sábado, 16 de abril de 2022

CARRO DE BOIS

 

 

José Lima Santana*

 

 

Bois marrentos. Tinhoso e Caprichoso. Melhor junta de coice de qualquer carro de bois das redondezas, num alcance de dez ou mais léguas em quadra. Das três juntas de bois de Manuca Carreiro, a junta traseira, daí dizer-se de coice, Tinhoso e Caprichoso eram os bambambãs. Grandalhões. Cabia-lhes puxar o maior peso.

As duas outras juntas, a dianteira e a do meio, tinham sua serventia, mas o peso mesmo da carroça era dos dois marrunchos. Preço? Tinha não. Compradores não faltavam. Tinha aos montes. Bois cobiçados, Tinhoso e Caprichoso. Valiam um dinheirão. Sem preço, todavia. Avaliava-se em conto de réis para cima. Cada um.

Leozírio de Teté Molambo botou preço. Dois contos e quatrocentos pela junta. Manuca sorriu. Nem resposta deu. Na bodega de Alonso Fanhoso, numa ligeira parada para limpar a goela com uma lapada da branquinha com erva-cidreira, Maneca deu a entender o seu preço pelos bois. “Quanto vale a alegria de um caboclo, seu Alonso? Pois é quanto valem os meus bois”. Bem pensando, alegria não tinha preço. De ninguém. Alegria era um estado de alma, coisa preciosa por demais. Desmedidamente preciosa.

“Vamos Tinhoso! Olhe o prumo, Caprichoso! Força nas canelas, meus bichinhos de Deus. Amarelo... Verde Lírio... Vocês tão dorminhando? Ferrugem... Azougado... Oh, boizinhos de meu Deus! Olhem a ladeira. Vamos, força! Amores da minha vida, endireitem a trilha. Subindo, subindo”.

Maneca desceu do carro, carregado de lenha. Lenha de candeia branca das matas de Oscar Escrivão. Lenha apreciada, boa de fogo para danar. Muito caro, o metro cúbico da boa lenha. E por falar em candeia branca, as folhas eram receitadas pelos médicos para curar os males do fígado. Uma beberagem, com a infusão das folhas em água de moringa, era pau, casca. Um santo remédio. Nenhum remédio de farmácia era igual.

O menino tangedor, Sebinho, neto de Maneca, e quase um rapaz, vara curta ao ombro seguia ao lado da junta dianteira. Vez ou outra, tocando a vara no lombo dos bois. Ladeira comprida, mas não muito íngreme. O sol do fim da manhã ardia na pele, os braços do carreiro e do tangedor tostados.

Vida dura, de todos eles. Dos bois e dos homens. Uns, escravos da canga; outros, escravos do trabalho de parco rendimento. “A vida num tá fácil pra ninguém, seu Antero”, dizia o velho Maneca ao vizinho de sítio. Mas, a vida devia ser tocada. Homens mugindo como bois, esquecidos dos homens de posição no governo, sofriam, no dia a dia, uns mais que outros.

Maneca, por ali, era um sujeito de boa posição. Tinha o seu carro de bois, o seu bom sítio de moradia e plantio, não devia a cabeça a ninguém. Todavia, ao seu derredor, muitos homens e mulheres penavam na foice ou na enxada, e, ainda assim, quando achavam dias de serviços nas fazendas. Os donos destas pagavam uma miséria por um dia de trabalho. Pobres desvalidos. E muitos adolescentes já se empregavam nos eitos, para ajudar os pais a botarem o bocado em casa, o de comer ordinário de pobres.

Egídio Melo parou Maneca na estrada do Pau Ferro. Queria os serviços dele para retirar do matagal da fazenda Limoeiro muitas carradas de lenha de candeia e de pirunga, pois estava desmatando umas cinquenta tarefas de terra para o plantio de algodão. Acertaram o serviço, a começar dois dias depois, quando Maneca concluísse a empreitada do momento.

Preço combinado e tudo, o velho carreiro tocou as suas juntas de bois. “Ô dia lindo, Tinhoso! Sebo nas canelas, Caprichoso. Deixe de preguiça, Verde Lírio. Olhe o passo, Amarelo...”. Sebinho tirou do bolso um bolachão e tacou na boca. Bolachão duro, de dois ou três dias, enfiado, em casa, no saco de farinha de mandioca, para durar. Bolachão da padaria de “seu” Astérico, um mimo. Na mesa, com café e uma lágrima de manteiga, era de lamber os beiços. Adiante, uma cobra papa-pinto almoçando uma jararaca. A papa-pinto limpava os pastos e matagais.

“Dona Joana, ô Dona Joana! Olhe a lenha”! Chegaram. Dona Joana de Artur da Bela Vista, que deu de criar zebu, acorreu ao chamado de Sebinho. Carro encostado ao muro, lenha descarregada. “Essa lenha, sim, é da boa, Maneca. Mas, a que eu comprei a Fernandinho de Zuleica, era uma mistura danada de candeia, pirunga e joão-mole. Uma lástima! O joão-mole só presta para fazer cinzas. Essa não, é pura candeia”.

Hora de parar para pegar a boia. Maneca tomou o rumo de casa. Desencangou os bois para um refrigério. Deixou-os babujando uns molhos de capim sempre-verde, no oitão da casa, no cercado onde pernoitavam. Dali a pouco, os encangaria de novo. Longo ainda seria o dia de trabalho, até as estrelas começarem a pipocar no céu.

Dois dias depois, o serviço de Egídio Melo teve início. Muita lenha para tirar do mato. Maneca levou seis semanas para dar conta da retirada. Lenha muita. O fazendeiro faria um bom dinheiro, vendendo para as padarias a lenha mais grossa, boa para os fornos, e para as donas de casa a lenha fina, de fogão.

Maneca preferiu receber o dinheiro ajustado ao final do serviço. Três contos de reis. Na hora do pagamento, Egídio quis dar para trás. “Maneca, eu sei que o ajustado foi esse. Mas, você não acha que é dinheiro demais por um serviço maneiro? Você não acha que dois e quinhentos está de bom tamanho”?

Não. Maneca não achava de bom tamanho nada que não fosse o valor ajustado. Afinal, homens de palavra não regateavam depois de ajustes feitos. Do seu trabalho com as suas três juntas de bois tirava o sustento da família. Foi assim que criou os sete filhos, com a mulher na lide da casa e do roçado, ali mesmo no sítio amplo e que de tudo dava.

“Seu Egídio, um homem de cabelo no buraco da venta e de tintura nas veias não arreda pé da palavra dada. A gente fez um negócio. Três contos. Nem um vintém a menos. Se o senhor aguenta arrocho, experimente pagar menos. Não a mim, que não recebo nada a menos do que o acertado, mas ao delegado”. Maneca fez uma pausa. E concluiu: “Eu não sou Roberto de Silveirinha, que o senhor botou o seu gado na roça dele, na hora de colher o milho. Eu não sou Mário de Zeferino do Campo Largo, que o senhor deu de rebenque na cara daquele pobre coitado, sem eira nem beira. Sou não! Três contos foi o ajustado e será o recebido”.

O velho carreiro deu as costas e fez menção de ir-se. Egídio arregalou os olhos. Meteu a mão no bolso, cuspiu nos dedos. Contou o dinheiro, tin-tin por tin-tin.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


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