José Lima Santana*
Contar,
tenho eu muito a contar. Nos sertões mais brabos nunca me fiz de valente, nem
tampouco de mofino. De caganeira nunca estive, por medo. Um filho de Venâncio
das Imburanas não se cagava atoa. De tudo que vivi, o mais duro penar foi
quando o coronel Machadinho deu de jogar nas minhas costas o mal feito pelo
filho mais novo, Cirilo, um pirão perdido, a despeito de ser filho do dono de
quase todas as terras do Ribeirão das Cotias, terras a nunca acabar.
Cirilo
vivia a colher os três vinténs das negrinhas das remanescentes senzalas que o
pai herdou do avô. E o coronel botando pra riba de uns e de outros. Comigo,
não. Eu não haveria de pagar pelo crime do sinhozinho, como outros pagaram. Caí
no mundo. Deixei mãe chorando, temendo pelo meu fim, e eu temendo pelo fim
dela, no meu lugar, pois o coronel não era flor que se cheirasse. Era dado a
espancar e até matar parentes de quem se aboletava no mundo, fugindo de suas
maldades.
Andei
léguas antes de me alcançarem. Na tarde do terceiro dia, avistei lá embaixo no
Vale das Onças uns dez ou doze sujeitos. Dois deles fardados.
Naquela
tarde, subi pelo rio das Queixadas. Tropecei em pedras de todo tamanho. Caí e
levantei. Caí e levantei. Levantei e caí. Atrás, não muito, a cabroeira do
coronel Machadinho, soldados e capangas. Queira o coronel Machadinho que eu
pagasse pelo que não fiz. Pagava não. Só pagava se devesse. No caso, não devia.
Não tinha que pagar. Escorreguei no breu da noite, mais negra que carvão aos
montes. Tentaram me aferrar no tronco. Dois eu derrubei. Vieram muitos pra riba
d’eu. Capoeira ajudou. Sapequei pernas e braços. Bom no manejo do corpo eu sou.
Aprendi com mestre Zulu, dos antigos mestres, que aprenderam com os da Negra
Mãe.
Mestre
Zulu já não conta por aqui. Espírito voou sobre o mar grande. Retornou às
terras das infinitas visões. Dia virá que o meu espírito também há de fazer o
retorno. Descansar na sombra dos baobás. Árvores de reis e príncipes, dizia
minha mãe.
Em cobra
d’água quase pisei. A serpentosa ziguezagueou como se pressa tivesse. Cobra é
bicho sestroso. Não ouve, mas vê e sente com língua de bifurcado demônio.
Emboquei numa gruta de estreita entrada. De dentro pra fora, tinha eu boa
visão. Vi o soldado Matosinho aproximar-se, examinando o terreno defronte.
Marcas deixei.
Matosinho
era das minhas bandas. Negro como eu. Nossos avós foram do mesmo eito, da mesma
senzala. Dia foi, na feira do Pilar, que dei de salvar a vida dele. Um
malfazejo das bandas dos Araçás meteu-se a valentão e quis dar de pano de facão
no soldado Aroldo de Timbaúba. Matosinho partiu para adjutorar o companheiro.
Não se deu mal, porque joguei uma cadeira que quase arrancou a cabeça do
malfazejo. O facão, quase a tocar a cabeça de Matosinho, caiu longe. O soldado
Matosinho agradecido ficou. “Sou seu mano”, ele disse.
Ali
estava ele, o soldado Matosinho, farejando como cão de caça e raça. Adiante,
foram-se os mais de dez homens em conversa de cochichos. Matosinho olhou com
mais cuidado o terreno molhado. Encontrou rastro. Olhou para a entrada da
gruta. Aprumou os olhos. Aproximou-se com passos curtos. Afastou um galho.
Aprumei minha espingarda calibre doze. Daquela distância, eu arrancava o olho
de uma lagartixa.
Ele
avançou mais. Estava na entrada da gruta. Não podia me ver. Não dali.
Acocorou-se. Mirei bem no meio do quengo dele. “Você taí, Aderaldo?”, ele
perguntou. “É você, num é?”. Não respondi. Ele estava na minha mira. Rendido.
Era só destambocar o tiro certeiro. Mas, os outros iam ouvir o estampido. Seria
a minha perdição.
Ele
achegou-se mais um pouco. Destravou o rifle. Apontou para o meu lado. Armas
apontadas de lá e de cá. “Ocê vem por bem ou por mal, Aderaldo?”. Respondi: “Tu
te alembra q’eu te salvei a vida, Matosinho?”. Ele calou. Arma dele apontada. A
minha também.
Hora de
nada temer. Matar ou morrer não era situação a merecer o meu pensamento. Melhor
escapar com vida. Os outros, decerto, iam vir correndo ao ouvir os tiros, como
urubus na carniça. Alguns eu acabava levando comigo, além do Matosinho. O
inferno não me ia ter sozinho. Não! Mas, morrer não estava no meu querer, no
meu pensar. Eu tinha que voltar, um dia, pra buscar mãe ou sangrar coronel
Machadinho e seu filho celerado, abusador de negrinhas, caso o coronel desse
cabo de mãe, embora ela fosse a curandeira da fazenda, curando negros e brancos.
Difícil ele deixar o povo dali ficar sem a curandeira, que valia como uma
médica.
Matosinho
começou a suar. Enxugou a testa com a mão esquerda. A coronha do rifle
encostada no ombro direito e o dedo indicador no gatilho. “Se ocê se entregar,
eu garanto a sua vida!”, ele disse. “E tu é o coronel Machadinho, pra garantir
vida de ninguém, soldado Matosinho? Claro que tu num é”.
Silêncio.
Ele enxugou a testa mais uma vez. Estaria com medo? Eu achava que não.
Matosinho não era de pedir arrego. Eu o tinha na mira. Se quisesse, espalhava
os miolos dele por todo lado. Miolos de gente era uma coisa nojenta. De boi, se
comia. Era gostoso, como mãe fazia em boa panela de barro e com tempero de
açafrão e ervas.
Passaram-se
uns minutos. Dali a pouco, os outros iam chamar pelo soldado Matosinho ou
voltar pra saber porque ele ali se deteve. Aí seria ruim. “Soldado Matosinho,
tu num tem nada a ver comigo. Eu te salvei a vida. Deixe que eu viva a minha em
paz. Ou tu e eu vamo junto pro buraco”.
O soldado
Matosinho parecia me caçar com o olhar. Tava difícil. Eu o via bem, mas ele não
me via. Ele continuava na minha mira. Era só puxar o gatilho. Pum!
O vento
soprou um cisco no olho do soldado Matosinho. Silêncio. Silêncio...
*Padre,
advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras
Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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