José Lima Santana*
Pedro Amâncio de Zé Bindó começou a
construir a casa, na qual esperava morar com Maria Zilda de Rosinha de Honório.
Namoravam há dois anos. Ele era guarda- sanitário, antigo posto que, na
Prefeitura, zelava pela ambiência sanitária da municipalidade. Cuidava das
vacinas, quando era época delas. Corria as feiras para verificar a condição dos
alimentos à venda. Visitava quintais e pocilgas. Fiscalizava ruas e becos,
atrás de monturos e sujidades. Enfim, não tinha descanso. Era ativo e
prestativo.
Terreno comprado e pago em três prestações
ao futuro sogro, Honório de Sianinha, ele mesmo deu formas ao projeto de
construção. Casa de quatro águas, avarandada, com ampla sala de estar, copa e
cozinha, banheiro social, três quartos, sendo um suíte, um luxo naquele tempo e
naquele lugar. Poucos ricaços tinham tal luxo.
Pedro Amâncio era caprichoso. O parco
salário da Prefeitura era acrescido com a venda de roupas masculinas, calças de
brim Coringa e camisas, compradas em Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco,
para onde viajava uma vez a cada dois meses. Era girento. Logo, logo, botaria
casa de comércio.
De sua vez, Maria Zilda era
professora da rede estadual, ensinando na Escola Isolada nº 5. Tirara o curso
de professora no Colégio das Freiras, em Chapadão das Embiras. Aplicada, dava
gosto ver a sua sala de aula e o modo como procurava desasnar os meninos, a
maioria de cabeça dura. Tratava-os com carinho. Pouco fazia uso da palmatória
ou da régua. Só num ou noutro caso e por extrema necessidade.
Ela e Pedro Amâncio faziam um belo
par, formavam um casal de encher os olhos. As duas famílias ansiavam pelo
casório deles. Os amigos, a cidade, por assim dizer. Tudo conspirava a favor
dos dois jovens.
O estimado guarda-sanitário não era
dado a folias. Nunca ingeria bebidas alcoólicas. Suas diversões eram jogar
gamão e ir ao cinema, nos dias em que o Cine Alvorada passava fitas. Na quinta,
um policial. No sábado, um drama, repetido no domingo, e que os espectadores
chamavam “filme de amor”. Às segundas-feiras, era o ápice das projeções: um
espadachim ou um bangue-bangue, para delírio dos aficionados.
Maria Zilda gostava de ir ao cinema
aos sábados. O namorado quase não perdia sessão. Além do gamão e do cinema, ele
gostava das apresentações circenses, quando por lá baixava um circo. Para Pedro
Amâncio, desde menino, os palhaços eram a maior diversão. Não gostava dos
trapezistas. Agoniava-se com os saltos mortais, nas alturas. Maria Zilda
adorava-os.
Também caiam no gosto do rapaz as
peripécias das rumbeiras. Algumas de boa figura, outras decaídas. Mas, de todo
modo, as rumbeiras faziam a algazarra dos homens e até, nalguns casos, causavam
ciúmes às mulheres, casadas, noivas ou namoradas. Os olhares dos homens para
elas não agradavam às mulheres. Visões interioranas.
Na cidade, em setembro, mês da festa
da Padroeira, aportou o Circo Mágico Trianon. Afamadíssimo, que as pessoas de
Soledade esperavam há tempos, pois já tinha se apresentado na cidade vizinha e
rival, Casa Caiada. O desfile inaugural do circo foi deslumbrante. Palhaços
fazendo estripulias, rumbeiras na carroceria de uma caminhonete, jogando
beijinhos para as pessoas, um motoqueiro do globo da morte, anões, animais
(cavalos montados por cowboys, como no cinema, chimpanzés, um elefante, dois
leões), um mágico a caráter com sua partner, um apresentador com casaca de
veludo, trapezistas, malabaristas e muito mais. O carro de som com dez bocas de
alto-falantes abria o cortejo colorido. Foguetório. “Isto, sim, é um circo de
verdade!”, gritou Marcolino de Chico Timbaúba. A cidade entrou em alvoroço.
A noite de estreia foi um sucesso
retumbante. Sexta-feira. Algodão doce, pipoca, maçã do amor e outras guloseimas
foram varridas pelo público. Nos camarotes, mais caros, as famílias gradas.
Santo Deus! Por gradas, entenda-se “endinheiradas”, mas nem sempre gradas de
verdade. Nas cadeiras repletas, poucos homens, muitas mulheres e crianças. No
poleiro, como se chamava a arquibancada, a plebe, mas, também, muitos maridos
das mulheres assentadas nas cadeiras.
A turba urrava a cada perna levantada
pelas rumbeiras. Em todo circo era a mesma velhacaria. Todas as apresentações
eram saudadas com estrepitosas salvas de palmas. Tudo no melhor requinte. O
mágico, dono do circo, era um caso à parte. Fazia demonstrações de alucinar o
público. Todavia, o píncaro do espetáculo foi a “Rainha das Rumbeiras”, filha
do dono do circo, cujo nome era o mesmo daquela que tinha os “lábios de mel” e
os “cabelos mais negros como as asas da graúna”. Iracema...! Era de entortar e
endoidecer qualquer cristão. Quantos pecados solitários naquela primeira noite,
e em todas as outras, não foram cometidos!
Pedro Amâncio e Maria Zilda estiveram
na primeira fila das cadeiras. A professora cutucou o namorado umas quantas
vezes. Ele, como muitos, de beiço caído na apresentação da “Rainha das Rumbeiras”.
Desassossego. De Pedro Amâncio, de João de Duca, de Américo Porto, de Dimas de
Malaquias e de tantos quantos foram ao espetáculo circense. Noite para jamais
esquecer. Iracema para sempre lembrar.
Foram quinze dias de estadia na
cidade. O Circo Mágico Trianon deveria ter ficado ali para sempre. Para que
ir-se embora? Para o desespero de muitos marmanjos. Pedro Amâncio deu para
ficar macambúzio. Deu para ouvir o doce nome de Iracema tangido pelo farfalhar
das palhas das bananeiras ao sussurrar do vento, nas tardes em que, após o
almoço, armava a rede no oitão da casa. “Iracema...! Iracema...!”.
Não era o vento, era a voz de um
diabinho soprando nos ouvidos do guarda-sanitário. O diabinho tentador. Ah, ele
existia, sim! “Iracema...! Iracema...!”. Numa daquelas tardes, após o almoço,
Pedro Amâncio teve febre. Adoeceu. Caiu de cama. O Dr. Milton foi chamado. Não
encontrou causa físico-biológica para o mal que afligia o prestimoso servidor
público municipal. “O problema é psicológico”, vaticinou.
Passaram-se os dias. A muito custo, a
febre cedeu. Deu no pé. Muitos foram os delírios. Maria Zilda soube pela irmã
do namorado, Doralice, que, às vezes, delirando, ele balbuciava o nome da
“Rainha das Rumbeiras”. Ela achou normal. Muitos homens balbuciaram aquele
nome: Iracema! Parecia constrangedor, mas era, enfim, coisas de homens,
alucinações passageiras.
Um ano e meio depois que o Circo
Mágico Trianon passou por Soledade, Pedro Amâncio e Maria Zilda deram-se em
matrimônio. Disseram as más línguas, informadas não se sabia por quem, que na
noite de núpcias, tendo a amada em seus braços, o diligente guarda-sanitário,
murmurou, incontáveis vezes, o nome da “Rainha das Rumbeiras”: “Iracema...!
Iracema...! Iracema...!”.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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