domingo, 20 de março de 2022

A TRAGÉDIA DE RIBEIRÃO DA TAPERA


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Ribeirão da Tapera, malsinado lugar, chão de lutas muitas, terra de mando do capitão Janjão dos Passos, chefe militar e propagado benzedor. Conversa corria que capitão Janjão se envultava. Aprendera com o seu antigo comandante, major Adolfo Brito Silveira, o famigerado Silveirinha. Era o que se dizia. Este também tinha o poder de envultar-se. Dizia-se até que não tinha morrido. Simplesmente, sumira numa noite de tempestade. O diabo viera buscar a sua alma, que lhe pertencia por pacto selado.

Estando no meio de gente, de um nada, o capitão sumia. Poder de Deus, uns diziam. Obra do demo, alardeavam outros. Sei não, mas gente como capitão Janjão dos Passos era bem capaz de dar passos para todos os lados, para o bem ou o mal. Tratava-se de gente esquisita, ele e a família toda.

Pai do capitão Janjão morreu comido de bichos, que, na hora da morte, foram desalugados dos miolos, saindo pelas orelhas cabeludas. Um horror, diziam os antigos, os do tempo dele. Um tio, Joaquim, irmão gêmeo do pai do capitão Janjão, este por nome Manoel e vulgo Maneco Amarelo, pela falta de tintura de sangue nas veias, passou anos urrando como lobo vadio, entrevado numa cadeira, levado para lá e para cá. Um lobisomem cadeirante. Família estranha.

Sem falar em Maria Caçoleta, tia-avó, que, noite de lua cheia, foi apanhada no cemitério, cabelos desgrenhados, olhos injetados de sangue, como as bruxas das estórias que Dona Amelinha de Bosco de Felismino contava, nas noites de prosa, para assustar os meninos como eu. Quero dizer, os outros meninos, porque eu nunca fui de me deixar assustar com besteiragens. Eu cá, não!

De repente, se bem me lembro, capitão Janjão deu de maluquecer de vez. Passou a andar falando sozinho, revólver na cintura à mostra de todos. Falava coisas desencontradas, de amalucado mesmo. E também andava fazendo besourinhos com os beiços, como crianças de braço.

Dele, os meninos tinham medo e as beatas se persignavam quando o avistavam, cortando caminho. “É mal da idade”, dizia Florinda de Zé Catú, parteira do Ribeirão. Já Aparecida de Tonho Mijão tinha para ela que aqueles modos de proceder do capitão era manifestação do zambeta, pelos tantos malefícios causados anos a fio. Sabia-se lá...

Deu-se, então, que no inverno de 62, ano volumoso em águas de caída, aportou na cidade um médico da capital, médico de gente maluca. O doutor tratou do capitão Janjão. Fez exames e receitou medicamentos que só puderam ser encontrados na capital. O paciente abrandou. Ficou quase normal depois de uns 60 dias.

A família sentiu melhoras jamais pensadas. Mas, o doutor alertou que ele poderia ter um surto a qualquer momento. Os amigos voltaram a se reunir em sua casa, nas noites de sábado, como era costumeiro por anos a fio.

Noite daquelas, em prosa avançada na sala de estar do capitão, guarnecida por móveis antigos dos tempos do seu avô, amigos muitos sentados, quase todos fumando, a fumaça empesteando a sala, capitão Janjão dos Passos levantou-se com uma firmeza adquirida não se sabia onde e embocou no corredor que ligava a sala ao resto da casa.

Demorou-se o tempo de uma cuspida fraca secar. Enquanto a prosa continuava solta, lorotas daqui e dali, eis que o capitão, sereno e impávido como uma estátua de cera, apareceu na sala de pistola na mão. Arma alemã de doze tiros. O olhar vítreo pouco se deu conta de quem estava ali.

Sem pestanejar, abriu fogo contra todos. Um a um, os amigos foram caindo sob o impacto das balas. Certeiras balas nas cabeças. Dois dos amigos quiseram correr. Mal levantaram das cadeiras, foram alvejados pelas costas. Eram Dudu das Porteiras e Maneca de Filó, oficial de justiça.

O sangue dos amigos, em número de sete, escorreu pelo chão da sala, descendo para a calçada. Capitão Janjão contou com o dedo indicador da mão esquerda: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete... Mas, eram oito. A prosa era tocada por oito. Faltava um. Ele, olhar ainda vítreo, moveu a cabeça em círculo, como olho de camaleão.

Onde o número oito se escondera? Ficou furioso. Escapara. Teria que ser detido, para não dar com a língua nos dentes. Na sala havia um grande espelho. Surpreso, ele viu no espelho o oitavo homem. Todos teriam que morrer. Fora essa a determinação do seu chefe, Major Silveirinha, que soprava em seus ouvidos, dia e noite: “Mate todos”!

Capitão Janjão dos Passos não titubeou. Mais um, menos um, não faria diferença. Era preciso limpar a sala, limpar o mundo. Todos aqueles caídos eram falsos amigos. Todos queriam a sua ruína. Queriam-no preso num hospital para doidos. Ele não era doido. Só estava um pouco cansado de tantas traições daqueles que se diziam seus amigos.

Eram traidores. Amigos disfarçados. Pendiam para Fernandão do Brejo, seu inimigo e do seu falecido pai. Velho nojento que comia bunda de tanajura. Asqueroso como uma cobra venenosa a arrastar-se pelo mundo, picando todos que encontrava. Fernandão estava morto. Dele mandou Tonho Sete Mortes dar cabo. Os seguidores de Fernandão, amigos seus disfarçados, acabaram de seguir o mesmo caminho. Faltava um. O do espelho.

Aproximou-se do espelho. Mirou bem. Ali estava o oitavo homem. Reconheceu-se. Apontou a pistola para a própria cabeça. Um estampido. Duas quedas. Da pistola e do corpo. O episódio ficaria conhecido como “a tragédia de Ribeirão da Tapera”. Eu era menino, mas lembro muito bem do fato. Não dá para esquecer.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

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