segunda-feira, 25 de abril de 2022

O MATADOR


  

 

José Lima Santana*

 

 

Ele foi se chegando lentamente em direção à próxima vítima. Não sabia a conta de quantas dera cabo somente naquele ano. Matava sem dó nem piedade. E arvorava-se em dizer que era o maior matador daquele tipo, existente na região. Devia ser mesmo. Matar para ele tornou-se um hábito. Quando entrava em ação, não tinha descanso. Matava quando era chamado para o serviço ou quando, por iniciativa própria, achava por bem de dar fim a algumas de suas vítimas.

Naquela noite, ele foi-se aproximando com extremo cuidado, para não dar chance à vítima. Olhou-a a certa distância. Assuntou. Não a devia deixar escapar. Aquela nova vítima tinha feito também as suas próprias vítimas. Tinha lá um instinto agressivo, que clamava por sangue. Logo, na visão do matador, deveria morrer. Seria apenas mais uma vítima. Só isso. Bobagem. Quantas vítimas ele fizera? Quantas ainda haveria de fazer? Isso era o que menos contava. Importante mesmo era matar.

O local onde a vítima se encontrava em estado de absoluto repouso estava bem iluminado. Não tinha como errar o golpe certeiro. Mas, era preciso avaliar bem como desferir o golpe. Deixá-la escapar seria um perigo. Talvez tivesse nova chance, talvez não o tivesse mais, naquela noite ou nunca.

Um matador como ele tinha o nome a zelar. Falhar, tinha falhado poucas vezes. Fazia parte do serviço. Às vezes, as vítimas eram ariscas demais. Na hora “h”, pareciam sentir que o golpe fatal estava a caminho e ganhavam o mundo. Ele ficava desapontado, mordendo-se de raiva. “Diacho, perdi. Culpa minha, que fui descuidado”.

Ele avaliava cada situação de perda. Não eram muitas, quando as comparava com as vítimas fatais. Ganhava, de longe, no montante de mortes. Convencia-se de que era mesmo o maior matador conhecido por aquelas bandas. O erro, naquele tipo de serviço, ocorria. Não tinha como. Afinal, era uma atividade contínua. As vítimas se sucediam.

Lá estava a vítima descansando, após o jantar. Passava das dezenove horas, um tiquinho a mais. Ele avançou um passo. Parou. A parede ficaria manchada de sangue. Depois, alguém a limparia. Olhou ao redor. Somente ele e a vítima, ou seja, o alvo, por enquanto. Vítima, logo mais. Logo mais.

A mão ainda não tremia, apesar dos seus sessenta e sete anos de idade. Mão firme. Vontade férrea de matar, de continuar matando até que a mão trêmula, se isso viesse a acontecer, lhe impedisse de desferir golpes certeiros. As falhas, poucas, diga-se bem, não ocorreram porque a mão tremeu no momento de livrar o mundo de mais um ser nojento. Não. Ora precipitava-se ao desferir o golpe, ora a vítima pressentia a chegada do que poderia ser o seu último momento de vida, escapando para o desengano do matador.

Naquela noite, ele estava calmo. A nova vítima estava entregue. Era só chegar mais perto, sorrateiramente. Estender a mão. Acertar o golpe. Haveria de dormir em paz. A não ser que, de repente, aparecessem outras vítimas. Tudo era possível. Ele estava acostumado a matar.

Ouviu vozes vindas de perto. “Puxa! Essa agora”. Qualquer descuido poderia tirar a chance de fazer mais uma vítima. Praguejou de si para si mesmo. Continuou com o olhar firme na vítima. Estava decidido a matar. Ainda que aquela possível vítima pudesse escapar, naquele instante, não haveria de dar-lhe trégua. Iria em seu encalço. Perderia a noite, se preciso fosse. “Essa eu mato de qualquer jeito”, sentenciou.

Ele tinha razão para desejar ardentemente dar fim a mais um ser abjeto, na sua consideração. Tinha sido atormentado por aquela vítima em potencial. Clamava por vingança.

Armou-se para desferir o golpe fatal. Olhar cada vez mais firme, bem direcionado. Preparou o bote, qual cobra enrodilhada. Avançou. Estendeu a mão. O golpe foi desferido com extrema precisão. Morte instantânea.

Ele exultou com o resultado alcançado. A parede ficou ensanguentada. Alguém teria o trabalho de limpar. Parede pintada de novo. Branco pérola. Qualquer mancha, por menor que fosse, destoava.

Naquela noite, o matador de muriçocas deve ter feito a sua milésima e não se sabia quantas vítimas mais. A parede do quarto ficou com a pequena mácula do sangue que a muriçoca devia ter sugado da perna do matador, que ficou com um pequeno calombo, e com o ardor peculiar em decorrência da picada do inseto caseiro. Era a época de infestação dos pernilongos. A cidade estava cheia deles.

Os canais fétidos, outrora riachos, já não tinham mais os peixes que se alimentavam das larvas de muriçocas, mantendo o controle biológico. O meio ambiente era ferido, mais e mais, a cada dia. Matar muriçocas nas paredes, por vezes, era, sim, necessário.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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