José Lima Santana*
Marivaldo viuvou. Ernestina passou
desta para a outra vida sem soltar um pio. Morreu de repente, sem tempo para
reza e vela. Beata, não podia ver um padre que já se punha em prontidão para
tomar a bênção e oferecer a mais dilatada bajulação. Apesar de algumas
esquisitices, era uma boa mulher.
Prestativa, caridosa, fazia Marivaldo
quase perder os cabelos que lhe restavam na cabeça por causa de suas caridades.
“Ainda hei de morrer pobre como Jó”, dizia o velho pão-duro. Pois ela é que se
foi. Morreu no finzinho da tarde, degustando uma jenipapada, a cabeça pendendo
sobre a tigela.
Cida de Toinha, a empregada, a acudiu
já sem vida. Um alvoroço. Os gritos de Cida foram ouvidos à distância. Na
padaria, Marivaldo pensou que era mais um dos chiliques da velha serviçal, que
não podia ver um sapo ou uma rã. Era capaz de desmaiar. Um dia, Naldo, filho
mais velho de Marivaldo e Ernestina meteu um sapo numa caixa, embrulhou com
papel de presente e deu a Cida, no seu aniversário de cinquenta anos. Pobre
mulher. Não bateu a caçoleta porque o padre Afonso, de passagem pela rua, a
socorreu, embora, depois, riu à larga. “Pense numa cara feia, numa careta de
carnaval, a da pobre Cida de Toinha, estatelada numa poltrona, morre não
morre!”.
O viúvo, dona da Padaria Estrela,
ficaria desaconçoado. Murchou como uma erva esturricada pelo sol de janeiro. O
casal era muito ligado. Ernestina passava um bom tempo, à tarde, depois do
almoço, fazendo massagens nos pés enrugados do marido, à vista de todos, na
calçada da casa. Mimos, de lado a lado, não faltavam.
O casamento deles fora um
acontecimento inusitado em Pedra Azul. Ela era filha do maior fazendeiro da
região, Pedro de Taques Almagorado, descendente de antigos espanhóis, cuja
família recebera sesmarias em face de sua participação nas lutas contra os
invasores holandeses.
Ele, Marivaldo, era um joão-ninguém,
biscateiro, que trabalhava desde menino para ajudar a mãe viúva com mais cinco
filhos. Empregara-se, aos quatorze anos, na Padaria Estrela de Amâncio Lombo de
Burro, que tinha esse apelido por carregar nas costas pesados sacos de farinha
de trigo e de açúcar, de 60 quilos, sem pestanejar.
Aos poucos, Marivaldo foi subindo de
limpador de chão a ajudante de padeiro, a mestre-padeiro, gerente, sócio e dono
do negócio. Enamorara-se de Ernestina nos tempos de gerente. A família rica não
tomou conhecimento dele. Antes, recusara-o. Mas, Ernestina tinha caído de
amores por ele. Enfrentou a família, bateu o pé e casou sem ninguém da família
na igreja. Seria deserdada pelo pai, que, com o tempo, voltou atrás. Os laços
que ligaram Marivaldo a Ernestina foram se estreitando a cada dia, a cada ano.
De fato, a morte de Ernestina abalou
Marivaldo de forma avassaladora. Ele se tornou uma baraúna abatida por um raio.
A padaria ficou a cargo de Naldo, o filho mais velho. A solta de gado caiu nas
mãos de Bertinho, que já era da lide no campo. A filha Rosa Angélica mudou-se
com o marido e o filho de doze anos para a casa da família, a fim de cuidar do
pai, que deu para andar zanzando em casa, sem tino para coisa alguma. Foram
quarenta e oito anos de vida em comum. Ernestina já preparava a festa para as
bodas de ouro. Não deu tempo.
A morte de Marivaldo já era dada como
certa. Um amor de causar inveja foi desfeito pela “senhora da foice afiada”.
Era sempre assim. Dela não se podia escapar. A inexorável. A iniludível. Dela
ninguém escapava. Os cemitérios eram os depósitos de suas pilhagens.
A morte de Ernestina deu-se em
setembro. Marivaldo cambaleou até março ou abril. Aos poucos, porém, foi-se
endireitando. Uma bênção! O padre Afonso deu a ele toda atenção que a um homem
de fé cabia dar. Nisso, aliás, o padre era cuidadoso. Cuidava do seu rebanho,
de ricos a pobres, sem distinção.
Numa manhã de segunda-feira, dia da
feira semanal na cidade, Marivaldo tomou o rumo da padaria. Surpresa para
todos. Alegria de muitos, pois o velho era muito bem-quisto. Pronto. A partir
dali, Marivaldo voltou à ativa com a ajuda de Naldo, que se dividia entre a
padaria e o seu próprio comércio de secos e molhados.
Marivaldo estava com setenta e cinco
anos. Ainda tinha gás para tocar a vida. E continuou tocando. Tudo dele,
todavia, era voltado para as lembranças de Ernestina. Foram anos de
cumplicidade e respeito, de aconchego e harmonia. Enfim, como se diz no correr
da vida, foram anos de amor recíproco.
A vida na padaria foi absorvendo
Marivaldo, como antes. Novas instalações e modernos equipamentos. Lenha, por
exemplo, para os fornos, que eram dois, já não usava mais. Tudo era
eletrificado. Os anos foram passando e a viuvez de Marivaldo continuava na
ordem do dia. Roupas pretas ou de cores sóbrias ele as vestia, como mandava o
figurino da época.
O tempo correu nos seus desvãos.
Marivaldo contava já seus oitenta e três anos. Noite de festa na casa de Naldo,
o filho mais velho. Formatura da neta mais nova de Marivaldo. Direito. A
mocinha era estudiosa e almejava a carreira de magistrada. Abancado no jardim
da casa do filho, Marivaldo estava absorto, por um instante, até que a nora,
Doralice, lhe apresentou a filha de uma prima, moradora no povoado Quixabeiras.
Era uma moça de seus vinte e dois a
vinte e três anos, na aparência. Cara só um pouco bexiguenta, inibida, mas de
boas ancas. Pois não foi que o velho dono da Padaria Estrela deixou-se engraçar
pela moça? Um acerto de famílias acabaria levando Marivaldo e Cecília, esse o
nome da moça, ao altar, na antevéspera do Natal. Casamento religioso com efeito
civil, pelo regime de separação de bens, por força da idade do nubente.
Quando o padre Ribeiro, sucessor do
padre Afonso indagou se alguém tinha algo a dizer que pudesse impedir aquele
casamento, três jovens levantaram as mãos e aproximaram-se. As três, com
barrigas muito salientes, disseram, como se fossem cantoras do coro da igreja,
em vozes uníssonas: “Nós temos, sim. Estamos grávidas do Marivaldo!”.
Estupefação geral.
O padre, ainda muito jovem, caçou
terra nos pés e não achou. Balbúrdia. Cochichos. Risadas. Disse-me-disse. A
noiva arregalou os olhos e fez menção de atirar fora o buquê de rosas brancas.
Conteve-se. Marivaldo, sem pestanejar, protestou: “Isso deve ser uma
brincadeira de mau gosto, seu padre. Nem mijar direito eu mijo. Quanto
mais...!”. As três, Belinha, Clarinha e Dorinha, filhas de Zé Porfírio da
farmácia, caíram na gargalhada. Era brincadeira, sim. As três gostavam de zoar,
fosse onde fosse, ou com quem fosse.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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