José Lima Santana*
Ao retornar à praça de alimentação do
shopping, Marilda encontrou a amiga em absoluta desolação. Antes de sua saída,
não conseguiu atinar sobre quem poderia ser o rapagão que não tirava os olhos
das duas, ou melhor, de Hortência, a amiga. Os olhos direcionavam-se
diretamente para esta.
Solteira há um ano, depois de levar
bolo do noivo, cujo casamento estava na ponta do lápis e na ponta do bico de
cada colunista social da pequena capital, onde uma fofoca era vendida como
verdade, Hortência, bem-nascida, entrou em hibernação social, teve anorexia,
ficou deprê. A custo de sessões de análise e medicamentos, começou, enfim, a
dar o ar da graça nos lugares onde podia ser vista.
Quem era aquele rapaz? Marilda
afirmou à amiga que o conhecia de algum lugar, mas a memória estava nas nuvens.
“Meu Deus, não estou atinando! Mas, sei que o conheço de algum lugar”.
Hortência não pareceu se incomodar com a angústia momentânea da amiga. O
evidente interesse do rapaz não merecia ser olvidado. Então, ela o encarou de
volta. Ele levantou a taça na qual sorvia vinho tinto. Ela fez o mesmo com a
caipirosca nevada de kiwi. Uma delícia. “Marilda, você sabe que ainda estou em
choque por causa daquele salafrário, que me deu o fora, que me trocou por uma
zinha pé-de-chinelo, sem classe, só porque é filha do novo dono da rede de
farmácias ‘PegueLev’. Você sabe que eu continuo abalada, mas não devo ficar na
defensiva. Se um lindão daquele está dando sinal, o que devo fazer? Esperar que
ele tome a iniciativa ou devo me jogar”? Disse isso e sorriu, quase
gargalhando. Conteve a gargalhada. Não convinha. O que o rapaz poderia pensar?
Que ela era uma doidivana? Uma sem classe?
Alguns minutos depois, as duas se
separaram. Marilda tinha dentista. Hortência ficou trocando olhares e sorrisos
com o rapaz. Mal funcionou o carro, Marilda teve de volta à memória a figura do
rapaz da taça de vinho. “Meu Deus! É ele”! Desligou o carro. Pagaria o
acréscimo do estacionamento. Quase trotando, retornou ao local onde deixara a
amiga. Esbarrou num senhorzinho. “Desculpe”!
Era sexta-feira. Quase cinco da
tarde. O fluxo de pessoas era grande. Esbaforida, Marilda viu que Hortência
continuava sozinha. “Ufa! Deu tempo”, pensou. Engano.
Ao revê-la, Hortência disse:
“Marilda, minha irmã, você não sabe o que aconteceu”! Respirou forte. Quase
engasgou. “Imagine você, que por pouco não tive um surto. Estou pasma. Isso não
deveria ter acontecido comigo. Não depois do que eu passei”. A amiga avexou-se:
“Diga, logo, mulher, ele lhe tratou mal? Disse alguma inconveniência? Quer que
eu chame a polícia”? Aí, sim, uma lágrima furtiva desceu de cada olho verde de
Hortência, a abandonada pelo noivo, um ano antes. “Deus do céu, amiga.
Desembuche. Eu estou ficando nervosa”. Marilda olhou para o lado do rapaz do
vinho tinto. Lá estava ele com a taça, agora olhando para o outro lado, na
direção do jovem garçom. “Eu sabia! Só não tinha me lembrado, mas eu sabia”,
disse Marilda.
Bem. Quando Marilda saiu para ir ao dentista,
Hortência chamou o garçom e perguntou se o rapaz tinha chegado sozinho.
Afirmativo. Deveria estar esperando alguém? O garçom sorriu com malícia e
respondeu: “Há uns três dias, ele vem aqui, nesse mesmo horário. Pede uma taça
de vinho tinto seco, demora um pouco e me dá uma gorjeta graúda. Depois, um dá
um aperto de mão e vai embora. Sempre sozinho”. Ela ficou aliviada. Mas, logo,
o coração deu pulos.
O rapaz levantou-se com a taça na mão
esquerda e dirigiu-se a ela. Ela pôde contemplá-lo em toda a sua estatura. Um
belo rapaz. Passos suaves. Com a mão direita ajeitou um lado do colarinho. E
ei-lo ali à frente dela. “Olá! Posso sentar-me por um instante”? Hortência
gaguejou: “Sim, claro...”.
Um ano depois do noivado fracassado
por culpa do safado do Ângelo Augusto, advogado em começo de carreira, mas
fracassado em quatro concursos públicos, Hortência, depois de amargar dias de
desespero, que quase a levaram ao hospício, afinal, tudo estava pronto para o
casamento, ali estava um rapaz que lhe agradara em cheio. Quem sabia, se a
porta que se fechara para ela, não estava fazendo, naquele instante, abrir-se
uma janela alargada?
“Parabéns! Uma moça tão distinta,
pode-se ver, com um colar de pérolas verdadeiras e um pingente de esmeraldas,
além de ter bom gosto, tem beleza e elegância”. Hortência começou a ficar sem
fôlego. Uma coisa foi lhe tomando toda, tapando os gorgomilhos. Os olhos negros
do rapaz penetraram no âmago do seu coração, deixando a porta totalmente
escancarada. Ele sorveu mais um gole do vinho tinto. Enxugou, sutilmente, os
lábios com a ponta da língua, mas com extrema discrição. E disse: “O colar e o
pingente são de finíssimo gosto. Eu trabalho com joias. Sei do que estou
falando. Mas é uma pena que trilho outros caminhos”. Ele fez um ligeiro aceno
com a cabeça e levantou-se. Chamou o garçom, pagou a conta e, mais uma vez, deu
uma gorjeta graúda, apertando suavemente a mão do moço.
Marilda, estabanada como sempre, ao
ouvir o relato da amiga, gritou: “Eu sou a culpada! Minha memória me deixou na
mão. Se não fosse isso, eu teria lhe dito que aquele sujeito foi o namorado do
filho do Dr. Ananias Lira, tio da minha amiga Celina Medeiros Lira, de Maceió.
O doutor, um usineiro homofóbico miserável, mandou os capangas darem uma coça
nele e botou o filho para estudar no Canadá”.
Ao ouvir aquilo, Hortência teve um
ligeiro trespasse. Ainda não era a sua vez de ser feliz. “Força, amiga! Nada de
cair no atoleiro do desânimo”, disse Hortência. Era o começo do inverno. Lá
fora, ia escurecendo. E começou a chover.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana dce Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário