terça-feira, 28 de março de 2023

DIREITO E CINEMA


  

 

José Anselmo Oliveira*

 

 

INTRODUÇÃO

 

Nos idos de 1974, não sonhava que iria estudar direito. Estudava eletrotécnica na Escola Técnica Federal de Sergipe quando foi oferecido um curso teórico e prático de cinema. Curso que me abriu as portas para gostar mais ainda da sétima arte que já me fascinava desde criança.

Além da teoria sobre as técnicas e os estilos cinematográficos, foi possível escrever roteiros, fotografar, dirigir, fazer a montagem das películas, resultando em filmes em Super8 e 16 mm. Tive a felicidade de junto com dois grandes colegas, infelizmente já falecidos, Diomedes Santos da Silva, que veio a se tornar uma liderança dos professores do Estado de Sergipe, e Carlos Nobre, jornalista e professor da PUC/RJ e que tinha por especialidade cobrir o poder judiciário, a segurança pública. Juntos escrevemos o roteiro do documentário em 16 mm sob o título “A humanização da técnica”, que mostrava o ensino de tecnologia na Escola Técnica Federal de Sergipe e também o acesso às artes como o teatro, o cinema, a literatura e a música. Frise-se numa quadra onde se vivia o pior período da ditadura militar, os anos 70.

O que é fascinante no cinema é a possibilidade da comunicação imediata não só de temáticas da vida real (urbanas, rurais, questões sociais, questões jurídicas, questões psicológicas, poder político, liberdades, democracia, guerra e paz), mas a sua linguagem dinâmica possibilita que as emoções sejam percebidas enquanto forma de comunicação.

Sou da geração que admirou a nouvelle vague francesa, movimento do cinema francês capitaneado por Eric Rohmer, Jacques Rivette, Claude Chabrol, François Truffaut e Jean-Luc Godard, redatores da Revista Cahiers du Cinéma, fundada no final da década de 50 do século XX, e nos deu filmes como Acossado, de Godard, e Os Incompreendidos, de Truffaut, ambos de 1959; do cinema novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e tantos outros, mas também do cinema alemão do pós segunda guerra, do cinema polonês e tcheco.

Quando cheguei à faculdade de direito da UFS em 1977, o ensino do direito ainda era tradicional e voltado para a defesa do legalismo e do positivismo. Não tive a felicidade que os estudantes de direito das gerações mais novas tiveram de conviver com as mudanças que trouxeram para o ensino jurídico a transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, expressões hoje comuns aos projetos acadêmicos dos cursos jurídicos e na formação de mestres e doutores.

Infelizmente, ainda existe uma abordagem no ensino jurídico mais tecnicista e dogmática, abordagem que dificulta a compreensão das relações em uma sociedade cada vez mais complexa a exigir dos profissionais do direito muito mais que o conhecimento das teorias.

A sociedade é dinâmica, e sendo o direito produto da cultura a sua construção e desconstrução segue a mesma velocidade, e isto, infelizmente não é captado na mesma velocidade pelo estudo teórico e dogmático, daí a importância de outras abordagens conceituais.

O conhecimento tradicionalmente foi segmentado, essa especialização dos campos do conhecimento que vem desde Aristóteles não mais atende a nossa realidade, e por isso desde os anos 60 surgiu a necessidade de aproximação dos campos, que podemos chamar de interdisciplinaridade.

 

O CINEMA COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO

 

A filosofia

A modernidade em crise e todos os modelos que buscavam compreender o mundo foram colapsados após a segunda guerra mundial. O terror visto pelo mundo com o holocausto que pôs em alerta todas as ideologias nacionalistas e a sua relação com o que chamou Hanna Arendt de “banalização do mal”, de um lado, e de outro o existencialismo que defendia a liberdade de escolha e o livre-arbítrio de Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês considerado o “Pai do Existencialismo” ,  Martin Heidegger (1889-1976) e a sua ideia de que o ser humano pode experimentar uma existência autêntica ou inautêntica a depender de suas escolhas, e finalmente, Jean-Paul Sartre (1905-1980) que levou a liberdade ao extremo e daí entender “somos condenados por sermos livres”, junto com Simone de Beauvoir (1908-1986), ousada e libertária vai defender a liberdade feminina, lembrando uma de suas frase mais emblemáticas: “Não se nasce mulher: torna-se.”

Uma pergunta que vocês devem estar se fazendo é: E o que isto tem a ver com o tema Direito e Cinema?

Esta é a chave. Enquanto o positivismo jurídico pretendeu reduzir o mundo e as relações das pessoas em um conjunto de normas, regras e princípios, como se pensava o mundo das ciências naturais como a física e a química, por exemplo, o mundo real não se submete a esse conjunto de princípios, regras e normas.

Daí o direito não pode ser perene, vai sempre estar em construção ou desconstrução. Queiramos ou não.

Tobias Barreto já sabia disso ao declarar que o direito é fruto da cultura. Por essa razão vai se tornar o precursor do culturalismo jurídico brasileiro, reconhecido em todo o mundo, seguido entre outros por Miguel Reale, um dos seus grandes admiradores.

E o que tem isso a ver com o cinema?

Direito por ser fruto de um processo cultural se vale da linguagem como meio adequado para seja compreendido, comunicado.

O processo legislativo nada mais é do que uma análise de vários discursos de várias categorias que de um modo ou de outro podem influenciar o texto legal.

A atividade do jurista, seja advogado, professor, ou membro das carreiras jurídicas como magistrado, promotor de justiça, defensor público e outras, tem por mediação a linguagem onde buscam construir argumentações não somente técnico-jurídicas, mas de caráter sociológico e antropológico

Uma petição, um parecer ou uma sentença estão impregnados de signos linguísticos e imagéticos para se tornar convincente para o público a que se destina.

E o que o cinema?

Essa arte tão nova, fruto da tecnologia desenvolvida no final do século XIX, mas exatamente em dezembro de 1895 quando Louis e Auguste Lumière filmaram a saída de operários de uma fábrica nos arredores de Paris, na França.

E de lá para cá, invadiram as salas de cinemas, e hoje as televisões, os computadores e os smartphones, aproximando o mundo e as culturas, revolucionando totalmente a forma de vivermos, tornando o planeta uma pequena aldeia onde fica mais evidente a diversidade, os preconceitos, as discriminações, a violência, as ideologias.

Tudo isso que o cinema é capaz de mostrar em 90 minutos, não cabe em nossos compêndios de direito, nem mesmo nas sentenças e acórdãos do judiciário. Não cabe nas leis produzidas pelo legislativo. Mas com toda a certeza, preenche a visão do legislador e do aplicador do direito, porque escancara a realidade social e humana, nossos medos e nossos instintos.

 

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

 

Qual a aproximação entre o direito e o cinema?

Como arte textual e imagens em movimento, o cinema, possibilita além de observar de um plano privilegiado de expectador, também possibilita sentir e perceber emoções.

Na literatura, por exemplo, a narrativa por mais expressiva que seja há um espaço para a imaginação do leitor. No cinema, o discurso narrativo do roteirista e do diretor conduz o expectador.

Por essas razões é que o uso do cinema na formação do jurista permite que a estética e o exercício de observador privilegiado se apurem quanto à percepção da realidade.

Lembro aqui a lição do filósofo e educador francês Edgar Morin que a despeito do paradigma da complexidade, alertava que devem ser dadas aos estudantes acesso a todas as formas de cultura de humanidades, como o teatro, a literatura e o cinema.

Não é diferente se atentarmos para a teoria dos sistemas de Nikclas LUHMANN, onde a complexidade dos sistemas exige do observador também um determinado ponto de observação privilegiado, vejamos:

Os meios de difusão podem fazer uso da escrita, mas também de outras formas de transmissão de informações. O efeito selectivo que exercem sobre a cultura é praticamente incalculável, já que ampliam enormemente a memória, ainda que pela sua selectividade limitem os dados disponíveis para comunicações ulteriores. (LUHMANN, 2006

 

O cinema é uma das formas de arte mais populares e influentes em todo o mundo. Ao longo das décadas, inúmeros filmes abordaram temas relacionados ao Direito, seja explorando questões sociais e políticas, ou retratando a vida dentro e fora dos tribunais.

 

O direito e o cinema têm uma relação íntima e complexa, à medida que o cinema, como forma de expressão cultural, pode influenciar e moldar a opinião pública sobre questões jurídicas e judiciais. Por sua vez, o Direito é uma fonte contínua de inspiração para muitos cineastas, que utilizam temas como justiça, igualdade, corrupção e abuso de poder, para retratar questões sociais e políticas, bem como dramas pessoais.

 

Alguns dos temas mais explorados pelo cinema relacionados ao Direito incluem o sistema de justiça criminal, a liberdade de expressão, o poder da mídia, o papel dos advogados, a corrupção e a desigualdade social. Estes temas têm sido retratados em filmes aclamados pela crítica, como "12 Homens e uma Sentença", "F a l l i n g Down: Um Dia de Fúria", "A Firma", "O Pacto dos Lobos", "Inocente até Proveniente em contrário" e "Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento".

 

Além de retratar tais questões, o cinema também pode ter um impacto significativo na vida real. Por exemplo, o filme "Philadelphia", estrelado por Tom Hanks e Denzel Washington, ajudou a aumentar a conscientização sobre a discriminação contra pessoas com AIDS no local de trabalho e inspirou mudanças legislativas para proteger os direitos dessas pessoas. Da mesma forma, o filme "A Vida de David Gale", estrelado por Kevin Spacey, retrata a pena de morte e questiona a validade do sistema judicial americano, abrindo um debate na sociedade americana sobre a pena de morte.

 

No entanto, também é importante lembrar que o cinema é uma forma de arte e ficção, e nem sempre apresenta uma representação precisa e completa do sistema judicial ou das leis em vigor. Muitas vezes, filmes e séries retratam situações exageradas ou extremas, usando a liberdade artística para criar drama e entretenimento.

 

De qualquer forma, a relação entre o Direito e o cinema é uma via de mão dupla, e ambos têm muito a aprender um com o outro. O cinema pode ajudar a humanizar a justiça e torná-la mais acessível ao público em geral, enquanto o Direito pode fornecer um quadro contextual para as questões abordadas pelo cinema. Juntos, eles podem ajudar a moldar a maneira como vemos o mundo e a instituição da justiça.

 

Agradeço a oportunidade de falar sobre um tema tão fascinante e de mais uma vez estar em um evento NEPRIN.

 

 

Referências bibliográficas

 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ALMEIDA, José Rubens Demoro. Cinema, Direito e prática jurídica – uma introdução, Revista do curso de Direito da Faculdade de Campo Limpo Paulista, v. VII, pg. 38-47, Porto Alegre: IOB, 2009. ISSN 1980-1866

LACERDA, Gabriel. O direito no cinema: relato de uma experiência didática no campo do direito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007.

LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 4A ed. Lisboa: Vega Passagens, 2006

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Ed. Rev. E Ampliada pelo Autor. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

PIRES DA SILVA, Nádia Teixeira. A imagem do direito e a imagem como direito na sociabilidade contemporânea. Esboço para uma observação sociológica desde a matriz sistêmica de Niklas Luhmann. Monografia de conclusão de curso apresentada à Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientação: Juliana Neuenschwander Magalhães. Dezembro de 2008.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 61-186.

 

 

*Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Juiz de Direito, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Letras e Academia Sergipana de Educação.

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