domingo, 21 de agosto de 2022

PINTADO DE CHICO DE ZÉ MIGUÉ


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pintado de Chico de Zé Migué nunca usou uma arma, a não ser a faca luminosa de retalhar e cortar carne de sol, na salgadeira e nas feiras semanais de Floresta, no sábado, e de Panelas, no domingo. Pacato, bom amigo, jamais se metera em encrencas de qualquer ordem.

Aos vinte e cinco anos, esperava desposar Ana Alice de Joãozinho da manteiga, moça prendada e de bons estudos. O namoro já durava dois anos e meio. Pintado tinha umas poucas sardas no rosto, daí o apelido que lhe fora posto pelo próprio pai, nos primeiros dias após o nascimento.

O pai, Chico de Zé Migué, era um pequeno proprietário de terras nas quais cultivava algodão e criava pouco, mas bom gado de corte. E Zé Migué, o avô, ainda vivo, já passara dos oitenta anos, porém fornido como um tronco de baraúna. Família respeitada pelo que era, e não pelo que tinha, como outras famílias dali, de Floresta, na boca do sertão, cidade que crescia a olhos vistos, já se ombreando com Panelas, da qual se separara há cinquenta e dois anos.

Aproximavam-se as festas de fim de ano. Natal e Ano Novo. Em Panelas, o Natal tinha encenação do nascimento de Cristo, missa cantada em latim e feirinha na Praça da Matriz, que fazia o maior sucesso em toda a região. Nas festas natalinas dançavam o pastoril, o cacumbi e o reisado. Ainda contavam com as apresentações de grupos de pífanos e zabumbas.

Festança a não ter igual em redor de dez a quinze léguas. Panelas e Floresta distavam pouco mais de duas léguas, uma da outra. O Natal em Floresta não era sequer a sombra do de Panelas. As comemorações reduziam-se às ceias caseiras. Não tinha nem a missa do galo, pois o padre que atendia Floresta era o de Panelas. Nem feirinha, nem danças. Todavia, a festa de Ano Novo, que ali se chamava Ano Bom, começava a ameaçar a de Panelas. Crescia com a cidade.

Uma rodovia federal estava sendo implantada, passando nas cercanias de Floresta. Progresso. O prefeito de Panelas apelou para um deputado federal, seu compadre, para que a rodovia fosse deslocada. Em vão. Um empresário da capital adiantou-se e construiu em Floresta um supermercado e um posto de gasolina, novidades na cidade. Logo mais, o movimento de caminhões e carros levaria muita gente à procura de mantimentos e serviços.

Pintado de Chico de Zé Migué, atento ao que ocorria, abriu um açougue em Floresta, o primeiro da cidade. Nem Panelas desfrutava de um açougue, que vendesse carnes e produtos afins, como aquele. O rapaz mostrava que tinha faro para os negócios. Em seis meses, já ampliava o espaço do açougue. O que lhe faltava? O casamento. Um sonho a realizar-se em breve.

Ana Alice preparava-se para o enlace. Ela mesma, prendada, bordava as principais peças do enxoval de noiva. Sua tia, Rosália de Marina, ajudava nos arremates e noutros bordados de menor monta. Tudo convergia para os meados do ano vindouro. A mãe de Ana Alice queria que o noivado se desse em dezembro e o casório em maio. Mas, a moça pretendia noivar em janeiro, no dia do seu aniversário, a 19, e o casamento, sim, em maio. Em questão de datas, Pintado de Chico de Zé Migué, cuja graça de batismo era Júlio César, não opinava. “Qualquer data pra mim tá de bom tamanho. O que eu quero é casar com a minha flor”, dizia.

O ano foi findando. Novembro estava nos seus estertores. Era uma tarde de terça-feira, última do mês, dia em que Júlio César bandeava-se para Trincheiras, cidade de maior porte do que Floresta e Panelas, para aviar algumas compras, a fim de bem sortir o açougue.

Compras feitas, no dia seguinte, perto do meio-dia, Pintado foi esfriar a goela com uma cerveja no bar de Amarildo de Zé Migué, seu tio, ali arranchado há mais de vinte anos e em cuja casa ele tinha pernoitado. Mal chegou ao bar, sua tia de cortesia, Cida de Amarildo, chamou-o a um canto da casa, encostada ao bar. Estava meio esbaforida. Olhos arregalados, a mulher, em voz de sussurro, mão direita espalmada à altura do peito, soltou uma bomba: “Meu filho, aconteceu um alvoroço da desgraça. A notícia chegou aqui, há instantinho, através de Zeca sapateiro, amigo de seu pai. O que se diz é que Ana Alice, sua namorada, fugiu ontem à noite com o padre Afrânio Borba, de Panelas. O diabo anda fazendo festa por aquelas bandas desde que aquele padre de lambreta chegou por lá”. Pintado de Chico de Zé Migué não queria acreditar no que acabara de ouvir. “Que história é essa, tia”? A tia ergueu os braços e disse: “Pois é. Um desastre. Um desmantelo de vida, meu filho. Eu ouvi Zeca dando com a língua nos dentes ao seu tio. Eu ouvi a conversa dos dois por trás da porta de ligação entre o bar e a casa”.

Pintado empalideceu. Ana Alice? Com o padre? Como? Estaria desmilinguida do quengo? Ele nunca teve motivo para duvidar do bem-querer dela. Nunca soube de qualquer conversa dela com o padre, nem lá por trás das nuvens. “Minha tia, a senhora tem certeza”? Sim, ela tinha. “Júlio César, meu amor, você já ouviu dizer que Zeca sapateiro seja homem de conversa sem fiança”?

Não uma, mas duas, três ou muitas outras cervejas, para afogar a mágoa, o desengano? Não. Pintado era um rapaz sóbrio, ponderado. Tomou o rumo do jeep de sua propriedade, estacionado debaixo de uma mangueira em flor. Rumou de volta para Floresta. Agoniado? Decerto.

A poeira da estrada cobria o jeep e o motorista. As compras feitas ficaram em Trincheiras. A fuga de Ana Alice com o padreco era a ordem do dia. Caía a tarde quando Pintado chegou em casa. “Mãe, que conversa é essa, que tia Cida me contou, do fugimento de Ana Alice com o padrezinho de Panelas”? A mãe não entendeu nada. “Fugiu? Quem fugiu, meu filho? Que eu saiba, por aqui, ninguém fugiu”.

Notícia sem nexo, aquela que Cida de Amarildo deu ao sobrinho. Na verdade, o que Zeca sapateiro informou a Amarildo foi que houve um bate-boca, que acabou em tiroteio, sem vítimas, graças a Deus, nas proximidades da igreja de Floresta. Ana Alice tinha ido à missa. Ela, o padre e algumas beatas fugiram do tiroteio, escondendo-se na casa de Zeca sapateiro, situada bem em frente à igreja. Aquela foi a fuga. O resto foi fake.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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