José Lima Santana*
O carpinteiro Aderaldo foi chamado à
casa paroquial, para ver a situação precária do telhado. O padre anterior,
Cônego João Duarte, velho, alquebrado pelos muitos anos de ministério
sacerdotal, advertiu o novo pároco para aquela situação a merecer urgentes
reparos.
O padre Dantas, Bento Virgílio Costa
Dantas, da família dos Dantas da região centro-sul do Estado, com um
governador, dois senadores e vários deputados e prefeitos no currículo
familiar, era um dos padres mais considerados no Clero diocesano. Andava lá
pelos trinta e cinco anos de idade, e oito como ordenado. Varão de aprumo. Era
a sua primeira Paróquia, depois de servir cinco anos na Cúria e três como
capelão no Santuário Menino Jesus. Agora, precisava mostrar serviço, para seguir
carreira.
O carpinteiro foi atendido pelo
próprio padre. Aderaldo pegou a escada, subiu pelos fundos, averiguou todo o
telhado com o seu ajudante. Era preciso trocar alguns caibros e ripas. E
algumas telhas, que estavam quebradas. A madeira grossa, de peças e cumeeira,
estava em bom estado. Madeira de lei. Como o carpinteiro estava com um trabalho
já ajustado, na casa de Manequinha de Salú, acertaram para a terça-feira da
semana seguinte.
A meio, andava o período quaresmal.
Tempo de graça, mas, também, de cismas por parte de muitas pessoas do povo.
Época de assombrações, de mulas-de-padre e lobisomens. As crenças do povo
tinham fé de ofício.
Segunda-feira. Passava das onze da
noite. Américo Corcunda vinha descendo a ladeira da Lagoinha, ali, juntinho do Cruzeiro
Velho, subúrbio da cidade, onde morava Zélia do finado Zé Jardim, viúva aos
vinte e seis anos, sem filhos, zeladora da igreja matriz, de bons e cobiçados
apetrechos carnais.
Américo era tio de cortesia da
zeladora. Achegando-se às proximidades do quintal de sua sobrinha, Corcunda
deparou-se com um vulto esquisito. Na sua descrição, depois do atropelo que se
seguiria, ele disse que o vulto tinha olhos esbugalhados da cor de fogo. Mãos
gigantescas e peludas, verdadeiras garras, as unhas à mostra.
Era noite de lua, a estrada e o
quintal cintilavam sob o luar. Américo gritou, de foice na mão: “Quem tá aí? É
deste mundo”? Nada. O vulto permaneceu imóvel, parecia saído do quintal da
zeladora, sua sobrinha. Américo pensou que fosse uma visagem, quem sabia, a
alma do finado Zé Jardim a andejar por este mundo em noite de penitência.
Américo era um desses sujeitos
destemidos, que não se sujeitavam a ninguém, nem a nada, nem mesmo a
estripulias do além. Repetiu a indagação. Nada. O vulto permaneceu imóvel, como
se tivesse sido colhido de surpresa. Américo Corcunda, então, não se fez de
rogado.
Avançou ao encontro do vulto, de
foice erguida. “Vou te cortar em miúdos”, disse. Naquilo, o vulto agigantou-se,
pois parecia acocorado, como se esconder quisesse. Uma capa preta, como a capa
dos maçones, de aço, como se dizia, abriu-se. O vulto grunhiu um grunhido dos
infernos.
Partiu para cima de Américo,
tomando-lhe a foice da mão e sacudindo-a longe. Américo estatelou-se no chão.
Ergueu-se, num átimo. Deu uma mariscombona. O vulto saiu em disparada. O tio da
zeladora puxou uma faca peixeira, que carregava à cintura. Correu atrás.
Adiante, deparou-se com alguém. Era o carpinteiro Aderaldo, seu compadre, que
morava nas cercanias. “Compadre, tu viu uma coisa correndo por aí”? Viu, sim.
Na encruzilhada adiante. Tinha passado em desabalada carreira. Não deu para ver
o que era, mas parecia coisa feia. Aderaldo contou-lhe o sucedido. “Então, será
que Pedro Gregório voltou a envultar-se? Será que tá correndo sete freguesias”?
Era possível.
Pedro Gregório era tido como um que
virava bicho, lobisomem, desde que fora morador nas Trincheiras, para lá do
Quebra Potes. De uns tempos para cá, desde que o velho cônego lhe sapecara água
benta numa sexta-feira da Paixão, depois da procissão do Senhor Morto, ele não
mais se envultara. Estaria de volta ao ofício de correr trechos, de assustar
transeuntes desavisados?
Américo Corcunda e Aderaldo
resolveram bater pernas, atrás do vulto. Se o mesmo seguiu pela encruzilhada de
Maria de Doca, podia ter descido no rumo da Cruz do Soldado, local onde o
lobisomem costumava ser visto, no caso, Pedro Gregório, nos velhos tempos.
Rumaram para lá. Bateram daqui e
dali. Nada. Pela falação dos dois, outras pessoas foram se achegando. Logo, já
era um batalhão de uns doze homens. Vasculharam o quanto puderam. Só acharam,
na cerca de Totoinho de Zefa Gorda, um pedaço de capa, agarrado no arame.
Examinaram. Parecia ser de uma capa
tipo Renner. Estava molhado. Ali perto tinha uma poça d’água. Chovera um pouco,
no início da noite. Já passava das três da madrugada. Cansados, deixaram o
vulto para lá. Não tardaria a alguém dar de frente com ele. Era quaresma. Tempo
de bichos rondarem em aluadas penitências.
Na terça-feira, como aprazado,
Aderaldo foi à casa paroquial para o conserto do telhado. Estendida num varal,
estava uma capa tipo Renner. Curioso, o carpinteiro a examinou. Faltava um
pedaço da barra. Estúpida consciência.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras,
da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da
Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe.
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