domingo, 6 de março de 2022

A MORTE E A VIDA DO PADRE ANTÔNIO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

“Zefa! Ô Zefa de Sá Totoinha! Zefa, minha filha, o padre morreu. Bateu a caçoleta de uma horinha para a outra. Disse Maria Clara que ele comeu uma buchada na casa de Zé Argolo, bebeu um caneco d’água gelada e passou mal. Deu para estrebuchar e espumar, foi a conta.

Minha avó sempre dizia que comer comida pesada e beber água gelada em cima da bucha, é pedir a morte. A morte já vem sem a gente pedir, imagine pedindo. Morreu e está bem morrido. Vai ser um enterrão. É o primeiro padre que morre na nossa cidade. Vai ter um enxame de gente.

Ele era bem quisto aqui e por aí afora, onde era chamado a dizer missa. Já tão dizendo que até o bispo vem para o sepultamento. Vai ser uma missa de encantar. Encantar é o modo de dizer, porque, a bem da verdade, uma missa de finado não encanta ninguém, não é mesmo?

O corpo já está na casa paroquial. Belinha, a secretária dele, deve estar se desmanchando em lágrimas. Ela me parece uma moça muito séria, mas tem gente da língua grande e solta que diz lá umas coisas, que uma cristã como eu nunca deve dizer. Bato na minha boca três vezes. Que Deus me perdoe. E que perdoe, se puder, as pessoas faladeiras desta cidade pecaminosa.

Tenho cá para mim que o inferno vai receber muito mais gente daqui do que o céu. Tem gente daqui que nem vai passar pelo purgatório. Com certeza. Imagine que Dodô de Filomena disse no armarinho de Zuleica de Felícia que o padre era dado a beber escondido, em casa.

Pense se um homem santo daquele haveria de andar de pingunçada dentro de casa, bêbado de cair pelos cantos da sala ou do quarto. Acredito não! Taí uma coisa que que eu sou capaz de botar a minha mão no fogo. Pelo menos num foguinho brando dá para arriscar. Olhe, vou indo, tá? Vá espalhando a notícia que é para a gente encher a igreja, na missa de corpo presente. Vamos mostrar ao bispo o quanto a gente amava o padre Antônio”.

“Raimundinha! Raimundinha! Raimundinhaaaaa!!! Mulher, você está surda? Sou eu, Cecília. Eu estou aqui me esguelando e você nem chite. Ô criatura desaprumada na vida! Você já soube do padre Antônio? Soube não? Morreu. Sim, senhora, morreu e bem morrido. De repente. Deu nele uma coisa braba depois de comer uma buchada na casa de Zé Argolo e beber um caneco d’água gelada em cima da bucha. Assim, minha nêga, não teve salvação.

A morte quer um pretexto. Buchada com água gelada é tiro e queda. O padre gostava de uma água gelada danada, daquela de doer na goela. E você sabe, porque já deu muito pirão a ele. Aliás, você sempre paparicou os padres, até demais da conta. Pois estamos sem padre. Com certeza, o bispo vem para o enterro. A missa de corpo presente vai arrastar meio mundo para a igreja.

Aqui para nós, o padre era muito bem-quisto por aqui. Apesar dos gritos dele nas missas quando uma criança chorava nos braços da mãe, ele até que era gente boa. Melhor do que o padre Bartolomeu, aquele crocodilo velho. Dizem que virou bispo, na Bahia. Meu Deus! Que tipo de bispo botaram na Igreja! Uma lástima. Aquele não devia ter sido padre, quanto mais bispo. Mas, Deus seja servido! Mulher, vou indo. Preciso cuidar no jantar. Leonardo chega já, já, da fazenda. Em casa de marido com fome, as panelas devem estar cheias. A gente se vê no velório”.

“Anastácia! Anastácia, minha prima querida, chegue aqui na janela, que eu não tenho tempo de embiocar de casa adentro! Vem cá, vem! Como vai, minha flor? Já está a par da novidade? Oxente, então não soube do padre Antônio? Jura? O mundo todo sabe, menos você. Também, fica enfurnada nesta casa como se fosse um convento de monjas, cuidando de gatos e cachorros. Você tem tempo para cuidar de tantos bichos. Eu, hein? O padre Antônio, minha filha, passou desta para a pior. Morreu! Sim, senhora! Está mortinho da silva.

Uma tragédia. Comeu uma buchada de bode ou de carneiro, sei lá, tanto faz como tanto fez, bebeu um caneco d’água gelada e desgraçou-se. Morte na hora. Foi pá, bufo. Entregou a alma a Deus. Que Jesus tenha pena dele. Um santo homem que se foi. Um padre como ele vai demorar a aparecer por aqui.

Tomara que o bispo não mande uma peste para cá, que Deus me perdoe. Deixe eu bater na boca três vezes. Pois morreu, prima. A cidade inteira não fala noutra coisa. Diante da morte assim de repente de um padre sadio como ele parecia ser, tem algum outro assunto para se conversar nesta cidade ou noutra qualquer que fosse? Claro que não.

Vá cuidar dos seus bichos, que eu vou cuidar do jantar. Leonardo chega já, esbaforido de fome. E sabe como ele é, né? Chato para comer está ali. Quando está com fome, é capaz de comer até os pratos. Tchau”.

“Seu Francisco, que bom lhe encontrar aqui. O senhor já soube do padre Antônio, não foi? O que teve ele? Ninguém lhe disse? Ai, meu Deus! Logo o senhor, tão amigo dele, pobrezinho, não soube do ocorrido? Pois fique o senhor sabendo que ele, a essas horas, já deve estar com Jesus. Isso mesmo que o senhor está ouvindo desta minha abençoada boca. Morreu. E, ainda por cima, na casa dos outros.

Saiu da casa dele para morrer na casa de Zé Argolo. Comeu uma buchada, daquelas caprichadas como Dona Zizinha sabe fazer, e, em cima da bucha, bateu para o bucho um caneco d’água gelada. Foi tiro e queda! Não tem quem escape. Buchada é uma comida muito pesada e não se dá com água gelada. Misturou, estuporou. Pois morreu.

O corpo já está na casa paroquial. Pode passar por lá, para ver o seu amigo esticado. Só não deve estar ainda no caixão. Com certeza João de Perolina não vai fazer um daqueles caixões dele, feitos a martelo e serrote, em madeira de terceira. O bispo deve mandar vir de Aracaju um caixão de vidrinho na tampa. Um luxo! Igual ao do finado Manequinha, lembra? Causou um assombro por aqui. Coisa de rico. Pois é isso, seu Francisco. Perdemos um homem de Deus”.

Passava das cinco da tarde quando o Dr. Milton deixou a casa paroquial. O padre Antônio sentiu-se mal na casa de Zé Argolo, dono da padaria Minerva. Uma breve crise de hipertensão arterial, depois do almoço. Breve, mas forte. Chegou a desmaiar. Socorrido e medicado, porém, logo sentiu-se em bom estado de saúde, bem recuperado. Muitas missas ele ainda haveria de celebrar. Quanto a Cecília... Ah, Cecília!

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


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