sábado, 20 de novembro de 2021

RELEMBRANDO NEMO


  

 

José Fernandes de Lima*

 

 

O filme Procurando Nemo, lançado em 2003, fez um enorme sucesso. Ganhou o Oscar de Melhor Filme de Animação, foi o segundo filme de maior bilheteria do ano e faturou mais de 870 milhões de dólares.

A história trata de um peixe palhaço (nome científico: Amphiprion ocellaris) chamado Nemo, que depois de perder a mãe e os irmãos foi criado pelo pai superprotetor.

Um belo dia, numa das primeiras saídas de casa, ficou chateado com o pai excessivamente cuidadoso, afastou-se do local, foi capturado por um pescador e acabou em um aquário.  

No desenrolar do filme, enquanto Nemo bola planos para escapar do aquário, seu pai – Martin - cruza o oceano para resgatá-lo.

A trama e a qualidade das imagens prendem a atenção das crianças e dos pais.

Ao pronunciar o nome do peixinho perdido, alguns adultos lembram de outro Nemo mais antigo. Lembram do Capitão Nemo, personagem do livro de Julio Verne, chamado Vinte Mil Léguas Submarinas. O Capitão Nemo era o comandante do submarino Nautilus.

Nesse livro, o personagem Arronax narra fatos acontecidos quando o governo americano envia o navio Abrahan Lincoln aos oceanos Atlântico e Pacífico para uma caçada desenfreada pelo que acreditavam ser um monstruoso cetáceo.

Os aventureiros descobriram que, na verdade, não existia nenhum cetáceo gigante, e sim o poderoso Nautilus, uma embarcação submarina capaz de se locomover nas águas profundas dos oceanos. O submarino era movido a eletricidade obtida a partir do sódio retirado da água do próprio oceano.

O Capitão Nemo, comandante do submarino, era uma pessoa culta, preocupada com os destinos da humanidade. Descontente com os caminhos tomados pela sociedade do século XIX, decidiu utilizar seus vastos conhecimentos para construir um submarino elétrico e viajar pelos oceanos do mundo. O gosto do Capitão Nemo pelas letras foi realçado pelo autor quando ele escreveu que o submarino possuía uma biblioteca de centenas de livros.  

Júlio Vernes, que viveu de 1828 a 1905, é considerado o percursor da literatura de ficção científica. 

A ficção científica é um gênero literário que trabalha com conceitos imaginativos relacionados com o futuro. Baseia-se em fatos científicos e reais para compor enredos ficcionais.  A ficção científica, em geral, contém uma extrapolação cuidadosa e bem-informada de fatos, princípios ou tendências científicas, mesmo quando a ciência apresentada nos enredos ainda requeira maiores confirmações.

Os escritores de ficção científica costumam antecipar o uso de tecnologias e muitos livros até indicam caminhos que são seguidos pelos pesquisadores.

Ao descrever o funcionamento do Nautilus, Julio Verne antecipou o uso do submarino em águas profundas. Quando o livro foi escrito, ainda era impossível construir um submarino capaz de aguentar altas pressões e viajar em águas profundas.

O primeiro submarino de que se tem notícia foi construído pelo inventor alemão Cornelis Drebbel, em 1620. Consta que era apenas um barco coberto de couro, que conseguia atingir a profundidade de 4,5 metros. Em 1776, o inventor americano David Bushnel construiu um submarino que foi utilizado na guerra da independência dos Estados Unidos.

O funcionamento do submarino é baseado no enchimento e esvaziamento dos tanques de lastro. Esses tanques permitem a embarcação mergulhar e voltar à superfície. Quando os tanques de lastro são cheios de água, o submarino adquire o peso necessário para submergir. Na hora de voltar à superfície, a água dos tanques é substituída por ar. Isso torna a embarcação leve o bastante para flutuar.

Os submarinos se movimentam graças a motores a combustível, baterias ou fontes de energia nuclear.

O primeiro submarino movido a energia nuclear, lançado pela marinha americana, em 1954, foi batizado com o nome de USS Nautilus.

A lembrança do nome Nautilus para o batismo do submarino nuclear e a escolha do nome Nemo para o peixinho protagonista do filme são indicadores de que as ideias de Júlio Verne continuam circulando.

 

 

*Físico, professor e membro da Academia Sergipana de Educação.

CONSCIÊNCIA NEGRA E MARIA RITA

                                                              Maria Rita Soares de Andrade


 

 

José Lima Santana*

 

 

O Dia da Consciência Negra no Brasil é comemorado em 20 de novembro. A data, ainda que tenha sido incluída no calendário escolar e traga oportunidades para conversas importantes sobre a história dos negros no País, não é feriado em todo o território brasileiro. Dos cerca de 5.570 municípios, pouco mais de mil decretam a data como feriado.

A Lei nº 12.519/2011 instituiu oficialmente o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. No calendário escolar nacional, a data foi incluída, anteriormente, em 2003. A origem do Dia da Consciência Negra está ligada aos esforços dos movimentos sociais para evidenciar as desigualdades históricas que marcaram as populações negra e parda no país. Sem esquerdismos ou direitismos.

Eu bem sei que há quem se sinta incomodado com a comemoração dessa data, alguns negros inclusive. Não importa. Não se trata de uma data para confrontar as pessoas de cor diferenciada. Mas, também, não se trata de deixar debaixo do tapete os males causados pela escravidão e no período pós-escravidão até os dias de hoje, quando se verifica as condições gerais menos favoráveis em que se acham os descendentes dos escravos africanos, mesmo os “misturados”, chamados “pardos”.

Aliás, uma prima do meu pai, de saudosa memória, indignou-se ao perceber que na sua certidão de nascimento constava o termo “parda”, para definir a sua cor. Ela queria que constasse “negra”, pois era, como eu, de cor negra, embora de olhos azuis escuros, como eram, ademais, o seu pai, tios e tias, posto que estes eram filhos de um cafuzo (‘seu” Dá, como era chamado na família o meu bisavô) e uma “morena clara”, Maria Rosa (“mãe véia”, como era chamada).

Diga-se de passagem, que a nossa família (do meu lado paterno) é originária do subúrbio João Ventura (hoje bairro, por força de lei municipal), que, outrora, fora uma fazenda, no século XIX, e que, segundo afirmou a antiga escrivã de Siriri, Ricardina Souza, fora lugar de quilombo. Não há prova disso, mas, quero crer que ela pode estar certa. Somos, então, remanescentes desse quilombo? É bem possível.

De outro lado, a minha mãe é filha de um “negro misturado” e de uma branca, filha de um antigo e pequeno senhor de terras e de escravos, Joaquim Leite Silva, morador no engenho Caiçara, como consta em documentos da Paróquia Nossa Senhora das Dores.

Hoje, sábado, dia 20 de novembro, portanto, é o Dia da Consciência Negra. Que todos nós “pretos” e “pardos” tenhamos sempre uma postura de consciência de quem somos, em qual estágio da vida social e econômica possamos nos encontrar.

Mas, eu quero mesmo é falar sobre uma mulher negra, que os sergipanos dela devem se orgulhar. Trata-se de Maria Rita Soares de Andrade. Mulher que se impôs na vida, sem se impor a ninguém e sem de ninguém aceitar imposição.

Nascida em 1904, na capital sergipana, filha de pais operários, formou-se em Direito na Bahia, em 1926, sendo a única mulher de sua turma e a terceira a graduar-se em Direito naquela faculdade. Atuou na advocacia em sua terra natal e, a partir de 1938, no Rio de Janeiro. Ali defrontou-se com a ditadura de Vargas, advogando para presos políticos e outros perseguidos pelo governo do Estado Novo. Mais tarde, advogou para perseguidos pelo regime militar implantado em 1964, embora fosse amiga pessoal do presidente Castelo Branco de quem fora advogada, anos antes.

Maria Rita impetrou vários mandados de segurança e habeas corpus, alguns dos quais em favor de perseguidos que não tinham como lhe pagar honorários. Mas, segundo suas próprias palavras, ela assim agia “por idealismo”. Advogou para presos ou perseguidos políticos famosos ou não, dentre os quais Otávio Mangabeira, Armando Sales de Oliveira, Almirantes Amorim do Valle e Pena Boto, Café Filho, ex-presidente da República, Osvaldo Cordeiro de Farias, Marechais Ademar de Queiroz e Castelo Branco, Brigadeiro Eduardo Gomes, além de vários outros.

Os militares para quem ela advogou foram perseguidos nos próprios círculos militares, em diversas ocasiões. Exerceu destacado combate a Getúlio Vargas, no último mandato deste, quando era udenista convicta. Sempre lamentou a descaracterização do mandado de segurança e do habeas corpus, e a supressão das eleições diretas, nos anos de chumbo do militarismo.

Por concurso, tornou-se professora no Colégio Pedro II e na Universidade do Brasil. Em 1967, Maria Rita foi a primeira brasileira a ingressar na magistratura federal. Exerceu dita magistratura como titular da 4ª Vara Federal no Rio de Janeiro, até a aposentadoria compulsória em abril de 1974, quando voltou a advogar.

A ela coube sindicar possível corrupção do ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Com coragem e honestidade, ela o inocentou, por não encontrar nada que o desabonasse, embora contrariasse os militares no poder. Também exerceu por longo tempo o jornalismo. Tornou-se destacada líder feminista, em favor da não discriminação contra as mulheres.

Palavras de Maria Rita Soares de Andrade, citadas pelo Ministro Substituto do TCU, Lincoln Magalhães da Rocha, na sessão de 17 de setembro de 2004: “Não é só bala que mata; o sofrimento, a luta sem trégua, as perseguições, as sanções econômicas sobre chefes de família também aniquilam”. Ela morreu em 1998, aos 94 anos de idade.

Eis uma mulher negra que orgulha Sergipe e o Brasil. Devemos conhecê-la melhor, admirando-a e respeitando-a, como mulher negra que sempre teve consciência de quem era. Sem dúvida, um exemplo. Um grande exemplo.

Sobre ela, pode-se apreciar as páginas 359 a 372 do livro “A Mulher na História” da acadêmica sergipana Lígia Pina e, em síntese, o meu artigo “Uma mulher que orgulha o Brasil”, publicado na Revista Cumbuca. Aracaju: Edise. Ano I. Nº 1, abril de 2013, p. 50-53.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
 

domingo, 14 de novembro de 2021

IVERMECTINA: DE VERMÍFUGO A ANTIVIRAL


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A ivermectina, apesar da sua ampla utilização veterinária no combate a parasitas tanto na pecuária, como em pets de estimação (notadamente cães e gatos), era pouco conhecida, uma vez que, em humanos, é indicada, apenas, para o tratamento de algumas verminoses, como a estrongiloidíase e certas pediculoses, como o piolho. Todavia, bastou a demonstração de que a referida droga pode diminuir a replicação do SARS-CoV-2 in vitro, ou seja em laboratório de experimentação, para que ela se transformasse em um dos produtos farmacêuticos mais populares dos últimos dois anos.

De uma forma surpreendente, a droga passou a ser utilizada, tanto para a prevenção, como para o tratamento da Covid-19, mesmo após os estudos clínicos, randomizados, não terem evidenciado benefícios em nenhuma das duas modalidades de terapêutica.

O número de adeptos da ivermectina, utilizando as mais variadas e bizarras posologias, cresceu a ponto de provocar, frequentemente, o seu esvaziamento das prateleiras das farmácias, forçando os ávidos usuários a recorrerem a lojas de produtos veterinários. Esta constatação, levou o Conselho Federal de Farmácia a emitir alerta sobre a falta de estudos conclusivos acerca da eficácia da referida droga no tratamento da Covid-19, bem como sobre as consequências do uso de sua apresentação veterinária em humanos. Vale ressaltar, ainda, que os medicamentos para uso em animais são registrados no Ministério da Agricultura, enquanto que, os para humanos, na ANVISA.

Foi publicado, recentemente, no conceituado periódico New England Journal of Medicine, um artigo (doi: 10.1056/NEJMc2114907), que chama a atenção para o incremento, significativo, de notificações feitas aos centros reguladores americanos, do uso inapropriado da ivermectina, causando efeitos adversos potencialmente graves, tais como: confusão mental severa, ataxia (equilíbrio ou coordenação motora prejudicados), convulsões e hipotensão, requerendo, muitas vezes, internação hospitalar. Têm sido relatados, também, sintomas leves, como: distúrbios gastrointestinais, tonturas, cefaleia, alterações visuais e rash cutâneo (surto temporário de manchas ou pápulas avermelhadas, na pele). É importante alertar, ainda, que os efeitos tóxicos da droga podem ser potencializados pela condição clínica do paciente, com suas comorbidades e pela eventual interação medicamentosa.

Portanto, diante da incerteza do tratamento desta iníqua virose, devemos adotar e disseminar as medidas preventivas, cientificamente comprovadas: vacinação em massa, uso de máscara, higienização das mãos e optar por ambientes com ventilação adequada. Termino, parafraseando o destacado dramaturgo germânico, Berthold Brecht: “A ambição da Ciência não é abrir a porta do Saber Infinito, mas pôr um limite ao Erro Infinito”.

 

 

*Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

ANJO NEGRO


 


 

 

José Lima Santana*

 

 

Vendida eu fui. Eu era uma menina franzina, assustada como um preá diante de uma cascavel. Irmãos morrendo de fome. Minha mãe, tísica e sem meios, deu-me ao senhor Beltran da fazenda Rochedo Vermelho em troca de uns níqueis para matar a fome das crianças.

O velhote arrastou-me de casa para me arranchar num casebre testa de bode, pequeno, imundo, nas proximidades da fazenda dele. Doze anos. Era a minha idade. Escola nunca tive, até então. Do mundo eu nada sabia, menos ainda de pelejar com homem. Fiquei sozinha ali. Era o fim da manhã.

À tarde um negro roliço, em nome do senhor Beltran, levou coisas para eu comer. Bati a porta. Fiquei só com as minhas lágrimas. Meu corpo miúdo trocado por comida para meus irmãos. Muitas meninas como eu caíram nas garras do senhor Beltran. Era o esporte favorito dele: desvirginar crianças.

Com pouco tempo, ele se enjoava e as botava no olho da rua, para viverem na prostituição. Duas delas, falava-se, preferiram a morte, enforcando-se. Pobres meninas! Não haveria um jeito, uma solução para nós, meninas pobres que caiam nas garras do velho urubu?

Chorei. Muito eu chorei. Não tive vontade de comer, embora as tripas roncassem como um bicho acuado. Se meu pai fosse vivo, eu não estaria acuada naquele casebre, esperando que o velho urubu em minhas carnes fracas cravasse o seu bico nojento. Meu pai foi picado por uma cobra venenosa, na roça. Botou sangue por tudo que foi canto, por todo orifício do corpo. Disseram que teria sido uma coral mijo-de-sangue.

Seis filhos para mãe criar, sozinha, trabalhando nas roças alheias, quando achava serviço, recebendo como paga o que era a metade da paga de um homem. Miséria. Quando dava, eu e Carlinhos, a mim encostado na idade, íamos ao riacho pegar uns peixinhos. Aos sábados, mãe ia com a gente. Rendia mais a pescaria.

Cuidados mãe tinha com as espinhas de peixe para a gente não se engasgar. Mas, um dia, Ritinha quase morreu engasgada. Uma aflição. Dona Tereza de “seu” Pedro Oião acudiu. Ritinha teve que engolir uns bocados de farinha, para ajudar a espinha a descer. Espinha pequena de peixe pequeno. Desceu, a muito custo, mas desceu. Alívio. Mãe ajoelhou-se e agradeceu a Papai do Céu.

Bem. O que seria de mim, naquelas condições? O senhor Beltran disse que voltaria em três dias, para esticar-se comigo na cama. Foi o que ele disse. Eu tinha aprendido que Papai do Céu não deixava a gente sofrer mais do que era possível suportar. Era mentira. Muita gente sofria demais da conta. Bastava olhar para a minha mãe, doente, tossindo muito, escarrando sangue, capaz de passar a doença do pulmão fraco para todos nós.

Meus irmãos passando fome, a ponto de mãe me trocar por comida para eles. Ao menos para isso eu servi. Estaria condenada a virar, um dia, mulher de vida livre? Ninguém poderia me acudir? Continuei chorando. Não culpei minha mãe, coitada. Vi o seu rosto escavado pela doença banhar-se de lágrimas.

O meu coração miúdo quase estourou quando ela me abraçou e disse: “Não tenha medo. Apenas abra as pernas para ‘seu’ Beltran”. Ninguém me disse o que significava abrir as pernas, mas eu entendi. Não era uma coisa boa. Não era. Meu corpo por comida. Para salvar meus irmãos e minha mãe, por uns dias. E depois?

Ritinha, a mais velha depois de mim, só tinha oito anos. Ela também seria trocada por comida? Não naquela idade. E se mãe morresse, quem cuidaria dos meus irmãos? Dona Tereza fazia remédios caseiros para mãe. Ela dizia que mãe ficaria curada. Seria mesmo?

Era já a boquinha da noite quando eu comi dois pães duros, molhando-os na água do pote. O sono queria vencer-me, porém, a minha agonia por estar naquela situação não me deixava dormir. Pensei em morrer. Pensei nas duas meninas que se enforcaram, para fugir ao bico de urubu do senhor Beltran. Um monstro! Por que os monstros como ele não morriam? Por que Papai do Céu permitia que eles vivessem, para desgraçar meninas pobres como eu? Ele, Papai do Céu, não tinha tempo para cuidar de todos, dos pobres em especial? Fiz muitas perguntas. Porém, eu não sabia as respostas. Eu não tive escola.

Uma hora qualquer, eu acabei adormecendo. Tive sonhos ruins. Assustadores. Acordei com um barulho lá fora. Estava molhada. O suor escorria por todo o meu corpo. Alguma coisa deveria estar acontecendo lá fora. Um cachorro latia sem parar. Ouvi passos vindo em direção ao casebre. Tremi como uma vara verde. Quem seria? O urubu velho? Aquele negro roliço que trouxe as coisas de comer? Ele se atreveria a desgraçar-me antes do senhor Beltran? E se ele me desgraçasse, o urubu velho iria me querer, ao menos por um dia? Não me botaria no meio do mundo? Não mataria minha mãe e meus irmãos? Minha cabecinha de pouco miolo começou a endoidecer.

Os passos aproximaram-se. Pancadas na porta. Comecei a chorar, baixinho. Papai do Céu não me queria bem? Não tinha tempo para olhar pelos pobres? Para livrar minha mãe da tosse e do sangue escarrado? Para arranjar comida para meus irmãos? E para todos os pobres? Perto da gente tinha muitos outros pobres. O meu choro foi aumentando. “Eu quero morrer! Eu quero morrer!”.

Ouvi uma pancada forte na porta do fundo. Alguém a botou abaixo. Desespero. Os passos aproximaram-se do pequeno quarto sem porta. Um candeeiro ou outro troço alumiava quem se aproximava. Fechei os olhos. Aguardei o pior. Não tive mais forças para arrancar lágrimas dos olhos. Desfaleci.

Quando voltei a mim, assustei-me com a figura daquele negro roliço, sentado num tamborete. “Ele vai me matar!”, pensei. E seria melhor do que ser desgraçada pelo velho urubu. Ao menos, o meu sofrimento acabaria ali. Só doía não poder mais ver minha mãe e meus irmãos. Onde deveria estar Papai do Céu? Onde? Onde?

“Meu nome é Severino”, disse o negro roliço. Fez uma pausa. Pareceu-me uma cobra malvada, pronta para dar o bote. Encolhi-me. A luz na sua mão me cegava. Fechei os olhos. Esperei pela desgraça. Senti aquele Severino sentar-se ao meu lado, na cama. Encolhi-me ainda mais. Pobre de mim. Era o meu fim.

“Não tenha medo, menina. Eu vim lhe tirar daqui. Vou levar sua pessoa pra casa da minha mãe. É distante daqui. O seu pai, um dia, salvou a minha vida, numa briga. Eu vou lhe salvar. Não tenha medo. Se ‘seu’ Beltran descobrir, ele é capaz de mandar me matar. Mas, ele não vai ter você no bico sujo. Ele é malvado. Um traste”.

Olhei para aquele negro roliço, ainda assustada. Agora, parecia um anjo. Eu não sabia se havia anjo negro. Ele me tomou pela mão. De repente, eu me senti segura, tomada por aquela mão grande e forte.

Severino montou no cavalo. Deu-me a mão. Pulei na garupa. Eu era leve, magrinha. Caímos na escuridão. Papai do Céu não estava dormindo.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educaçãoe Instituto Histórico  e Geográfico de Sergipe.

domingo, 7 de novembro de 2021

O RAPTO DE ESTELINHA


  

 

José Lima Santana*

 

 

“Bença, mãe!”. Dona Júlia acendeu o olhar como um candeeiro cheio de querosene. “Deus te abençoe, meu filho!”. Tocou a cabeça de Rigoberto com a mão direita. O filho baixou a vista, circunspecto. Depois, fitou a mãe e disse: “Vou fazer o que tenho que fazer, na falta do pai”. Virou-se. Encaminhou-se ao cavalo selado e outro mais. Montou. Nos alforges, provisões sertanejas: carne moqueada, farinha de mandioca, broas de milho e rapadura.

Longa seria a viagem. A notícia recebida dava conta de que ela estava nos confins do Chapadão dos Rocha. Depois dos sertões do Murici, do Monte Nublado, das Areias Pretas, Pastos Novos e um pouco mais. O pai deles, de Rigoberto e Estelinha, morreu nas guerras dos Melo e dos Pereira, antigas brigas de famílias, que vinham do século XIX, dos tempos dos barões, atravessando a República, nos tempos dos coronéis.

Amando Melo vingou a morte do irmão e morreu pelas mãos de Chico Pereira, que morreu pelas mãos de Rodrigo Melo, filho mais velho do Amando, quando contava dezesseis anos. Rodrigo também tombou assassinado, meses depois. Muitos outros morreriam, como muitos antes morreram.

Faziam oito anos que as duas famílias estavam em trégua. Mas, bastaria uma faísca no olho de um deles, de qualquer dos dois lados, para se acender um fogaréu. Todavia, viviam-se tempos novos. O governo estava apaziguando os confins dos sertões. A força pública tomava conta dos lugares mais ermos. As escolas se espalhavam pelas cidades, vilas e povoados. A educação começava a domar os impulsos. Tempos novos.

Estelinha era a caçula. Dona Júlia mandara a filha para a casa da tia, na cidade, a fim de estudar no ginásio local, uma novidade. Os estudos nos povoados eram fracos e muitas eram as repetências. Por isso, Estelinha começara o curso ginasial, depois de ser aprovada no terceiro exame de admissão, já aos quatorze anos. Isso era comum naqueles confins. Ela foi desasnando com certo embaraço, mas tinha gosto em aprender. Queria ser professora, ajudar a mãe e o único irmão, trazendo-os para a cidade.

As lutas entre os Melo e os Pereira poderiam ficar no passado. Foram muitas mortes sem sentido. Muito sangue derramado pelo furor do orgulho das duas famílias, que, bem antes das brigas, eram unidas e até aparentadas. Um canário da terra foi a causa da guerra que mergulharia as duas famílias num mar de sangue. Era o que se dizia, embora as mortes começaram em 1876.

O canário da terra que um Melo soltou da gaiola de um Pereira serviu de pretexto para uma rezinga política, na eleição municipal daquele ano. Os Melo e os Pereira que, antes, votavam com os Conservadores, dividiram-se entre estes e os Liberais. Um Pereira matou um Melo. Um Melo revidou. E, ao todo, contavam-se, até aquele ano em que Dona Júlia abençoou o filho, naquela manhã de setembro de 1958, quarenta e seis mortes dos dois lados. Gente de bofes quentes.

Ao meio-dia, Rigoberto parou a marcha na margem direita do riacho Curralinho, um filete de água límpida, que mourejava como se espreguiçasse. Apeou. Deixou os cavalos beberem da água clara do Curralinho, que nascia nas grotas da Cova da Onça e encorpava o rio Marmeleiro. O moço abriu o pequeno saco de farinha, cortou um pedaço da carne moqueada e serviu-se. Comeu uma broa e um naco de rapadura. Bebeu da água da cabaça.

Rigoberto assuntava o que fazer e como fazer. Na falta do pai, era o único homem da família. A ele caberia tomar providências em relação à irmã. “Estelinha não tem mais pai, mas tem mãe e irmão. Os Melo têm sangue no olho. Faça valer o valor de suas calças”, disse Dona Júlia ao filho.

Rigoberto seguiu viagem. Dormiria no Murici, talvez, entre Miranda e Cocho dos Porcos. Suas montarias eram boas. Ele levava dois cavalos, para revezamentos. Estava em boa marcha. Com mais cinco ou seis dias, chegaria às fraldas do Monte Nublado. Depois das Areias Pretas, mais dois dias de marcha, segundo dissera o mensageiro, e, então, ele deveria encontrar Estelinha.

Levava consigo boas armas. Um rifle do tipo papo-amarelo e dois revólveres. Munição em boa conta. Esperava contar com o elemento surpresa. Vacilar não poderia. Tinha ciência de que a empreitada não seria fácil. Rigoberto lembrava da morte do pai, quando ele tinha apenas dez anos. O irmão mais velho fez-se nas armas e vingou o pai, para morrer logo depois.

O que aconteceu com Estelinha era mais do que suficiente para quebrar a trégua. Sete dias se passaram. Rigoberto, enfim, achou-se vencendo as Areias Pretas. Entrou nos Pastos Novos, povoado de alguma prosperidade, região de boas pastagens com terra viçosa e boas águas correntes. Adiante ficava o Chapadão dos Rocha. Uma das fazendas dali pertenceria a Antônio Carlos Pereira, que raptara Estelinha da casa da tia, Dona Cecília, irmã de Dona Júlia. A tia quase morreu do coração ao procurar e não achar a sobrinha. Mais ainda, ao saber do rapto.

Antônio Carlos sumiu no mundo, temeroso da reação dos Melo e de sua própria família, que, certamente, não aprovaria a união dele com Estelinha, ao menos assim tão de repente. Ele teria que trabalhar os sentimentos da família, sobretudo da mãe, já que o pai se tinha ido nas brigas há oito anos cessadas, deixando para ele um vasto cabedal. O casal sumiu sem deixar rastros. Agora, um mensageiro dera notícias verazes do seu paradeiro.

Rigoberto entrou no povoado. Buscou informação. A cerca de meia légua ficava a fazenda Bela Vista, de um jovem casal, cujos nomes eram desconhecidos. Só podiam ser mesmo Antônio Carlos Pereira e Estelinha. Deixou as montarias a certa distância. Avaliou o modo de aproximar-se da casa.

Deixou que a tarde caísse. Atravessou por debaixo da cerca de arame farpado, quase rasgando a camisa. Aproximou-se. Por uma janela entreaberta, pôde ver o raptor numa rede com uma criança nos braços. Fazia um ano e oito meses que se dera o rapto. Meter uma bala pela janela seria fácil. Ele apontou o rifle. Fez mira para não ferir a criança, seu sobrinho, pois dava para precisar o sexo, pela roupinha que vestia.

Naquele instante, Estelinha apareceu na sala com uma mamadeira. Ajoelhou-se. Antônio Carlos esticou-se e a beijou no rosto. Disse, suspendendo o filho: “Um dia, vamos mostrar este Melo Pereira às nossas famílias. Ele vai ser a causa de pôr fim às brigas infames”. Ela murmurou: “Tomara. Deus te ouça!”. Com o cano do rifle, Rigoberto escancarou a janela. O casal assustou-se. O irmão de Estelinha demorou um átimo, levantou o cano do rifle e disse: “Eu faço questão de ser o padrinho de batismo do meu sobrinho”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento e Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...