sábado, 8 de janeiro de 2022

A PRISÃO DE JOÃO DE DODOCA


   

José Lima Santana*

 

 

Marmeleiro Grande sempre foi uma cidadezinha pacata, salvo nas festas dos Santos Reis, quando muita gente das vizinhanças acorria aos festejos. Aí, a calma ia-se embora. Cavalos e carroças de boi ou de burro se amontoavam nas ruas e becos. Automóveis naquele tempo eram poucos. A cidade se espichava, crescia, tomava volume de cidade de bom porte.

Depois do dia 6 de janeiro, a leseira voltava. O padre Agostinho, que tinha nome de santo, era também um santo. Velhinho, voz baixa, mas congregando em si todo o respeito do mundo. Até os políticos, muitos deles velhacos em suas promessas quase nunca cumpridas diante do povo, o respeitavam muito. “Estou aqui para morrer, um dia”, dizia.

As festas dos Santos Reis eram caprichadas. As da igreja e as do povo festeiro. Os ternos de Reis eram comentados pelo mundo afora. Vinha até gente da cidade grande, como repórteres de rádios e de jornais. Dona Miúda, toda embatocada de pó ruge dava entrevistas. Era a dona da festa. Herdou da mãe, que herdou da avó, a brincadeira do terno de Reis.

Na Rua do Melão, Sá Josefina do finado Zacarias de Alfredo Gordo abria mesa, jogava búzios, fazia adivinhações. Tinha lá de seu também muito respeito de quem a procurava para as mezinhas e coisas que tais. Uns diziam que ela tinha sabedoria dada por Deus. Outros juravam de pés juntos que ela tinha partes com o demo. Ignorância de uns ou de outros? De todos? Ia-se saber.

A casa de Sá Josefina parecia uma delegacia de cidade de gente briguenta: lotada de dia e de noite. Ela aviava garrafadas, quando não as preparava com infusão de todo tipo de ervas, folhas e cascas de paus. Consultava os búzios, amarrava maridos ou namorados, trazia-os de volta, quando na rampa já se encontravam.

Amélia de João de Dodoca procurou Sá Josefina numa tardezinha de sábado, logo depois das festas dos Santos Reis. Andava a pobre mulher preocupada com o marido, João de Dodoca. Este tinha virado a pá. Deu para se misturar com umas companhias suspeitas, uns sujeitos das bandas do Caitité, que já tinham comido cana pesada. Falava-se, em Marmeleiro Grande, que os tais eram da erva maldita e do pó. “Nossa Senhora do Desterro, desterrai esses malfeitores pra longe de João”, rezava Amélia.

O sargento Belisário deu de dar umas incertas para cima de João de Dodoca, sem sucesso, todavia. O policial tinha certeza, como disse ao cabo Aniceto, que João estava malocado em coisa graúda. Logo, logo, ele cairia. “Num tardo a botar a mão!”. O sargento não costumava errar nos prognósticos.

Sá Josefina atendeu Amélia com a costumeira presteza. Percebeu a agonia da mulher de João de Dodoca e deu-lhe a beber um chá de flor de maracujá. Um santíssimo remédio para os nervos. A visitante acalmou-se. Queria ver o que os búzios tinham a dizer sobre o marido.

A vidente chacoalhou os búzios e os fez rolar. Franziu a testa. Olhou com dureza para Amélia. Deixou escapar um leve suspiro. A mulher de João de Dodoca voltou a agoniar-se. “Qé qui foi, Sá Josefina? Coisa ruim?”, indagou Amélia. O olhar da advinha fez-se ainda mais duro. Amélia estremeceu. “Valei-me, meu São Jorge Guerreiro!”.

Um estrondo sacudiu a casa. Outro mais forte. Outros de menor força. Mais alguns. Desde antes do meio-dia, o mormaço já espalhava muito calor. Trovoada à vista. Os trovões continuaram. Relâmpagos cortavam o espaço. Um estrondo muito maior. Pingos de chuva. Sá Josefina levantou-se e cobriu com um pano o espelho da sala. A chuva desceu em grossos pingos. Quase um dilúvio. A rua foi tomada pelas águas. De valeta a valeta, um pequeno riacho se formou.

Amélia temia as trovoadas. Tinha mais medo dos trovões do que dos relâmpagos. “Trovão num faz medo a ninguém, sua tonta”, dizia-lhe sua mãe, no tempo de menina. Mas, ela continuava com medo dos estrondos dos céus.

E o que os búzios disseram? Sá Josefina, enfim, disse que João de Dodoca seria preso em breve. Amélia teve um chilique. Arreou-se na cadeira. Deu lá nela uma tremedeira, um estremelique. E foi acudida. Um dente de alho nos buracos das ventas. Ela tomou cor de si. Chorou.

Então, o que ela tanto temia estava para acontecer. O marido preso, apanhando de palmatória para delatar os comparsas, levando banho de salmoura fétida dos aloques da salgadeira de João Coruja, como o sargento Belisário gostava de fazer com os presos. Ela tinha que dar um jeito. Tinha que falar com João, para ele se afastar das más companhias. “Quem com porcos se mistura, farelo come”. Iria para casa, chamar o marido às falas. Deixasse a chuva passar. E os trovões.

Quando chegou em casa, já passava da hora da Ave-Maria. Amélia foi, primeiro, cuidar do café da noite. Um cuscuz recheado com queijo de coalho e coco ralado, para comer com carne de sol assada na brasa. A carne já tinha sido posta de molho, para tirar um pouco do sal. No fogão a lenha, o braseiro fumegava.

Mais logo, João haveria de chegar. O cuco da sala bateu sete, oito horas. Nada do marido. Amélia, ainda que fastiosa naquela noite, comeu um pouco do cuscuz com carne e uma tigela de café moído em casa. A previsão da prisão a agoniava, mais do que agoniada andava.

O cuco bateu dez horas. Nada. Ao badalar das dez e meia, alguém bateu à porta. Era João. Amélia não se conteve. Foi logo dizendo o que ouvira da boca de Sá Josefina. Zangou-se o marido. Disse despautérios contra a adivinha. “Amanhã, vou ter com ela. Vou fazer aquela bexiguenta engolir o que disse de mim”. Amélia apavorou-se. Arranjara uma encrenca.

Amélia não dormiu naquela noite. João de Dodoca, do seu lado, roncou e roncou.

Ao amanhecer, nem café quis tomar. Sob os rogos da mulher, para que não fosse ter com Sá Josefina, partiu de rua abaixo. Foi bater à porta da advinha. Disse-lhe mil e um desaforos. Até partiu para a agressão, agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a. Mais, ele não fez. Nem precisava. Não tardou para Amélia ser informada que o sargento Belisário tinha prendido o marido pela agressão a Sá Josefina.

E assim, a previsão dos búzios cumpriu-se em cheio. “Sá Josefina nunca erra”, disse Percílio de Mané Cospe Fogo.

 

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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