domingo, 23 de janeiro de 2022

A RAINHA DAS RUMBEIRAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pedro Amâncio de Zé Bindó começou a construir a casa, na qual esperava morar com Maria Zilda de Rosinha de Honório. Namoravam há dois anos. Ele era guarda- sanitário, antigo posto que, na Prefeitura, zelava pela ambiência sanitária da municipalidade. Cuidava das vacinas, quando era época delas. Corria as feiras para verificar a condição dos alimentos à venda. Visitava quintais e pocilgas. Fiscalizava ruas e becos, atrás de monturos e sujidades. Enfim, não tinha descanso. Era ativo e prestativo.

Terreno comprado e pago em três prestações ao futuro sogro, Honório de Sianinha, ele mesmo deu formas ao projeto de construção. Casa de quatro águas, avarandada, com ampla sala de estar, copa e cozinha, banheiro social, três quartos, sendo um suíte, um luxo naquele tempo e naquele lugar. Poucos ricaços tinham tal luxo.

Pedro Amâncio era caprichoso. O parco salário da Prefeitura era acrescido com a venda de roupas masculinas, calças de brim Coringa e camisas, compradas em Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco, para onde viajava uma vez a cada dois meses. Era girento. Logo, logo, botaria casa de comércio.

De sua vez, Maria Zilda era professora da rede estadual, ensinando na Escola Isolada nº 5. Tirara o curso de professora no Colégio das Freiras, em Chapadão das Embiras. Aplicada, dava gosto ver a sua sala de aula e o modo como procurava desasnar os meninos, a maioria de cabeça dura. Tratava-os com carinho. Pouco fazia uso da palmatória ou da régua. Só num ou noutro caso e por extrema necessidade.

Ela e Pedro Amâncio faziam um belo par, formavam um casal de encher os olhos. As duas famílias ansiavam pelo casório deles. Os amigos, a cidade, por assim dizer. Tudo conspirava a favor dos dois jovens.

O estimado guarda-sanitário não era dado a folias. Nunca ingeria bebidas alcoólicas. Suas diversões eram jogar gamão e ir ao cinema, nos dias em que o Cine Alvorada passava fitas. Na quinta, um policial. No sábado, um drama, repetido no domingo, e que os espectadores chamavam “filme de amor”. Às segundas-feiras, era o ápice das projeções: um espadachim ou um bangue-bangue, para delírio dos aficionados.

Maria Zilda gostava de ir ao cinema aos sábados. O namorado quase não perdia sessão. Além do gamão e do cinema, ele gostava das apresentações circenses, quando por lá baixava um circo. Para Pedro Amâncio, desde menino, os palhaços eram a maior diversão. Não gostava dos trapezistas. Agoniava-se com os saltos mortais, nas alturas. Maria Zilda adorava-os.

Também caiam no gosto do rapaz as peripécias das rumbeiras. Algumas de boa figura, outras decaídas. Mas, de todo modo, as rumbeiras faziam a algazarra dos homens e até, nalguns casos, causavam ciúmes às mulheres, casadas, noivas ou namoradas. Os olhares dos homens para elas não agradavam às mulheres. Visões interioranas.

Na cidade, em setembro, mês da festa da Padroeira, aportou o Circo Mágico Trianon. Afamadíssimo, que as pessoas de Soledade esperavam há tempos, pois já tinha se apresentado na cidade vizinha e rival, Casa Caiada. O desfile inaugural do circo foi deslumbrante. Palhaços fazendo estripulias, rumbeiras na carroceria de uma caminhonete, jogando beijinhos para as pessoas, um motoqueiro do globo da morte, anões, animais (cavalos montados por cowboys, como no cinema, chimpanzés, um elefante, dois leões), um mágico a caráter com sua partner, um apresentador com casaca de veludo, trapezistas, malabaristas e muito mais. O carro de som com dez bocas de alto-falantes abria o cortejo colorido. Foguetório. “Isto, sim, é um circo de verdade!”, gritou Marcolino de Chico Timbaúba. A cidade entrou em alvoroço.

A noite de estreia foi um sucesso retumbante. Sexta-feira. Algodão doce, pipoca, maçã do amor e outras guloseimas foram varridas pelo público. Nos camarotes, mais caros, as famílias gradas. Santo Deus! Por gradas, entenda-se “endinheiradas”, mas nem sempre gradas de verdade. Nas cadeiras repletas, poucos homens, muitas mulheres e crianças. No poleiro, como se chamava a arquibancada, a plebe, mas, também, muitos maridos das mulheres assentadas nas cadeiras.

A turba urrava a cada perna levantada pelas rumbeiras. Em todo circo era a mesma velhacaria. Todas as apresentações eram saudadas com estrepitosas salvas de palmas. Tudo no melhor requinte. O mágico, dono do circo, era um caso à parte. Fazia demonstrações de alucinar o público. Todavia, o píncaro do espetáculo foi a “Rainha das Rumbeiras”, filha do dono do circo, cujo nome era o mesmo daquela que tinha os “lábios de mel” e os “cabelos mais negros como as asas da graúna”. Iracema...! Era de entortar e endoidecer qualquer cristão. Quantos pecados solitários naquela primeira noite, e em todas as outras, não foram cometidos!

Pedro Amâncio e Maria Zilda estiveram na primeira fila das cadeiras. A professora cutucou o namorado umas quantas vezes. Ele, como muitos, de beiço caído na apresentação da “Rainha das Rumbeiras”. Desassossego. De Pedro Amâncio, de João de Duca, de Américo Porto, de Dimas de Malaquias e de tantos quantos foram ao espetáculo circense. Noite para jamais esquecer. Iracema para sempre lembrar.

Foram quinze dias de estadia na cidade. O Circo Mágico Trianon deveria ter ficado ali para sempre. Para que ir-se embora? Para o desespero de muitos marmanjos. Pedro Amâncio deu para ficar macambúzio. Deu para ouvir o doce nome de Iracema tangido pelo farfalhar das palhas das bananeiras ao sussurrar do vento, nas tardes em que, após o almoço, armava a rede no oitão da casa. “Iracema...! Iracema...!”.

Não era o vento, era a voz de um diabinho soprando nos ouvidos do guarda-sanitário. O diabinho tentador. Ah, ele existia, sim! “Iracema...! Iracema...!”. Numa daquelas tardes, após o almoço, Pedro Amâncio teve febre. Adoeceu. Caiu de cama. O Dr. Milton foi chamado. Não encontrou causa físico-biológica para o mal que afligia o prestimoso servidor público municipal. “O problema é psicológico”, vaticinou.

Passaram-se os dias. A muito custo, a febre cedeu. Deu no pé. Muitos foram os delírios. Maria Zilda soube pela irmã do namorado, Doralice, que, às vezes, delirando, ele balbuciava o nome da “Rainha das Rumbeiras”. Ela achou normal. Muitos homens balbuciaram aquele nome: Iracema! Parecia constrangedor, mas era, enfim, coisas de homens, alucinações passageiras.

Um ano e meio depois que o Circo Mágico Trianon passou por Soledade, Pedro Amâncio e Maria Zilda deram-se em matrimônio. Disseram as más línguas, informadas não se sabia por quem, que na noite de núpcias, tendo a amada em seus braços, o diligente guarda-sanitário, murmurou, incontáveis vezes, o nome da “Rainha das Rumbeiras”: “Iracema...! Iracema...! Iracema...!”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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