segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

MARIVALDO DA PADARIA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Marivaldo viuvou. Ernestina passou desta para a outra vida sem soltar um pio. Morreu de repente, sem tempo para reza e vela. Beata, não podia ver um padre que já se punha em prontidão para tomar a bênção e oferecer a mais dilatada bajulação. Apesar de algumas esquisitices, era uma boa mulher.

Prestativa, caridosa, fazia Marivaldo quase perder os cabelos que lhe restavam na cabeça por causa de suas caridades. “Ainda hei de morrer pobre como Jó”, dizia o velho pão-duro. Pois ela é que se foi. Morreu no finzinho da tarde, degustando uma jenipapada, a cabeça pendendo sobre a tigela.

Cida de Toinha, a empregada, a acudiu já sem vida. Um alvoroço. Os gritos de Cida foram ouvidos à distância. Na padaria, Marivaldo pensou que era mais um dos chiliques da velha serviçal, que não podia ver um sapo ou uma rã. Era capaz de desmaiar. Um dia, Naldo, filho mais velho de Marivaldo e Ernestina meteu um sapo numa caixa, embrulhou com papel de presente e deu a Cida, no seu aniversário de cinquenta anos. Pobre mulher. Não bateu a caçoleta porque o padre Afonso, de passagem pela rua, a socorreu, embora, depois, riu à larga. “Pense numa cara feia, numa careta de carnaval, a da pobre Cida de Toinha, estatelada numa poltrona, morre não morre!”.

O viúvo, dona da Padaria Estrela, ficaria desaconçoado. Murchou como uma erva esturricada pelo sol de janeiro. O casal era muito ligado. Ernestina passava um bom tempo, à tarde, depois do almoço, fazendo massagens nos pés enrugados do marido, à vista de todos, na calçada da casa. Mimos, de lado a lado, não faltavam.

O casamento deles fora um acontecimento inusitado em Pedra Azul. Ela era filha do maior fazendeiro da região, Pedro de Taques Almagorado, descendente de antigos espanhóis, cuja família recebera sesmarias em face de sua participação nas lutas contra os invasores holandeses.

Ele, Marivaldo, era um joão-ninguém, biscateiro, que trabalhava desde menino para ajudar a mãe viúva com mais cinco filhos. Empregara-se, aos quatorze anos, na Padaria Estrela de Amâncio Lombo de Burro, que tinha esse apelido por carregar nas costas pesados sacos de farinha de trigo e de açúcar, de 60 quilos, sem pestanejar.

Aos poucos, Marivaldo foi subindo de limpador de chão a ajudante de padeiro, a mestre-padeiro, gerente, sócio e dono do negócio. Enamorara-se de Ernestina nos tempos de gerente. A família rica não tomou conhecimento dele. Antes, recusara-o. Mas, Ernestina tinha caído de amores por ele. Enfrentou a família, bateu o pé e casou sem ninguém da família na igreja. Seria deserdada pelo pai, que, com o tempo, voltou atrás. Os laços que ligaram Marivaldo a Ernestina foram se estreitando a cada dia, a cada ano.

De fato, a morte de Ernestina abalou Marivaldo de forma avassaladora. Ele se tornou uma baraúna abatida por um raio. A padaria ficou a cargo de Naldo, o filho mais velho. A solta de gado caiu nas mãos de Bertinho, que já era da lide no campo. A filha Rosa Angélica mudou-se com o marido e o filho de doze anos para a casa da família, a fim de cuidar do pai, que deu para andar zanzando em casa, sem tino para coisa alguma. Foram quarenta e oito anos de vida em comum. Ernestina já preparava a festa para as bodas de ouro. Não deu tempo.

A morte de Marivaldo já era dada como certa. Um amor de causar inveja foi desfeito pela “senhora da foice afiada”. Era sempre assim. Dela não se podia escapar. A inexorável. A iniludível. Dela ninguém escapava. Os cemitérios eram os depósitos de suas pilhagens.

A morte de Ernestina deu-se em setembro. Marivaldo cambaleou até março ou abril. Aos poucos, porém, foi-se endireitando. Uma bênção! O padre Afonso deu a ele toda atenção que a um homem de fé cabia dar. Nisso, aliás, o padre era cuidadoso. Cuidava do seu rebanho, de ricos a pobres, sem distinção.

Numa manhã de segunda-feira, dia da feira semanal na cidade, Marivaldo tomou o rumo da padaria. Surpresa para todos. Alegria de muitos, pois o velho era muito bem-quisto. Pronto. A partir dali, Marivaldo voltou à ativa com a ajuda de Naldo, que se dividia entre a padaria e o seu próprio comércio de secos e molhados.

Marivaldo estava com setenta e cinco anos. Ainda tinha gás para tocar a vida. E continuou tocando. Tudo dele, todavia, era voltado para as lembranças de Ernestina. Foram anos de cumplicidade e respeito, de aconchego e harmonia. Enfim, como se diz no correr da vida, foram anos de amor recíproco.

A vida na padaria foi absorvendo Marivaldo, como antes. Novas instalações e modernos equipamentos. Lenha, por exemplo, para os fornos, que eram dois, já não usava mais. Tudo era eletrificado. Os anos foram passando e a viuvez de Marivaldo continuava na ordem do dia. Roupas pretas ou de cores sóbrias ele as vestia, como mandava o figurino da época.

O tempo correu nos seus desvãos. Marivaldo contava já seus oitenta e três anos. Noite de festa na casa de Naldo, o filho mais velho. Formatura da neta mais nova de Marivaldo. Direito. A mocinha era estudiosa e almejava a carreira de magistrada. Abancado no jardim da casa do filho, Marivaldo estava absorto, por um instante, até que a nora, Doralice, lhe apresentou a filha de uma prima, moradora no povoado Quixabeiras.

Era uma moça de seus vinte e dois a vinte e três anos, na aparência. Cara só um pouco bexiguenta, inibida, mas de boas ancas. Pois não foi que o velho dono da Padaria Estrela deixou-se engraçar pela moça? Um acerto de famílias acabaria levando Marivaldo e Cecília, esse o nome da moça, ao altar, na antevéspera do Natal. Casamento religioso com efeito civil, pelo regime de separação de bens, por força da idade do nubente.

Quando o padre Ribeiro, sucessor do padre Afonso indagou se alguém tinha algo a dizer que pudesse impedir aquele casamento, três jovens levantaram as mãos e aproximaram-se. As três, com barrigas muito salientes, disseram, como se fossem cantoras do coro da igreja, em vozes uníssonas: “Nós temos, sim. Estamos grávidas do Marivaldo!”. Estupefação geral.

O padre, ainda muito jovem, caçou terra nos pés e não achou. Balbúrdia. Cochichos. Risadas. Disse-me-disse. A noiva arregalou os olhos e fez menção de atirar fora o buquê de rosas brancas. Conteve-se. Marivaldo, sem pestanejar, protestou: “Isso deve ser uma brincadeira de mau gosto, seu padre. Nem mijar direito eu mijo. Quanto mais...!”. As três, Belinha, Clarinha e Dorinha, filhas de Zé Porfírio da farmácia, caíram na gargalhada. Era brincadeira, sim. As três gostavam de zoar, fosse onde fosse, ou com quem fosse.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

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