ALMOÇO NO SÁBADO
José Lima Santana*
O
veículo, um Siena vermelho, acabara de parar em frente ao prédio de quatro
andares. Um Uber. Não se passaram três minutos e a passageira desceu. Vestia um
conjunto de calças e blusa na cor azul claro. Ao motorista, ela pareceu um
misto de elegância e desolação. Os grandes olhos cor de mel pareciam mortiços.
Tocaram
para a Av. Beira Mar, ou melhor, Paulo Barreto. Não demorou quase nada e o
carro estava na Av. Jorge Amado. Entrou numa rua perpendicular. Desceu em
direção ao rio. Estacionou à direita, na esquina com a avenida. A passageira
pagou e desceu. O porteiro do prédio chique já a conhecia. “Bom dia, Dona Ana”.
Ela respondeu, chamando-o pelo nome.
Décimo
primeiro andar. Tocou a campainha. “Bom dia, Dona Ana Maria”, disse a
empregada. “Bom dia, Augusta”. Na sala ampla estava a amiga. Esta não se deu
conta de levantar-se. Saudou a amiga, degustando alguns morangos. Ofereceu.
“Não, obrigada”. Esmeralda olhou Ana Maria da cabeça aos pés. “Você está bem
nesse conjunto. Parece bem mais nova. Certas roupas enganam muito”. A convidada
suspirou levemente.
Eram
amigas há décadas. A anfitriã não era má pessoa. Só tinha a língua
destrambelhada. Falava pelos cotovelos, o que devia e, muito mais, o que não
devia. Às vezes, a recém-chegada pensava porque a suportava, porque ainda
mantinha a sua amizade. Não encontrava uma resposta convincente. Era do seu
feitio mostrar-se serena, embora sofresse um pouco com o seu jeito de ser.
“Você
quer logo uma cervejinha sem álcool”? Ana Maria recusou. Por ora, precisava
dizer umas coisas à amiga anfitriã. A conversa ácida da última quarta-feira
ficara entalada na garganta. “Esmeralda, você precisa me ouvir, como eu lhe
ouvi na nossa última conversa. Aliás, nossa, não. Sua conversa. Afinal, você
falou sozinha”.
A
anfitriã levantou-se e escancarou uma janela, que estava entreaberta. Voltou-se
a sentar. “Deixe o seu papo para depois do almoço. Eu tenho uma coisa muito
importante para lhe contar. Assunto da ordem do dia, que, certamente, você
ignora”.
E começou
o tiroteio de um lado só.
Amiga,
você não queira saber em que embeleco o meu irmão Antônio Alcides se meteu.
Você bem conhece o cunhado de sua prima Alice, o tal de Mário Ferreira. O
irmão, marido de Alice, é um homem de bem. Mas, esse Mário é um velhaco. Pois
meu irmão caiu na besteira de emprestar um dinheiro a ele, trezentos mil reais.
Recebeu um cheque sem fundos.
Ele
estava acostumado a emprestar quantias pequenas, vinte, trinta mil, coisas do
tipo. Agora, não. Foram trezentos. O velhaco do Mário Ferreira parecia ir bem
no comércio dele. Ampliou a loja no Centro, abriu loja no Shopping e, agora,
está para fechar as portas. Dizem que ele tem grana graúda entocada.
Vai dar o
golpe da falência para cima dos credores. E nessa, meu irmão está ferrado. Quem
tem um cheque sem fundos, nada tem. Se fosse no tempo do papai, lá no interior,
um bom delegado de polícia, daqueles militares de antigamente que não davam
sopa a ninguém, já dava uma surra de cipó caboclo e queria o dinheiro na mão.
Agora não é assim. Tudo tem que ir à Justiça. Uma Justiça morosa, que, às
vezes, só sabe dar direitos a quem não tem.
Meu irmão
falou com um sobrinho da mulher dele, que se formou em Direito há dois anos,
para entrar com uma ação judicial. Eu, assim que soube do caso, não por ele,
mas por Jorginho, meu filho, liguei para Alcides e disse que ele deve procurar
um advogado tarimbado, como o Dr. Netônio Machado.
Nem sei
se ele voltou a advogar depois que se aposentou como desembargador. Antes de
entrar para a magistratura, ele foi advogado da nossa família, de papai e de
todos nós. Tudo de Justiça da nossa família era com ele. Antônio Alcides é um
homem rico, você sabe. Rico. Nenhum dos nossos irmãos chega aos pés dele. Eu,
nem passo perto de sua sombra. Além do que já tinha, ele recebeu da herança de
papai e de mamãe, que não foi pouca coisa para cada um de nós, e a esposa
herdou muito mais dos pais dela. Tem muita gente nesta Aracaju que se passa por
rica, embora tenha lá seus bons tostões, mas não chega perto da fortuna deste
meu irmão. Você sabe. Eu sempre lhe disse. Entre nós não há segredos. Embora
podre de rico, trezentos mil é muito dinheiro, minha amiga. É ou não é?
Eu estive
pensando uma coisinha de nada. Acho que você poderia me prestar um grande favor
em nome da nossa amizade. “Augusta, minha filha, traga o balde com cervejas.
Umas castanhas e as patinhas de caranguejo”. Vamos beber um pouco. As cervejas
estão bem geladas, como a gente gosta.
E por
falar em Augusta, você soube que ela teve que ir ao cardiologista? Eu não lhe
disse isso, não foi? Pois teve. Andou com umas coisas esquisitas, um cansaço,
um peso no peito. Mandei que ela procurasse o Posto Médico lá no bairro dela.
Nada. Marcaram uma consulta para um ano e três meses depois. Assim, ela
morreria bem antes.
Como você
sabe, ela está comigo há quase trinta anos. Não tive o que fazer. Marquei a
consulta com o Dr. Souza. Paguei. Pensei em ir descontando do salário dela, mas
Jesus tocou o meu coração. Deixei para lá. Resultado da consulta? Uma série de
exames. Paguei tudo. Ela merece, coitada.
E sabe o
que deu? Angina. Por enquanto, mudança de estilo de vida, o que vai ser difícil
com o marido e as filhas que ela tem, que só lhe dão desgostos, e medicamentos.
Mais tarde, poderá ter que passar por uma angioplastia ou até mesmo cirurgia.
Se precisar, tomara que não passe da angioplastia. Você sabe que a angioplastia
coronária é o tratamento não cirúrgico das obstruções das artérias coronárias
por meio de cateter balão, com o objetivo de aumentar o fluxo de sangue para o
coração. Você sabe, sim! Lembrei que o velhote da Receita Federal que você
trocou pelo sarará do forró fez angioplastia com o Dr. Teles.
Ah! O
favor que eu quero é que você sonde, sem querer, mas querendo, com a sua prima
se o velhaco do cunhado dela tem dinheiro entocado ou algum negócio em nome de
outras pessoas. Aí você me diz e eu passo para o Alcides. Preciso desse favor,
minha amiga. “Augusta, pode pôr o almoço”! A gente come, descansa um pouco e
você poderá desembuchar tudo que quiser. Vamos à mesa. Hora da lasanha de
frango, que você gosta.
*Padre,
professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro
da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana
de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe.
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