José Lima Santana*
“Zefa! Ô
Zefa de Sá Totoinha! Zefa, minha filha, o padre morreu. Bateu a caçoleta de uma
horinha para a outra. Disse Maria Clara que ele comeu uma buchada na casa de Zé
Argolo, bebeu um caneco d’água gelada e passou mal. Deu para estrebuchar e
espumar, foi a conta.
Minha avó
sempre dizia que comer comida pesada e beber água gelada em cima da bucha, é
pedir a morte. A morte já vem sem a gente pedir, imagine pedindo. Morreu e está
bem morrido. Vai ser um enterrão. É o primeiro padre que morre na nossa cidade.
Vai ter um enxame de gente.
Ele era
bem quisto aqui e por aí afora, onde era chamado a dizer missa. Já tão dizendo
que até o bispo vem para o sepultamento. Vai ser uma missa de encantar.
Encantar é o modo de dizer, porque, a bem da verdade, uma missa de finado não
encanta ninguém, não é mesmo?
O corpo
já está na casa paroquial. Belinha, a secretária dele, deve estar se
desmanchando em lágrimas. Ela me parece uma moça muito séria, mas tem gente da
língua grande e solta que diz lá umas coisas, que uma cristã como eu nunca deve
dizer. Bato na minha boca três vezes. Que Deus me perdoe. E que perdoe, se
puder, as pessoas faladeiras desta cidade pecaminosa.
Tenho cá
para mim que o inferno vai receber muito mais gente daqui do que o céu. Tem
gente daqui que nem vai passar pelo purgatório. Com certeza. Imagine que Dodô
de Filomena disse no armarinho de Zuleica de Felícia que o padre era dado a
beber escondido, em casa.
Pense se
um homem santo daquele haveria de andar de pingunçada dentro de casa, bêbado de
cair pelos cantos da sala ou do quarto. Acredito não! Taí uma coisa que que eu
sou capaz de botar a minha mão no fogo. Pelo menos num foguinho brando dá para
arriscar. Olhe, vou indo, tá? Vá espalhando a notícia que é para a gente encher
a igreja, na missa de corpo presente. Vamos mostrar ao bispo o quanto a gente
amava o padre Antônio”.
“Raimundinha!
Raimundinha! Raimundinhaaaaa!!! Mulher, você está surda? Sou eu, Cecília. Eu
estou aqui me esguelando e você nem chite. Ô criatura desaprumada na vida! Você
já soube do padre Antônio? Soube não? Morreu. Sim, senhora, morreu e bem
morrido. De repente. Deu nele uma coisa braba depois de comer uma buchada na
casa de Zé Argolo e beber um caneco d’água gelada em cima da bucha. Assim,
minha nêga, não teve salvação.
A morte
quer um pretexto. Buchada com água gelada é tiro e queda. O padre gostava de
uma água gelada danada, daquela de doer na goela. E você sabe, porque já deu
muito pirão a ele. Aliás, você sempre paparicou os padres, até demais da conta.
Pois estamos sem padre. Com certeza, o bispo vem para o enterro. A missa de
corpo presente vai arrastar meio mundo para a igreja.
Aqui para
nós, o padre era muito bem-quisto por aqui. Apesar dos gritos dele nas missas
quando uma criança chorava nos braços da mãe, ele até que era gente boa. Melhor
do que o padre Bartolomeu, aquele crocodilo velho. Dizem que virou bispo, na
Bahia. Meu Deus! Que tipo de bispo botaram na Igreja! Uma lástima. Aquele não
devia ter sido padre, quanto mais bispo. Mas, Deus seja servido! Mulher, vou
indo. Preciso cuidar no jantar. Leonardo chega já, já, da fazenda. Em casa de
marido com fome, as panelas devem estar cheias. A gente se vê no velório”.
“Anastácia!
Anastácia, minha prima querida, chegue aqui na janela, que eu não tenho tempo
de embiocar de casa adentro! Vem cá, vem! Como vai, minha flor? Já está a par
da novidade? Oxente, então não soube do padre Antônio? Jura? O mundo todo sabe,
menos você. Também, fica enfurnada nesta casa como se fosse um convento de
monjas, cuidando de gatos e cachorros. Você tem tempo para cuidar de tantos
bichos. Eu, hein? O padre Antônio, minha filha, passou desta para a pior.
Morreu! Sim, senhora! Está mortinho da silva.
Uma
tragédia. Comeu uma buchada de bode ou de carneiro, sei lá, tanto faz como
tanto fez, bebeu um caneco d’água gelada e desgraçou-se. Morte na hora. Foi pá,
bufo. Entregou a alma a Deus. Que Jesus tenha pena dele. Um santo homem que se
foi. Um padre como ele vai demorar a aparecer por aqui.
Tomara
que o bispo não mande uma peste para cá, que Deus me perdoe. Deixe eu bater na
boca três vezes. Pois morreu, prima. A cidade inteira não fala noutra coisa.
Diante da morte assim de repente de um padre sadio como ele parecia ser, tem
algum outro assunto para se conversar nesta cidade ou noutra qualquer que fosse?
Claro que não.
Vá cuidar
dos seus bichos, que eu vou cuidar do jantar. Leonardo chega já, esbaforido de
fome. E sabe como ele é, né? Chato para comer está ali. Quando está com fome, é
capaz de comer até os pratos. Tchau”.
“Seu
Francisco, que bom lhe encontrar aqui. O senhor já soube do padre Antônio, não
foi? O que teve ele? Ninguém lhe disse? Ai, meu Deus! Logo o senhor, tão amigo
dele, pobrezinho, não soube do ocorrido? Pois fique o senhor sabendo que ele, a
essas horas, já deve estar com Jesus. Isso mesmo que o senhor está ouvindo
desta minha abençoada boca. Morreu. E, ainda por cima, na casa dos outros.
Saiu da
casa dele para morrer na casa de Zé Argolo. Comeu uma buchada, daquelas
caprichadas como Dona Zizinha sabe fazer, e, em cima da bucha, bateu para o
bucho um caneco d’água gelada. Foi tiro e queda! Não tem quem escape. Buchada é
uma comida muito pesada e não se dá com água gelada. Misturou, estuporou. Pois
morreu.
O corpo
já está na casa paroquial. Pode passar por lá, para ver o seu amigo esticado.
Só não deve estar ainda no caixão. Com certeza João de Perolina não vai fazer
um daqueles caixões dele, feitos a martelo e serrote, em madeira de terceira. O
bispo deve mandar vir de Aracaju um caixão de vidrinho na tampa. Um luxo! Igual
ao do finado Manequinha, lembra? Causou um assombro por aqui. Coisa de rico.
Pois é isso, seu Francisco. Perdemos um homem de Deus”.
Passava
das cinco da tarde quando o Dr. Milton deixou a casa paroquial. O padre Antônio
sentiu-se mal na casa de Zé Argolo, dono da padaria Minerva. Uma breve crise de
hipertensão arterial, depois do almoço. Breve, mas forte. Chegou a desmaiar.
Socorrido e medicado, porém, logo sentiu-se em bom estado de saúde, bem
recuperado. Muitas missas ele ainda haveria de celebrar. Quanto a Cecília... Ah,
Cecília!
*Padre,
advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras,
Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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