
pelos trilhos. Os “marias-fumaça”, fuçando e roncando como porcos de ferro,
rompendo caminhos pelos vales e campinas, mas subindo ladeiras em passo de
lesma. Passavam pastos, passavam boiadas e outras criações de miunças. Passavam
rios e riachos, mulheres lavando roupa ou apanhando água em potes e cabaças.
Florestas restantes, quase a morrer, caatingas de secura ardente.
Tudo passava ao resfolegar dos trens
com suas máquinas a consumir água e lenha. Perto das estações um silvo agudo
anunciava a aproximação. Estações quase cheias, estações vazias, estações com
um ou outro gato pingado. Tempos brabos. Nos sertões, os coronéis disputavam
votos e, com eles, prestígio, junto aos lá de cima.
Era 1930. Uma revolução, diziam,
estava acontecendo para as bandas do Sul. Um grandola do Rio Grande estava
tomando o poder, depois de perder a eleição. “Ô Germano, quem perde eleição tem
direito a assento na cadeira alta, tem?”. Germano era mais tapado do que uma
porta. Não sabia de nada, de nada entendia. Eu cá de mim, tinha algum
entendimento, tinha uma pouca leitura.
Dois anos se passaram. Fui
voluntário. Era pra brigar? Eu tava pronto. Deram-me coturno, farda e fuzil. E
mais matulagem. Fui pelo dinheiro. Com jeito, tendo boia e cama, livrando de um
tiro, dava pra ter uma sobra, comprar uma beira de chão, quando desse baixa.
Com três boas safras, eu ia à casa de Afonso Reis, botar-se de genro. Ia buscar
a mão de Carolina.
Morena de olhos gateados. Tinha nêgo
ciscando como galo de terreiro por causa dela. Mas, ela me disse, isso lá ela
disse: “Ou sou tua, ou de mais ninguém”. Ela disse, na escola da professora
Carminha de João dos Ovos. Ela tinha doze e eu, quinze, já saltando fora da
escola, pra lide no campo, nas roças alheias.
Afonso Reis era bodegueiro. Dono de
uma bodega sortida de pouca coisa, porém, era a única do povoado Belém. Dali, o
trem passava a pouca distância, coisa de légua e meia, na estação de Murta. Foi
ali que eu embarquei. Um dia, com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu ia voltar,
pra comprar meu beiço de terra e tomar nos braços a minha morena de olhos
gateados. Agora, eu era homem feito. Tinha dezenove. Carolina, dezesseis.
Pai disse: “Toma cuidado. Só mate se
for mesmo preciso. Mas, procure não se deixar morrer”. Bênção tomei. E mãe, em
prantos, agarrada à imagem da Virgem das Dores, só me abraçou em soluços e me
abençoou, tocando a minha cabeça em cruz. Meu coração apertou. Os olhos quase
encheram de lágrimas. Fiz uma tapagem nos olhos pra água não escorrer. Parti.
Nem me despedi dos irmãos, Toninho, Buchudo, Palito e Teteca, a irmãzinha de
seis anos. Quando eu voltasse, já seriam homens e moça? Deus que sabia.
Cidade grande. Não das maiores, disse
o companheiro Bartolomeu, que era de um lugar bem acima do meu Belém, o Brejão
dos Sapos. Lá, o pai dele foi morto a mando de um coronel. Filho único, ele se
aboletou no mundo pra não morrer também. Um dia, ele disse, voltaria com
patente militar de verdade e o coronel de merda seria sangrado como porco.
Razão pra ele não faltava. Tava no direito.
Dali tomamos o trem pra mais longe.
Atravessamos seis Estados, até chegar perto de São Paulo. A guerra estava ali a
nos esperar. Do nosso lado, morreram alguns. Do lado de lá, morreram muitos. Os
paulistas. Depois, fiquei sabendo que o lado de lá queria uma tal de
Constituição.
A guerra acabou. A tal Lei veio e as
coisas pareciam entrar no eixo. Aí, logo depois, foi a vez dos comunistas
criarem em escarcéu. Porém, eram poucos. O governo deu duro. Chegou a vez de
dar baixa. Muitos deram baixa. Eu era cabo. O capitão queria que eu ficasse,
virar sargento. Quis não. Capitão gente boa. Mas, minha morena me esperava. Com
certeza.
Três anos fora de casa. Dinheirinho
juntei. Dava pra comprar umas tarefas de terra, de boa areia, para bons plantios.
Eu teria minha casa com boa lavoura. Mulher e filhos não passariam fome. Mãe e
pai me esperavam. Ele, puxando o cachimbo, no fim da tarde, olhando pro
estradão. Ela, em orações para a Virgem pedir a Jesus a minha volta são e
salvo. A meninada nem ia me reconhecer, de prontidão.
E Carolina? Devia estar um mulherão,
ainda mais bonita, ainda mais gateada. Tomei o trem de volta. Seis Estados pra
atravessar. Enfim, em casa. Alegria e tristeza. Mãe me contou a desgraça que
sucedeu com Carolina, minha morena de olhos gateados. No caminho da fonte, um
sujeito de nome Marcão de Valdomiro, dos Carijós, atacou Carolina e deu nas
partes dela.
Duas mulheres, Cecinha de Tonho Miúdo
e Maria Amélia de “seu” Tibúrcio, deram socorro de valimento a Carolina e o
cabra deu em fuga, mas já tendo feito o mal. Carolina ficou pejada. Nasceu um
filho. O pai de Carolina, Afonso Reis, era homem de uma perna só. Não tinha um
filho homem, somente filhas. Não pôde pagar um pistoleiro. Resignou-se.
Meus miolos ferveram. Casar com uma
moça destambocada, ainda mais com um filho de outro? Quem queria naqueles
sertões? Matutei uma noite inteira. Antes tivesse ficado na cidade grande. Não
ia poder colher o fruto adocicado da flor mais bonita daquele chão. Sem fruto,
sem mel. Um homem de tutano nos ossos não aceitava uma situação daquela.
Amanheci como anoiteci. Sem pregar o olho. Muito matutei.
Manhãzinha, nem café tomei. Rumei pra
ver Carolina. Olhos abaixados, duas lágrimas escorrendo. “Vá simbora, Juliano.
Eu desgracei nossa vida”. Desgraçou, não. “Aquele sujeito te fez o mal, mas eu
quero o teu bem. O teu e o meu. Vou desajeitar a vida dele. Pensei em matar.
Mato não! Vou arrancar fora os quibas dele.
Morto, não havia de sentir nada
mesmo. E capado, vai se arrastar pela vida sem serventia de macho. Capo, sim.
Se Justiça aqui num tem, tem o meu braço. Você vai ver”. Carolina enxugou as
lágrimas. “Mas, eu tenho um filho dele”. Levantou os olhos. Gateados. Nos
braços, o inocente sorrindo. “Depois que eu me acertar com o malfazejo, o
menino não terá mais pai. Eu vou ser o pai dele. Ele é seu filho. Vai ser nosso
primeiro filho”.
Naquela manhã, o sol pareceu brilhar
com mais intensidade. Do Belém aos Carijós. Eh, sertões...!
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário