domingo, 12 de dezembro de 2021

O SOLDADO MATOSINHO


 


 

 

José Lima Santana*

 

 

Contar, tenho eu muito a contar. Nos sertões mais brabos nunca me fiz de valente, nem tampouco de mofino. De caganeira nunca estive, por medo. Um filho de Venâncio das Imburanas não se cagava atoa. De tudo que vivi, o mais duro penar foi quando o coronel Machadinho deu de jogar nas minhas costas o mal feito pelo filho mais novo, Cirilo, um pirão perdido, a despeito de ser filho do dono de quase todas as terras do Ribeirão das Cotias, terras a nunca acabar.

Cirilo vivia a colher os três vinténs das negrinhas das remanescentes senzalas que o pai herdou do avô. E o coronel botando pra riba de uns e de outros. Comigo, não. Eu não haveria de pagar pelo crime do sinhozinho, como outros pagaram. Caí no mundo. Deixei mãe chorando, temendo pelo meu fim, e eu temendo pelo fim dela, no meu lugar, pois o coronel não era flor que se cheirasse. Era dado a espancar e até matar parentes de quem se aboletava no mundo, fugindo de suas maldades.

Andei léguas antes de me alcançarem. Na tarde do terceiro dia, avistei lá embaixo no Vale das Onças uns dez ou doze sujeitos. Dois deles fardados.

Naquela tarde, subi pelo rio das Queixadas. Tropecei em pedras de todo tamanho. Caí e levantei. Caí e levantei. Levantei e caí. Atrás, não muito, a cabroeira do coronel Machadinho, soldados e capangas. Queira o coronel Machadinho que eu pagasse pelo que não fiz. Pagava não. Só pagava se devesse. No caso, não devia. Não tinha que pagar. Escorreguei no breu da noite, mais negra que carvão aos montes. Tentaram me aferrar no tronco. Dois eu derrubei. Vieram muitos pra riba d’eu. Capoeira ajudou. Sapequei pernas e braços. Bom no manejo do corpo eu sou. Aprendi com mestre Zulu, dos antigos mestres, que aprenderam com os da Negra Mãe.

Mestre Zulu já não conta por aqui. Espírito voou sobre o mar grande. Retornou às terras das infinitas visões. Dia virá que o meu espírito também há de fazer o retorno. Descansar na sombra dos baobás. Árvores de reis e príncipes, dizia minha mãe.

Em cobra d’água quase pisei. A serpentosa ziguezagueou como se pressa tivesse. Cobra é bicho sestroso. Não ouve, mas vê e sente com língua de bifurcado demônio. Emboquei numa gruta de estreita entrada. De dentro pra fora, tinha eu boa visão. Vi o soldado Matosinho aproximar-se, examinando o terreno defronte. Marcas deixei.

Matosinho era das minhas bandas. Negro como eu. Nossos avós foram do mesmo eito, da mesma senzala. Dia foi, na feira do Pilar, que dei de salvar a vida dele. Um malfazejo das bandas dos Araçás meteu-se a valentão e quis dar de pano de facão no soldado Aroldo de Timbaúba. Matosinho partiu para adjutorar o companheiro. Não se deu mal, porque joguei uma cadeira que quase arrancou a cabeça do malfazejo. O facão, quase a tocar a cabeça de Matosinho, caiu longe. O soldado Matosinho agradecido ficou. “Sou seu mano”, ele disse.

Ali estava ele, o soldado Matosinho, farejando como cão de caça e raça. Adiante, foram-se os mais de dez homens em conversa de cochichos. Matosinho olhou com mais cuidado o terreno molhado. Encontrou rastro. Olhou para a entrada da gruta. Aprumou os olhos. Aproximou-se com passos curtos. Afastou um galho. Aprumei minha espingarda calibre doze. Daquela distância, eu arrancava o olho de uma lagartixa.

Ele avançou mais. Estava na entrada da gruta. Não podia me ver. Não dali. Acocorou-se. Mirei bem no meio do quengo dele. “Você taí, Aderaldo?”, ele perguntou. “É você, num é?”. Não respondi. Ele estava na minha mira. Rendido. Era só destambocar o tiro certeiro. Mas, os outros iam ouvir o estampido. Seria a minha perdição.

Ele achegou-se mais um pouco. Destravou o rifle. Apontou para o meu lado. Armas apontadas de lá e de cá. “Ocê vem por bem ou por mal, Aderaldo?”. Respondi: “Tu te alembra q’eu te salvei a vida, Matosinho?”. Ele calou. Arma dele apontada. A minha também.

Hora de nada temer. Matar ou morrer não era situação a merecer o meu pensamento. Melhor escapar com vida. Os outros, decerto, iam vir correndo ao ouvir os tiros, como urubus na carniça. Alguns eu acabava levando comigo, além do Matosinho. O inferno não me ia ter sozinho. Não! Mas, morrer não estava no meu querer, no meu pensar. Eu tinha que voltar, um dia, pra buscar mãe ou sangrar coronel Machadinho e seu filho celerado, abusador de negrinhas, caso o coronel desse cabo de mãe, embora ela fosse a curandeira da fazenda, curando negros e brancos. Difícil ele deixar o povo dali ficar sem a curandeira, que valia como uma médica.

Matosinho começou a suar. Enxugou a testa com a mão esquerda. A coronha do rifle encostada no ombro direito e o dedo indicador no gatilho. “Se ocê se entregar, eu garanto a sua vida!”, ele disse. “E tu é o coronel Machadinho, pra garantir vida de ninguém, soldado Matosinho? Claro que tu num é”.

Silêncio. Ele enxugou a testa mais uma vez. Estaria com medo? Eu achava que não. Matosinho não era de pedir arrego. Eu o tinha na mira. Se quisesse, espalhava os miolos dele por todo lado. Miolos de gente era uma coisa nojenta. De boi, se comia. Era gostoso, como mãe fazia em boa panela de barro e com tempero de açafrão e ervas.

Passaram-se uns minutos. Dali a pouco, os outros iam chamar pelo soldado Matosinho ou voltar pra saber porque ele ali se deteve. Aí seria ruim. “Soldado Matosinho, tu num tem nada a ver comigo. Eu te salvei a vida. Deixe que eu viva a minha em paz. Ou tu e eu vamo junto pro buraco”.

O soldado Matosinho parecia me caçar com o olhar. Tava difícil. Eu o via bem, mas ele não me via. Ele continuava na minha mira. Era só puxar o gatilho. Pum!

O vento soprou um cisco no olho do soldado Matosinho. Silêncio. Silêncio...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

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