domingo, 13 de março de 2022

BORORÓ


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Estavam no Ceará, nos idos do regime militar. Assim me contou quem lá esteve. O governador era um coronel, eleito pelo voto indireto, como ocorria naquele tempo danado. Mas, era o governador. Ali estava ele com a primeira-dama, na primeira fileira das cadeiras do teatro, gentilmente prestigiando o espetáculo daquela noite.

Era um festival de peças teatrais moderníssimas, tão ao gosto dos estudantes e por demais detestado pela censura. “A censura ainda vai acabar com o que resta do Brasil”, dizia o diretor teatral, velho conhecido dos palcos, dos camarins pelo País afora e da Polícia. “Viva a Arte! Abaixo a censura”! Era a faixa dependurada no foyer do teatro.

Ao entrar e deparar-se com a faixa, o governador chamou o comandante da Polícia Militar, que o acompanhava, e determinou a retirada. Ordem prontamente atendida. Lá foram dois soldados retirá-la, um deles dobrando-a e metendo-a debaixo do sovaco suado, para jogá-la na lixeira mais próxima. “Isso é coisa de comunistas”! esbravejou o comandante de cara roliça como a do sargento Garcia dos filmes do Zorro.

Era a primeira noite das apresentações. Cabia, claro, aos estudantes cearenses a primazia. Um teatrólogo local escreveu de última hora uma encenação do julgamento de Jesus por Pilatos. Diálogos livres, talvez acintosos ao regime. O produtor do guarda-roupa de todas as peças encenadas pelos estudantes do curso de Direito era o mesmo: João Gomes, vulgo João de Dió ou, simplesmente, Bororó.

Um sujeito espalhafatoso, cheio de dedos, trejeitos, caras e bocas e muitos chiliques. Coitado! Sempre teve vontade de aparecer em cena. “Não, meu filho, você é bom demais nos bastidores para se arriscar no palco”, vociferava o diretor. E Bororó deixava-se vencer.

Daquela vez, não. Bororó, menino mimado por vó, fincou o pé. Ou tinha uma participação na peça, ou não desenharia o guarda-roupa de ninguém. Foi um bate-boca da desgraça. Dois dias de turras. A turma do “deixa- disso” teve trabalho. Os dois, o diretor e Bororó, não arredavam o pé.

Enfim, na antevéspera da apresentação, eis que chegaram a um consenso. Bororó teria a sua chance de aparecer em público. Iria contracenar com o estudante Márcio Antunes, que faria o papel de Jesus. Bororó seria Pilatos. O diretor tinha cedido, mas estava “porraqui” com Bororó. “Este infeliz vai botar tudo a perder. Eu temo pela reação do público. Vão dizer palavrões com ele”. Não tinha mais jeito a dar. Bororó em cena.

A irmã mais nova de Bororó tinha sido eleita Miss Ceará dois anos antes. Linda de viver. Um colosso. Ficara em terceiro lugar no Miss Brasil. Era estudante de Geografia. Namorava um jovem deputado estadual, primo em segundo grau do governador e afilhado do comandante da Polícia. Lá estavam ela e o namorado deputado, igualmente na primeira fila, do outro lado. Estava aflita para ver o desempenho do irmão. Eles eram carne e unha.

Teatro lotado. Muitas autoridades. Muitos repórteres. Rádios, jornais e TV. A estudantada cearense e as delegações dos outros Estados comprimiam-se nos corredores. O suor escorria em bicas. O governador abriu o paletó, afrouxou o nó da gravata. A primeira-dama não parava com o vai-e-vem do leque japonês. Outra faixa foi sorrateiramente posta no lugar da anterior. “Liberdade e Pão. Abaixo a Opressão”. E lá ficou. Não foi notada pelas “forças”.

Após os três toques, o palco ficou à meia-luz. A cortina foi sendo afastada para o lado direito, lentamente. O cenário era uma réplica tosca da sala de julgamento de Pilatos. Tambores rufando. Clarins. Tudo tomado de empréstimo à Banda Marcial de um dos Colégios da rede estadual. E tudo muito bem afinado. O governador mexeu-se para um lado, inclinando o traseiro à direita. Ao seu lado, o coronel-comandante, discretamente, elevou a mão às ventas. Um cheiro ruim acabara de empestear o lugar.

Correra entre os estudantes do Ceará a notícia de que Bororó faria o papel de Pilatos. Agitação total. Em cena, soldados conduzindo Jesus. Sacerdotes e fariseus. Uma pequena turba açulava, pedindo a condenação de Jesus. Um soldado deu-lhe um empurrão. A primeira-dama deixou escapar um grito e um soluço.

O arauto palaciano anunciou com voz grave: “O governador Pilatos”! Novos rufares e clarins. E eis que, com toda pompa digna de um representante de César, adentrou Bororó. Vestia uma toga escarlate com franjas e abertura frontal. Um manto dourado. Adereços cobrindo os braços, dos antebraços aos cotovelos. A estudantada urrou: “Rainha! Rainha! Rainha”! Bororó, isto é, Pilatos, deu uma rabanada, puxou uma lateral do manto e cobriu o rosto. Lentamente, sentou-se. “Rainha! Rainha! Rainha”! Bororó estava no auge.

O coronel governador sentiu-se incomodado. Fez menção de levantar-se. A primeira-dama o conteve. “Não fica bem. Vamos esperar”. Conteve-se o chefe do Poder Executivo. Um personagem sacerdotal fez as acusações contra Jesus. Dedo em riste, quase tocando o nariz do preso. Aproximou ainda mais o dedo do rosto do jovem Antunes. De sacanagem, tocou para lá e para cá no nariz apatachado do moço. Este lascou um espirro que melecou a cara do acusador. Delírio na plateia. “Meleca! Meleca! Meleca”! Uma zorra.

Bororó, isto é, Pilatos, pediu silêncio. Foi atendido após uns cinco minutos. O governador soltou a gravata. Bufava. A primeira-dama, mais uma vez, o conteve. Do outro lado de sua excelência, o comandante perguntou: “Acabo com a palhaçada, chefe”? Silêncio breve. “Ainda não”. Bororó, isto é, Pilatos, levantou-se. Tropeçou no manto. Segurou-se na cadeira. Aprumou-se. Com voz de falsete, exclamou: “O que quereis vós de mim, fariseus”?

A plateia explodiu em uníssono: “A sua irmã, Bororó”! Foi o quanto bastou. O comandante da Polícia, por sua conta, chamou alguns policiais postados a pouca distância. “Baixem o pau”! Quantos foram presos? Não sei. Quantos feridos? Também não sei. O que sei mesmo, pois me contaram, foi que Bororó nunca mais entrou em cena.

A estudantada tinha ensaiado pedir outra coisa a Bororó, que ele estava acostumado a dar, diziam as más línguas. Mas, não ficaria bem proferir a palavra monossilábica pensada. Nem mesmo ali, naquela algazarra estudantil.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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