José
Lima Santana Sertões*
Como
era mais ou menos esperado, o caso das loterias de Pedro Pimentel veio à tona,
a Polícia dando em cima, a mando do prefeito Manoel Porrada. Pimentel fora, por
longos anos, eleitor de Porrada, cuja alcunha vinha dos tempos em que o
prefeito não passava de um reles ladrãozinho de frutas nos sítios alheios,
menino ainda, mas bom de briga.
Na
última eleição estadual, Pedro Pimentel bandeou-se para o lado de Francisquinho
de Getúlio do Grotão, médico em início de carreira e filho do lugar. O Dr.
Francisco Correia D’Antas elegeu-se deputado estadual com uma votação jamais
vista no Estado. Contando com apenas três anos de exercício da profissão, o
médico Francisquinho, clinicando em cinco cidades sertanejas, arrebanhou os
votos quase todos dali, além dos votos que o seu sogro arranjara na região Sul,
onde o mesmo era destacado líder político.
Pedro
Pimentel vivia de fazer loterias. Clandestinas. Mas, ninguém jamais se
incomodou com aquilo. Ao contrário, a clientela era demasiadamente grande. A
Polícia fazia vistas grossas. A Lei de Contravenções Penais ainda não tinha
aportado em Brejão de Dentro, cidade do prefeito Manoel Porrada. Porém, foi só
Pimentel virar as costas para o prefeito, e a desgraça caiu sobre ele.
O
delegado Macário Argolo, tenente reformado, levantaria coturno, sabre e
palmatória contra ele. “O prefeito molhou a mão do delegado”, vociferou
Armandinho de Tonho Fubá, cunhado e gerente de Pedro Pimentel. Foi numa manhã
de quarta-feira, véspera de São João, que o delegado Macário Argolo “virou” a
banca das loterias de Pimentel. Prendeu três empregados e o gerente Armandinho,
na casa das apostas. Pimentel estava de viagem à capital.
Naquele
tempo, a única comunicação regular entre Brejão de Dentro e a capital era a
marinete de Roberto Mimoso, um caco de vinte e tantos anos, comparado de
terceira mão. Ao ser conduzido por dois policiais, o cabo Frutuoso e o soldado
Tonho de Chica, Armandinho, ao passar em frente à casa de seu irmão Afonso de
Tonho Fubá, deu orientação para, no carro de praça de Marcolino de Ticão, dar
conta de Pedro Pimentel, que deveria estar entre a casa que mantinha na
capital, para abrigar os filhos estudantes, e a funerária “Destino Certo” do
seu primo Anacleto, que lhe servia de escritório quando pisava os pés naquela
cidade.
Dos
três empregados de Pedro Pimentel, Mané Zoinho choramingava, dizendo que nunca
pisou os pés na delegacia, que era um homem de família e que o prefeito era um
despeitado. Tudo isso era verdade, mas a verdade maior, se havia uma, era a
determinação do prefeito. Afinal, o governador era do seu Partido e a Polícia
estava nas mãos do Governo. Vingança pessoal através do aparato estatal.
Abancado
no armazém de secos e molhados de Rufino de Zé Catenga, quartel-general das
reuniões com os seus apaniguados, o prefeito Manoel Porrada palitava os dentes,
como por ali se dizia, quando alguém estava degustando um feito de qualquer
ordem. “Mandei prender. Pena que o safado escapou. Deve ter sido informado. O
tenente vai me prestar contas disso. Algum soldado meliante deve ter dado com a
língua nos dentes. Agora, quero ver o tal deputadozinho resolver a questão. Eu
sou do governo e a Polícia está do meu lado. Deixe inchar”.
No
meio da tarde, Afonso de Tonho Fubá deu com Pedro Pimentel na funerária do
primo. Narrou o ocorrido. Pimentel subiu nos tamancos. Vociferou. Disse mil e
um impropérios contra o prefeito e o delegado, que se vendeu. Não chegava o que
ele lhe dava todo mês, um conto e duzentos, no contado, para manter as suas
loterias livres? Que negócio era aquele, agora, de falar em lei? Lei era o seu
dinheiro a encher o bolso do delegado.
Quanto
Manoel Porrada teria desembolsado para o tenentezinho se arvorar em autoridade?
E ele era autoridade para tanto? Era juiz? Desembargador? O que ele pensava que
era? O primo Anacleto tentou acalmar Pimentel, que estava nos azeites. Voltaria
imediatamente a Brejão de Dentro. Tomaria satisfações com o delegado.
Se
preciso fosse, meteria o pé na porta do prefeito. Para tanto, era homem. Um
filho de Amâncio Pimentel, seu saudoso pai, tropeiro de respeito nos sertões,
cativado por cangaceiros e volantes, a todos dizendo “sim”, quando era para
dizer “sim, e dizendo “não”, quando era para dizer “não”, ser desfeiteado
daquele jeito? Tinha matado? Não. Tinha roubado? Não? Tinha deflorado? Não.
Vivia do seu trabalho com as loterias há mais de vinte anos, sem incomodar e
sem ser incomodado. Quantas vezes Manoel Porrada fez uma fezinha? Centenas. E a
sua laia toda, como todo mundo de Brejão de Dentro e das redondezas?
Vinha,
agora, o tal delegado, que encheu os bolsos com o seu dinheiro, falar numa tal
de Contravenção. Contravenção uma ova! Pedro Pimentel iria, sim, voltar para
casa. Tomar providências. Antes, porém, falaria com o deputado. O seu deputado.
Tomou o rumo da Assembleia. E ali o encontrou.
O
deputado Francisquinho, Dr. Francisco, para melhor entendimento, ouviu os
queixumes do cabo eleitoral. “O senhor não se avexe. Vou, agora mesmo, falar
com o governador. Ele está me devendo uma. Ontem, eu lhe prestei um favor,
votando em um projeto de lei do governo. Meu tio Lourival, que é amigo dele,
pediu-me esse obséquio.
Era
um projeto bom para os funcionários públicos. Só por isso, eu não poderia
deixar de votar. Não faço oposição por fazer. Mas, o pedido do tio veio a
calhar. Vamos, agora, colher os frutos”. A conversa do deputado com o
governador foi rápida e resolutiva. Telefonema ao secretário da Segurança
Pública. Este encaminhou um capitão da ativa a Brejão de Dentro, para assumir a
delegacia.
Passava
das oito da noite quando a troca foi efetuada. O carro que levou o capitão ao
Brejão, conduziu o tenente à capital. Os três presos foram imediatamente
soltos. As loterias de Pedro Pimentel teriam vida longa. No dia seguinte, um
caixão de defunto amanheceu na porta do prefeito Manoel Porrada.
Em
novembro, o candidato à sua sucessão foi fragorosamente derrotado. O seu mando
político, de quase vinte anos, chegara ao fim. Armandinho de Tonho Fubá,
cunhado e gerente de Pedro Pimentel, elegeu-se prefeito. As loterias, claro, o
ajudaram. Sertões... Tempos de antanho. Aluados tempos.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.