José Lima Santana*
Bois marrentos. Tinhoso e Caprichoso.
Melhor junta de coice de qualquer carro de bois das redondezas, num alcance de
dez ou mais léguas em quadra. Das três juntas de bois de Manuca Carreiro, a
junta traseira, daí dizer-se de coice, Tinhoso e Caprichoso eram os bambambãs.
Grandalhões. Cabia-lhes puxar o maior peso.
As duas outras juntas, a dianteira e
a do meio, tinham sua serventia, mas o peso mesmo da carroça era dos dois
marrunchos. Preço? Tinha não. Compradores não faltavam. Tinha aos montes. Bois
cobiçados, Tinhoso e Caprichoso. Valiam um dinheirão. Sem preço, todavia.
Avaliava-se em conto de réis para cima. Cada um.
Leozírio de Teté Molambo botou preço.
Dois contos e quatrocentos pela junta. Manuca sorriu. Nem resposta deu. Na
bodega de Alonso Fanhoso, numa ligeira parada para limpar a goela com uma
lapada da branquinha com erva-cidreira, Maneca deu a entender o seu preço pelos
bois. “Quanto vale a alegria de um caboclo, seu Alonso? Pois é quanto valem os
meus bois”. Bem pensando, alegria não tinha preço. De ninguém. Alegria era um
estado de alma, coisa preciosa por demais. Desmedidamente preciosa.
“Vamos Tinhoso! Olhe o prumo,
Caprichoso! Força nas canelas, meus bichinhos de Deus. Amarelo... Verde
Lírio... Vocês tão dorminhando? Ferrugem... Azougado... Oh, boizinhos de meu
Deus! Olhem a ladeira. Vamos, força! Amores da minha vida, endireitem a trilha.
Subindo, subindo”.
Maneca desceu do carro, carregado de
lenha. Lenha de candeia branca das matas de Oscar Escrivão. Lenha apreciada,
boa de fogo para danar. Muito caro, o metro cúbico da boa lenha. E por falar em
candeia branca, as folhas eram receitadas pelos médicos para curar os males do
fígado. Uma beberagem, com a infusão das folhas em água de moringa, era pau,
casca. Um santo remédio. Nenhum remédio de farmácia era igual.
O menino tangedor, Sebinho, neto de
Maneca, e quase um rapaz, vara curta ao ombro seguia ao lado da junta
dianteira. Vez ou outra, tocando a vara no lombo dos bois. Ladeira comprida,
mas não muito íngreme. O sol do fim da manhã ardia na pele, os braços do
carreiro e do tangedor tostados.
Vida dura, de todos eles. Dos bois e
dos homens. Uns, escravos da canga; outros, escravos do trabalho de parco
rendimento. “A vida num tá fácil pra ninguém, seu Antero”, dizia o velho Maneca
ao vizinho de sítio. Mas, a vida devia ser tocada. Homens mugindo como bois,
esquecidos dos homens de posição no governo, sofriam, no dia a dia, uns mais
que outros.
Maneca, por ali, era um sujeito de
boa posição. Tinha o seu carro de bois, o seu bom sítio de moradia e plantio,
não devia a cabeça a ninguém. Todavia, ao seu derredor, muitos homens e
mulheres penavam na foice ou na enxada, e, ainda assim, quando achavam dias de
serviços nas fazendas. Os donos destas pagavam uma miséria por um dia de
trabalho. Pobres desvalidos. E muitos adolescentes já se empregavam nos eitos,
para ajudar os pais a botarem o bocado em casa, o de comer ordinário de pobres.
Egídio Melo parou Maneca na estrada
do Pau Ferro. Queria os serviços dele para retirar do matagal da fazenda
Limoeiro muitas carradas de lenha de candeia e de pirunga, pois estava
desmatando umas cinquenta tarefas de terra para o plantio de algodão. Acertaram
o serviço, a começar dois dias depois, quando Maneca concluísse a empreitada do
momento.
Preço combinado e tudo, o velho
carreiro tocou as suas juntas de bois. “Ô dia lindo, Tinhoso! Sebo nas canelas,
Caprichoso. Deixe de preguiça, Verde Lírio. Olhe o passo, Amarelo...”. Sebinho
tirou do bolso um bolachão e tacou na boca. Bolachão duro, de dois ou três
dias, enfiado, em casa, no saco de farinha de mandioca, para durar. Bolachão da
padaria de “seu” Astérico, um mimo. Na mesa, com café e uma lágrima de
manteiga, era de lamber os beiços. Adiante, uma cobra papa-pinto almoçando uma
jararaca. A papa-pinto limpava os pastos e matagais.
“Dona Joana, ô Dona Joana! Olhe a
lenha”! Chegaram. Dona Joana de Artur da Bela Vista, que deu de criar zebu,
acorreu ao chamado de Sebinho. Carro encostado ao muro, lenha descarregada.
“Essa lenha, sim, é da boa, Maneca. Mas, a que eu comprei a Fernandinho de
Zuleica, era uma mistura danada de candeia, pirunga e joão-mole. Uma lástima! O
joão-mole só presta para fazer cinzas. Essa não, é pura candeia”.
Hora de parar para pegar a boia.
Maneca tomou o rumo de casa. Desencangou os bois para um refrigério. Deixou-os
babujando uns molhos de capim sempre-verde, no oitão da casa, no cercado onde
pernoitavam. Dali a pouco, os encangaria de novo. Longo ainda seria o dia de
trabalho, até as estrelas começarem a pipocar no céu.
Dois dias depois, o serviço de Egídio
Melo teve início. Muita lenha para tirar do mato. Maneca levou seis semanas
para dar conta da retirada. Lenha muita. O fazendeiro faria um bom dinheiro,
vendendo para as padarias a lenha mais grossa, boa para os fornos, e para as
donas de casa a lenha fina, de fogão.
Maneca preferiu receber o dinheiro
ajustado ao final do serviço. Três contos de reis. Na hora do pagamento, Egídio
quis dar para trás. “Maneca, eu sei que o ajustado foi esse. Mas, você não acha
que é dinheiro demais por um serviço maneiro? Você não acha que dois e
quinhentos está de bom tamanho”?
Não. Maneca não achava de bom tamanho
nada que não fosse o valor ajustado. Afinal, homens de palavra não regateavam
depois de ajustes feitos. Do seu trabalho com as suas três juntas de bois
tirava o sustento da família. Foi assim que criou os sete filhos, com a mulher
na lide da casa e do roçado, ali mesmo no sítio amplo e que de tudo dava.
“Seu Egídio, um homem de cabelo no
buraco da venta e de tintura nas veias não arreda pé da palavra dada. A gente
fez um negócio. Três contos. Nem um vintém a menos. Se o senhor aguenta
arrocho, experimente pagar menos. Não a mim, que não recebo nada a menos do que
o acertado, mas ao delegado”. Maneca fez uma pausa. E concluiu: “Eu não sou
Roberto de Silveirinha, que o senhor botou o seu gado na roça dele, na hora de
colher o milho. Eu não sou Mário de Zeferino do Campo Largo, que o senhor deu
de rebenque na cara daquele pobre coitado, sem eira nem beira. Sou não! Três
contos foi o ajustado e será o recebido”.
O velho carreiro deu as costas e fez
menção de ir-se. Egídio arregalou os olhos. Meteu a mão no bolso, cuspiu nos
dedos. Contou o dinheiro, tin-tin por tin-tin.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de
Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação
e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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