domingo, 5 de março de 2023

A CAPA DO PADRE BENTO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O carpinteiro Aderaldo foi chamado à casa paroquial, para ver a situação precária do telhado. O padre anterior, Cônego João Duarte, velho, alquebrado pelos muitos anos de ministério sacerdotal, advertiu o novo pároco para aquela situação a merecer urgentes reparos.

O padre Dantas, Bento Virgílio Costa Dantas, da família dos Dantas da região centro-sul do Estado, com um governador, dois senadores e vários deputados e prefeitos no currículo familiar, era um dos padres mais considerados no Clero diocesano. Andava lá pelos trinta e cinco anos de idade, e oito como ordenado. Varão de aprumo. Era a sua primeira Paróquia, depois de servir cinco anos na Cúria e três como capelão no Santuário Menino Jesus. Agora, precisava mostrar serviço, para seguir carreira.

O carpinteiro foi atendido pelo próprio padre. Aderaldo pegou a escada, subiu pelos fundos, averiguou todo o telhado com o seu ajudante. Era preciso trocar alguns caibros e ripas. E algumas telhas, que estavam quebradas. A madeira grossa, de peças e cumeeira, estava em bom estado. Madeira de lei. Como o carpinteiro estava com um trabalho já ajustado, na casa de Manequinha de Salú, acertaram para a terça-feira da semana seguinte.

A meio, andava o período quaresmal. Tempo de graça, mas, também, de cismas por parte de muitas pessoas do povo. Época de assombrações, de mulas-de-padre e lobisomens. As crenças do povo tinham fé de ofício.

Segunda-feira. Passava das onze da noite. Américo Corcunda vinha descendo a ladeira da Lagoinha, ali, juntinho do Cruzeiro Velho, subúrbio da cidade, onde morava Zélia do finado Zé Jardim, viúva aos vinte e seis anos, sem filhos, zeladora da igreja matriz, de bons e cobiçados apetrechos carnais.

Américo era tio de cortesia da zeladora. Achegando-se às proximidades do quintal de sua sobrinha, Corcunda deparou-se com um vulto esquisito. Na sua descrição, depois do atropelo que se seguiria, ele disse que o vulto tinha olhos esbugalhados da cor de fogo. Mãos gigantescas e peludas, verdadeiras garras, as unhas à mostra.

Era noite de lua, a estrada e o quintal cintilavam sob o luar. Américo gritou, de foice na mão: “Quem tá aí? É deste mundo”? Nada. O vulto permaneceu imóvel, parecia saído do quintal da zeladora, sua sobrinha. Américo pensou que fosse uma visagem, quem sabia, a alma do finado Zé Jardim a andejar por este mundo em noite de penitência.

Américo era um desses sujeitos destemidos, que não se sujeitavam a ninguém, nem a nada, nem mesmo a estripulias do além. Repetiu a indagação. Nada. O vulto permaneceu imóvel, como se tivesse sido colhido de surpresa. Américo Corcunda, então, não se fez de rogado.

Avançou ao encontro do vulto, de foice erguida. “Vou te cortar em miúdos”, disse. Naquilo, o vulto agigantou-se, pois parecia acocorado, como se esconder quisesse. Uma capa preta, como a capa dos maçones, de aço, como se dizia, abriu-se. O vulto grunhiu um grunhido dos infernos.

Partiu para cima de Américo, tomando-lhe a foice da mão e sacudindo-a longe. Américo estatelou-se no chão. Ergueu-se, num átimo. Deu uma mariscombona. O vulto saiu em disparada. O tio da zeladora puxou uma faca peixeira, que carregava à cintura. Correu atrás. Adiante, deparou-se com alguém. Era o carpinteiro Aderaldo, seu compadre, que morava nas cercanias. “Compadre, tu viu uma coisa correndo por aí”? Viu, sim. Na encruzilhada adiante. Tinha passado em desabalada carreira. Não deu para ver o que era, mas parecia coisa feia. Aderaldo contou-lhe o sucedido. “Então, será que Pedro Gregório voltou a envultar-se? Será que tá correndo sete freguesias”? Era possível.

Pedro Gregório era tido como um que virava bicho, lobisomem, desde que fora morador nas Trincheiras, para lá do Quebra Potes. De uns tempos para cá, desde que o velho cônego lhe sapecara água benta numa sexta-feira da Paixão, depois da procissão do Senhor Morto, ele não mais se envultara. Estaria de volta ao ofício de correr trechos, de assustar transeuntes desavisados?

Américo Corcunda e Aderaldo resolveram bater pernas, atrás do vulto. Se o mesmo seguiu pela encruzilhada de Maria de Doca, podia ter descido no rumo da Cruz do Soldado, local onde o lobisomem costumava ser visto, no caso, Pedro Gregório, nos velhos tempos.

Rumaram para lá. Bateram daqui e dali. Nada. Pela falação dos dois, outras pessoas foram se achegando. Logo, já era um batalhão de uns doze homens. Vasculharam o quanto puderam. Só acharam, na cerca de Totoinho de Zefa Gorda, um pedaço de capa, agarrado no arame.

Examinaram. Parecia ser de uma capa tipo Renner. Estava molhado. Ali perto tinha uma poça d’água. Chovera um pouco, no início da noite. Já passava das três da madrugada. Cansados, deixaram o vulto para lá. Não tardaria a alguém dar de frente com ele. Era quaresma. Tempo de bichos rondarem em aluadas penitências.

Na terça-feira, como aprazado, Aderaldo foi à casa paroquial para o conserto do telhado. Estendida num varal, estava uma capa tipo Renner. Curioso, o carpinteiro a examinou. Faltava um pedaço da barra. Estúpida consciência.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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