José Lima Santana*
Pintado de Chico de Zé Migué nunca
usou uma arma, a não ser a faca luminosa de retalhar e cortar carne de sol, na
salgadeira e nas feiras semanais de Floresta, no sábado, e de Panelas, no
domingo. Pacato, bom amigo, jamais se metera em encrencas de qualquer ordem.
Aos vinte e cinco anos, esperava
desposar Ana Alice de Joãozinho da manteiga, moça prendada e de bons estudos. O
namoro já durava dois anos e meio. Pintado tinha umas poucas sardas no rosto,
daí o apelido que lhe fora posto pelo próprio pai, nos primeiros dias após o
nascimento.
O pai, Chico de Zé Migué, era um
pequeno proprietário de terras nas quais cultivava algodão e criava pouco, mas
bom gado de corte. E Zé Migué, o avô, ainda vivo, já passara dos oitenta anos,
porém fornido como um tronco de baraúna. Família respeitada pelo que era, e não
pelo que tinha, como outras famílias dali, de Floresta, na boca do sertão,
cidade que crescia a olhos vistos, já se ombreando com Panelas, da qual se
separara há cinquenta e dois anos.
Aproximavam-se as festas de fim de
ano. Natal e Ano Novo. Em Panelas, o Natal tinha encenação do nascimento de
Cristo, missa cantada em latim e feirinha na Praça da Matriz, que fazia o maior
sucesso em toda a região. Nas festas natalinas dançavam o pastoril, o cacumbi e
o reisado. Ainda contavam com as apresentações de grupos de pífanos e zabumbas.
Festança a não ter igual em redor de
dez a quinze léguas. Panelas e Floresta distavam pouco mais de duas léguas, uma
da outra. O Natal em Floresta não era sequer a sombra do de Panelas. As
comemorações reduziam-se às ceias caseiras. Não tinha nem a missa do galo, pois
o padre que atendia Floresta era o de Panelas. Nem feirinha, nem danças.
Todavia, a festa de Ano Novo, que ali se chamava Ano Bom, começava a ameaçar a
de Panelas. Crescia com a cidade.
Uma rodovia federal estava sendo
implantada, passando nas cercanias de Floresta. Progresso. O prefeito de
Panelas apelou para um deputado federal, seu compadre, para que a rodovia fosse
deslocada. Em vão. Um empresário da capital adiantou-se e construiu em Floresta
um supermercado e um posto de gasolina, novidades na cidade. Logo mais, o
movimento de caminhões e carros levaria muita gente à procura de mantimentos e
serviços.
Pintado de Chico de Zé Migué, atento
ao que ocorria, abriu um açougue em Floresta, o primeiro da cidade. Nem Panelas
desfrutava de um açougue, que vendesse carnes e produtos afins, como aquele. O
rapaz mostrava que tinha faro para os negócios. Em seis meses, já ampliava o
espaço do açougue. O que lhe faltava? O casamento. Um sonho a realizar-se em
breve.
Ana Alice preparava-se para o enlace.
Ela mesma, prendada, bordava as principais peças do enxoval de noiva. Sua tia,
Rosália de Marina, ajudava nos arremates e noutros bordados de menor monta.
Tudo convergia para os meados do ano vindouro. A mãe de Ana Alice queria que o
noivado se desse em dezembro e o casório em maio. Mas, a moça pretendia noivar
em janeiro, no dia do seu aniversário, a 19, e o casamento, sim, em maio. Em
questão de datas, Pintado de Chico de Zé Migué, cuja graça de batismo era Júlio
César, não opinava. “Qualquer data pra mim tá de bom tamanho. O que eu quero é
casar com a minha flor”, dizia.
O ano foi findando. Novembro estava
nos seus estertores. Era uma tarde de terça-feira, última do mês, dia em que
Júlio César bandeava-se para Trincheiras, cidade de maior porte do que Floresta
e Panelas, para aviar algumas compras, a fim de bem sortir o açougue.
Compras feitas, no dia seguinte,
perto do meio-dia, Pintado foi esfriar a goela com uma cerveja no bar de
Amarildo de Zé Migué, seu tio, ali arranchado há mais de vinte anos e em cuja
casa ele tinha pernoitado. Mal chegou ao bar, sua tia de cortesia, Cida de
Amarildo, chamou-o a um canto da casa, encostada ao bar. Estava meio
esbaforida. Olhos arregalados, a mulher, em voz de sussurro, mão direita
espalmada à altura do peito, soltou uma bomba: “Meu filho, aconteceu um
alvoroço da desgraça. A notícia chegou aqui, há instantinho, através de Zeca
sapateiro, amigo de seu pai. O que se diz é que Ana Alice, sua namorada, fugiu
ontem à noite com o padre Afrânio Borba, de Panelas. O diabo anda fazendo festa
por aquelas bandas desde que aquele padre de lambreta chegou por lá”. Pintado
de Chico de Zé Migué não queria acreditar no que acabara de ouvir. “Que
história é essa, tia”? A tia ergueu os braços e disse: “Pois é. Um desastre. Um
desmantelo de vida, meu filho. Eu ouvi Zeca dando com a língua nos dentes ao
seu tio. Eu ouvi a conversa dos dois por trás da porta de ligação entre o bar e
a casa”.
Pintado empalideceu. Ana Alice? Com o
padre? Como? Estaria desmilinguida do quengo? Ele nunca teve motivo para
duvidar do bem-querer dela. Nunca soube de qualquer conversa dela com o padre,
nem lá por trás das nuvens. “Minha tia, a senhora tem certeza”? Sim, ela tinha.
“Júlio César, meu amor, você já ouviu dizer que Zeca sapateiro seja homem de
conversa sem fiança”?
Não uma, mas duas, três ou muitas
outras cervejas, para afogar a mágoa, o desengano? Não. Pintado era um rapaz
sóbrio, ponderado. Tomou o rumo do jeep de sua propriedade, estacionado debaixo
de uma mangueira em flor. Rumou de volta para Floresta. Agoniado? Decerto.
A poeira da estrada cobria o jeep e o
motorista. As compras feitas ficaram em Trincheiras. A fuga de Ana Alice com o
padreco era a ordem do dia. Caía a tarde quando Pintado chegou em casa. “Mãe,
que conversa é essa, que tia Cida me contou, do fugimento de Ana Alice com o
padrezinho de Panelas”? A mãe não entendeu nada. “Fugiu? Quem fugiu, meu filho?
Que eu saiba, por aqui, ninguém fugiu”.
Notícia sem nexo, aquela que Cida de
Amarildo deu ao sobrinho. Na verdade, o que Zeca sapateiro informou a Amarildo
foi que houve um bate-boca, que acabou em tiroteio, sem vítimas, graças a Deus,
nas proximidades da igreja de Floresta. Ana Alice tinha ido à missa. Ela, o padre
e algumas beatas fugiram do tiroteio, escondendo-se na casa de Zeca sapateiro,
situada bem em frente à igreja. Aquela foi a fuga. O resto foi fake.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
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