José Lima Santana*
Ribeirão
da Tapera, malsinado lugar, chão de lutas muitas, terra de mando do capitão
Janjão dos Passos, chefe militar e propagado benzedor. Conversa corria que
capitão Janjão se envultava. Aprendera com o seu antigo comandante, major
Adolfo Brito Silveira, o famigerado Silveirinha. Era o que se dizia. Este
também tinha o poder de envultar-se. Dizia-se até que não tinha morrido.
Simplesmente, sumira numa noite de tempestade. O diabo viera buscar a sua alma,
que lhe pertencia por pacto selado.
Estando
no meio de gente, de um nada, o capitão sumia. Poder de Deus, uns diziam. Obra
do demo, alardeavam outros. Sei não, mas gente como capitão Janjão dos Passos
era bem capaz de dar passos para todos os lados, para o bem ou o mal.
Tratava-se de gente esquisita, ele e a família toda.
Pai do
capitão Janjão morreu comido de bichos, que, na hora da morte, foram
desalugados dos miolos, saindo pelas orelhas cabeludas. Um horror, diziam os
antigos, os do tempo dele. Um tio, Joaquim, irmão gêmeo do pai do capitão
Janjão, este por nome Manoel e vulgo Maneco Amarelo, pela falta de tintura de
sangue nas veias, passou anos urrando como lobo vadio, entrevado numa cadeira,
levado para lá e para cá. Um lobisomem cadeirante. Família estranha.
Sem falar
em Maria Caçoleta, tia-avó, que, noite de lua cheia, foi apanhada no cemitério,
cabelos desgrenhados, olhos injetados de sangue, como as bruxas das estórias
que Dona Amelinha de Bosco de Felismino contava, nas noites de prosa, para
assustar os meninos como eu. Quero dizer, os outros meninos, porque eu nunca
fui de me deixar assustar com besteiragens. Eu cá, não!
De
repente, se bem me lembro, capitão Janjão deu de maluquecer de vez. Passou a
andar falando sozinho, revólver na cintura à mostra de todos. Falava coisas
desencontradas, de amalucado mesmo. E também andava fazendo besourinhos com os
beiços, como crianças de braço.
Dele, os
meninos tinham medo e as beatas se persignavam quando o avistavam, cortando
caminho. “É mal da idade”, dizia Florinda de Zé Catú, parteira do Ribeirão. Já
Aparecida de Tonho Mijão tinha para ela que aqueles modos de proceder do
capitão era manifestação do zambeta, pelos tantos malefícios causados anos a
fio. Sabia-se lá...
Deu-se,
então, que no inverno de 62, ano volumoso em águas de caída, aportou na cidade
um médico da capital, médico de gente maluca. O doutor tratou do capitão
Janjão. Fez exames e receitou medicamentos que só puderam ser encontrados na
capital. O paciente abrandou. Ficou quase normal depois de uns 60 dias.
A família
sentiu melhoras jamais pensadas. Mas, o doutor alertou que ele poderia ter um
surto a qualquer momento. Os amigos voltaram a se reunir em sua casa, nas
noites de sábado, como era costumeiro por anos a fio.
Noite
daquelas, em prosa avançada na sala de estar do capitão, guarnecida por móveis
antigos dos tempos do seu avô, amigos muitos sentados, quase todos fumando, a
fumaça empesteando a sala, capitão Janjão dos Passos levantou-se com uma
firmeza adquirida não se sabia onde e embocou no corredor que ligava a sala ao
resto da casa.
Demorou-se
o tempo de uma cuspida fraca secar. Enquanto a prosa continuava solta, lorotas
daqui e dali, eis que o capitão, sereno e impávido como uma estátua de cera,
apareceu na sala de pistola na mão. Arma alemã de doze tiros. O olhar vítreo
pouco se deu conta de quem estava ali.
Sem
pestanejar, abriu fogo contra todos. Um a um, os amigos foram caindo sob o
impacto das balas. Certeiras balas nas cabeças. Dois dos amigos quiseram
correr. Mal levantaram das cadeiras, foram alvejados pelas costas. Eram Dudu das
Porteiras e Maneca de Filó, oficial de justiça.
O sangue
dos amigos, em número de sete, escorreu pelo chão da sala, descendo para a
calçada. Capitão Janjão contou com o dedo indicador da mão esquerda: um, dois,
três, quatro, cinco, seis, sete... Mas, eram oito. A prosa era tocada por oito.
Faltava um. Ele, olhar ainda vítreo, moveu a cabeça em círculo, como olho de
camaleão.
Onde o
número oito se escondera? Ficou furioso. Escapara. Teria que ser detido, para
não dar com a língua nos dentes. Na sala havia um grande espelho. Surpreso, ele
viu no espelho o oitavo homem. Todos teriam que morrer. Fora essa a
determinação do seu chefe, Major Silveirinha, que soprava em seus ouvidos, dia
e noite: “Mate todos”!
Capitão
Janjão dos Passos não titubeou. Mais um, menos um, não faria diferença. Era
preciso limpar a sala, limpar o mundo. Todos aqueles caídos eram falsos amigos.
Todos queriam a sua ruína. Queriam-no preso num hospital para doidos. Ele não
era doido. Só estava um pouco cansado de tantas traições daqueles que se diziam
seus amigos.
Eram
traidores. Amigos disfarçados. Pendiam para Fernandão do Brejo, seu inimigo e
do seu falecido pai. Velho nojento que comia bunda de tanajura. Asqueroso como
uma cobra venenosa a arrastar-se pelo mundo, picando todos que encontrava.
Fernandão estava morto. Dele mandou Tonho Sete Mortes dar cabo. Os seguidores
de Fernandão, amigos seus disfarçados, acabaram de seguir o mesmo caminho.
Faltava um. O do espelho.
Aproximou-se
do espelho. Mirou bem. Ali estava o oitavo homem. Reconheceu-se. Apontou a
pistola para a própria cabeça. Um estampido. Duas quedas. Da pistola e do
corpo. O episódio ficaria conhecido como “a tragédia de Ribeirão da Tapera”. Eu
era menino, mas lembro muito bem do fato. Não dá para esquecer.
*Padre,
advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia
Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe.
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