domingo, 29 de maio de 2022

AS LOTERIAS


  

 

José Lima Santana Sertões*

 

 

Como era mais ou menos esperado, o caso das loterias de Pedro Pimentel veio à tona, a Polícia dando em cima, a mando do prefeito Manoel Porrada. Pimentel fora, por longos anos, eleitor de Porrada, cuja alcunha vinha dos tempos em que o prefeito não passava de um reles ladrãozinho de frutas nos sítios alheios, menino ainda, mas bom de briga.

Na última eleição estadual, Pedro Pimentel bandeou-se para o lado de Francisquinho de Getúlio do Grotão, médico em início de carreira e filho do lugar. O Dr. Francisco Correia D’Antas elegeu-se deputado estadual com uma votação jamais vista no Estado. Contando com apenas três anos de exercício da profissão, o médico Francisquinho, clinicando em cinco cidades sertanejas, arrebanhou os votos quase todos dali, além dos votos que o seu sogro arranjara na região Sul, onde o mesmo era destacado líder político.

Pedro Pimentel vivia de fazer loterias. Clandestinas. Mas, ninguém jamais se incomodou com aquilo. Ao contrário, a clientela era demasiadamente grande. A Polícia fazia vistas grossas. A Lei de Contravenções Penais ainda não tinha aportado em Brejão de Dentro, cidade do prefeito Manoel Porrada. Porém, foi só Pimentel virar as costas para o prefeito, e a desgraça caiu sobre ele.

O delegado Macário Argolo, tenente reformado, levantaria coturno, sabre e palmatória contra ele. “O prefeito molhou a mão do delegado”, vociferou Armandinho de Tonho Fubá, cunhado e gerente de Pedro Pimentel. Foi numa manhã de quarta-feira, véspera de São João, que o delegado Macário Argolo “virou” a banca das loterias de Pimentel. Prendeu três empregados e o gerente Armandinho, na casa das apostas. Pimentel estava de viagem à capital.

Naquele tempo, a única comunicação regular entre Brejão de Dentro e a capital era a marinete de Roberto Mimoso, um caco de vinte e tantos anos, comparado de terceira mão. Ao ser conduzido por dois policiais, o cabo Frutuoso e o soldado Tonho de Chica, Armandinho, ao passar em frente à casa de seu irmão Afonso de Tonho Fubá, deu orientação para, no carro de praça de Marcolino de Ticão, dar conta de Pedro Pimentel, que deveria estar entre a casa que mantinha na capital, para abrigar os filhos estudantes, e a funerária “Destino Certo” do seu primo Anacleto, que lhe servia de escritório quando pisava os pés naquela cidade.

Dos três empregados de Pedro Pimentel, Mané Zoinho choramingava, dizendo que nunca pisou os pés na delegacia, que era um homem de família e que o prefeito era um despeitado. Tudo isso era verdade, mas a verdade maior, se havia uma, era a determinação do prefeito. Afinal, o governador era do seu Partido e a Polícia estava nas mãos do Governo. Vingança pessoal através do aparato estatal.

Abancado no armazém de secos e molhados de Rufino de Zé Catenga, quartel-general das reuniões com os seus apaniguados, o prefeito Manoel Porrada palitava os dentes, como por ali se dizia, quando alguém estava degustando um feito de qualquer ordem. “Mandei prender. Pena que o safado escapou. Deve ter sido informado. O tenente vai me prestar contas disso. Algum soldado meliante deve ter dado com a língua nos dentes. Agora, quero ver o tal deputadozinho resolver a questão. Eu sou do governo e a Polícia está do meu lado. Deixe inchar”.

No meio da tarde, Afonso de Tonho Fubá deu com Pedro Pimentel na funerária do primo. Narrou o ocorrido. Pimentel subiu nos tamancos. Vociferou. Disse mil e um impropérios contra o prefeito e o delegado, que se vendeu. Não chegava o que ele lhe dava todo mês, um conto e duzentos, no contado, para manter as suas loterias livres? Que negócio era aquele, agora, de falar em lei? Lei era o seu dinheiro a encher o bolso do delegado.

Quanto Manoel Porrada teria desembolsado para o tenentezinho se arvorar em autoridade? E ele era autoridade para tanto? Era juiz? Desembargador? O que ele pensava que era? O primo Anacleto tentou acalmar Pimentel, que estava nos azeites. Voltaria imediatamente a Brejão de Dentro. Tomaria satisfações com o delegado.

Se preciso fosse, meteria o pé na porta do prefeito. Para tanto, era homem. Um filho de Amâncio Pimentel, seu saudoso pai, tropeiro de respeito nos sertões, cativado por cangaceiros e volantes, a todos dizendo “sim”, quando era para dizer “sim, e dizendo “não”, quando era para dizer “não”, ser desfeiteado daquele jeito? Tinha matado? Não. Tinha roubado? Não? Tinha deflorado? Não. Vivia do seu trabalho com as loterias há mais de vinte anos, sem incomodar e sem ser incomodado. Quantas vezes Manoel Porrada fez uma fezinha? Centenas. E a sua laia toda, como todo mundo de Brejão de Dentro e das redondezas?

Vinha, agora, o tal delegado, que encheu os bolsos com o seu dinheiro, falar numa tal de Contravenção. Contravenção uma ova! Pedro Pimentel iria, sim, voltar para casa. Tomar providências. Antes, porém, falaria com o deputado. O seu deputado. Tomou o rumo da Assembleia. E ali o encontrou.

O deputado Francisquinho, Dr. Francisco, para melhor entendimento, ouviu os queixumes do cabo eleitoral. “O senhor não se avexe. Vou, agora mesmo, falar com o governador. Ele está me devendo uma. Ontem, eu lhe prestei um favor, votando em um projeto de lei do governo. Meu tio Lourival, que é amigo dele, pediu-me esse obséquio.

Era um projeto bom para os funcionários públicos. Só por isso, eu não poderia deixar de votar. Não faço oposição por fazer. Mas, o pedido do tio veio a calhar. Vamos, agora, colher os frutos”. A conversa do deputado com o governador foi rápida e resolutiva. Telefonema ao secretário da Segurança Pública. Este encaminhou um capitão da ativa a Brejão de Dentro, para assumir a delegacia.

Passava das oito da noite quando a troca foi efetuada. O carro que levou o capitão ao Brejão, conduziu o tenente à capital. Os três presos foram imediatamente soltos. As loterias de Pedro Pimentel teriam vida longa. No dia seguinte, um caixão de defunto amanheceu na porta do prefeito Manoel Porrada.

Em novembro, o candidato à sua sucessão foi fragorosamente derrotado. O seu mando político, de quase vinte anos, chegara ao fim. Armandinho de Tonho Fubá, cunhado e gerente de Pedro Pimentel, elegeu-se prefeito. As loterias, claro, o ajudaram. Sertões... Tempos de antanho. Aluados tempos.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

MIMEÓGRAFO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Ibiúna caiu. Muitos presos. A estudantada calculou mal. Como não chamar a atenção do governo militar um evento daquela magnitude? Estratégia equivocada, se é que houve uma. O DOPS não dormia. Os universitários foram presos e enfileirados no meio de cabras e bodes, como foram fotografados.

Bento Figueira foi um dos estudantes de Direito preso como comunista. Todos eram comunistas, na visão caolha das autoridades. Inclusive Dona Lindaura, pobre mulher interiorana, que só gostava de vestir roupas em que predominava a cor vermelha, fora advertida por Erundino, oficial de justiça, que quem vestia aquela cor poderia cair nas mãos do governo, por ser tido como simpatizante de Moscou. Até isso ocorria naqueles idos da segunda metade dos anos 1960. Brabos tempos.

Bento Figueira, depois de solto, retornou ao Estado acobertado de medos. Em cada esquina, ele via um agente da repressão. Em cada rosto desconhecido, um soldado disfarçado a seguir seus passos, a rondar os ambientes que ele frequentava e prestes a prendê-lo mais uma vez. Vivia sobressaltado. Tomava remédios para controlar-se e para dormir.

Todavia, ainda era o tesoureiro do Centro Acadêmico, tido e havido como uma célula do Partidão. A agitação estudantil não cessou após a queda do Congresso em Ibiúna, interior de São Paulo. Os medos de muitos eram vencidos pela ânsia por liberdade, pela volta da normalidade democrática.

A turma de Direito precisava de um mecanismo que permitisse fazer panfletagem. Comprar um mimeógrafo pelas vias normais era demasiadamente arriscado. A venda daquele tipo de equipamento deveria ser notificada à corporação militar federal. Não dava, pois, para arriscar.

O ideal seria conseguir um comerciante que vendesse clandestinamente. Mas, quem poderia correr o risco? Foram semanas e mais semanas de procura, à boca miúda. Enfim, um estudante de Medicina deu a ideia de consultar um tio, dono de movelaria. O Centro Acadêmico precisava mobiliar a sala que lhe servia de sede.

A rapaziada tinha juntado um dinheirinho. Com jeito, o presidente e o secretário foram ter com o comerciante. Acertaram a compra dos poucos móveis: uma mesa, quatro cadeiras, um pequeno sofá, dos bem baratinhos, e um armário de aço. Por fora, sem nota fiscal, mas o preço embutido nos móveis, sairia o mimeógrafo.

Faltava comunicar ao tesoureiro, que era de difícil manejo, ruim de tanger. Cientes que o tesoureiro era do tipo “pisa em casca de banana, mas não escorrega”, juntaram-se o presidente, o secretário e mais dois estudantes a fim de comunicar a trama para comprar o tal mimeógrafo.

Encontraram Bento Figueira numa rede, lendo A Bagaceira, de José Américo de Almeida, o paraibano. Acercaram-se. Ninguém mais em casa. Cheio de dedos, o presidente comunicou as compras feitas e de como embutiram o mimeógrafo no preço total a ser pago.

Falaram da necessidade de ter o equipamento, do quanto o mesmo haveria de servir à causa democrática, do combate ao regime e assim por diante. Poderiam até cobrar modicamente de outros Centros para imprimir seus panfletos. Seria um ganho. O secretário falou com entusiasmo, após o presidente.

Já tinham algumas matérias para soltar na faculdade, sorrateiramente. Haveriam de agitar os pátios e as salas de aula. Levantar a massa estudantil. Endoidecer os opressores. Os outros dois estudantes da comitiva também deram seus palpites. Tudo estava uma maravilha.

Bento Figueira ouviu todo o falatório sem pestanejar, como era do seu estilo. Fechou o livro. Sentou-se na rede. Olhou para o chão. Fitou, um a um, os quatro companheiros. A tarde era azul, um azulão de doer na vista. E o calor fazia os cinco sentirem o suor encharcando os corpos.

O tesoureiro levantou-se. Rodopiou. Colou o dedo indicador da mão esquerda na ponta do nariz. Quando ele fazia aquilo, não era bom sinal. Olhando com dureza para os quatro, ele disse, calmamente: “Eu fui preso como comunista, mas não serei preso como ladrão. Como vou justificar a alteração de preços desses móveis? Vocês estão doidos”?

Sem dúvida, o preço do mimeógrafo a tinta era muito elevado e poderia chamar a atenção dos membros do Conselho Fiscal, especialmente de Rodolfo Bunda Mole, que era, sim, um bundão, todo metido em miudezas e pedidos de explicações de tudo e, quase sempre, sem sentido.

Os quatro ainda tentaram argumentar. De nada adiantou. O tesoureiro não pagaria. Não daquele jeito. Dois meses depois, encontraram uma forma de comprar o mimeógrafo por vias subliminares. O dinheiro foi conseguido. Tinha sempre quem aparecia para dar um adjutório.

Os panfletos correram as salas de aula, chegaram às ruas. Não demorou muito para as autoridades policiais começarem a vasculhar. Um vizinho de Rodolfo Bunda Mole deu-lhe uma prensa. Era policial civil, adido à repressão. Rodolfo não deu com a língua nos dentes. Segurou a barra. Porém, ele passou a ser vigiado. Os seus contatos mais frequentes foram bisbilhotados.

Não demorou muito e a polícia flagrou um estudante, Marcos Gomes, com um maço de panfletos. Prisão. Uma noite inteira de interrogatório e porradas, mas o estudante não abriu o bico. O policial insistia em perguntar se ele sabia onde o geógrafo estava escondido. Nada.

Deixou de apanhar quando descobriram que ele era sobrinho-neto de um desembargador. Por volta das onze da noite, o policial cansado das negativas do estudante, comunicou ao delegado Xisto Muamba: “Doutor, O cabrinha não abre o bico. Diz que não sabe onde o tal geógrafo está escondido”.

O delegado quase teve um troço. “Que geógrafo é esse, Belizário? Você enlouqueceu, homem? Eu quero saber é do mimeógrafo. Mimeógrafo, infeliz”. O policial voltou à cela. “O delegado quer saber é onde vocês esconderam o mimeógrafo. Tá ouvindo? O mimeógrafo”!

Marcos Gomes, sobrinho-neto de desembargador, não titubeou. Choramingando, balbuciou: “Tá na casa da minha avó”. Ou seja, da irmã do desembargador. Não que ela fosse comunista. Quase ninguém era. A distinta senhora era apenas avó. E procurava ajudar ao neto.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.  

domingo, 22 de maio de 2022

COVID LONGA


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Estamos no terceiro ano da Pandemia da Covid-19 e ainda não foi completamente desvendado todo o potencial nocivo de seu protagonista, o enigmático vírus batizado de SARS-Cov-2. Já estão bem estabelecidas as nefastas complicações da fase aguda da doença, muitas vezes fatais, apresentadas atualmente, sobretudo, por aqueles que ainda negam as vacinas e por grupos vulneráveis, como os idosos e os imunocomprometidos. Todavia, quando uma pessoa, infortunadamente acometida pela virose pode ser taxada de “recuperada”? Ou melhor, quando ela se livra, definitivamente, dos sintomas da doença?

Muitos pacientes continuam a relatar queixas como “falta de ar”, “esquecimento”, “peso no peito”, “dores musculares”, “palpitações” e “fadiga”, mesmo tendo passado pela fase aguda da doença meses atrás e terem sido declarados curados, por não mais testarem positivo para o RNA do novo coronavírus.

Um editorial publicado em outubro de 2020, na icônica revista britânica Nature (doi: 10.1038/d41586-020-02796-2), já alertava para as formas prolongadas de Covid-19, enfocando a necessidade e importância da adoção de uma terminologia apropriada para esses casos, de se definir critérios para recuperação da doença, e de se levar em consideração os pontos de vista dos pacientes. Essa ampla gama de sintomas que podem durar semanas, meses ou até mesmo anos, após a infecção, e que pode desaparecer e recrudescer, tem sido denominada de “Síndrome da Covid Longa”.

O prognóstico desta nova entidade médica não é totalmente conhecido e, provavelmente, depende da gravidade do quadro clínico, das comorbidades subjacentes e da resposta ao tratamento. A Organização Mundial da Saúde estima que 10% a 20% daqueles acometidos pela doença desenvolvem Covid prolongada, e que se trata de um problema de saúde pública, em decorrência das potenciais implicações sociais, econômicas e trabalhistas.

Acaba de ser publicado um estudo (doi: 10.1093/trstmh/trac030), desenvolvido pela Fiocruz Minas Gerais, constatando que, surpreendentemente, metade das pessoas diagnosticadas com Covid-19 apresentaram sequelas que podem perdurar por mais de um ano.

Dentre os 646 voluntários acompanhados pelos 14 meses de duração da pesquisa, os investigadores contabilizaram 23 sintomas, após o término da infecção aguda, sendo a fadiga, caracterizada por cansaço extremo e dificuldade para realizar atividades rotineiras, a principal queixa, relatada por 35,6% dos participantes.

Entre as sequelas mais mencionadas, destacam-se: tosse persistente (34,0%), dificuldade para respirar (26,5%), perda do olfato ou paladar (20,1%) e dor de cabeça (17,3%). Chamam a atenção, ainda, os relatos de transtornos mentais (insônia - 8%; ansiedade - 7,1%; e tontura - 5,6%) e variações da pressão arterial (7,4%). Foram verificados também casos graves, como trombose, em 6,2% da população monitorada. A maioria dos pacientes se recuperou em cinco meses, todavia, alguns continuaram sintomáticos durante todo o período da investigação.

A síndrome permanece ignorada por muitos e pode acometer mesmo aqueles que apresentaram sintomas leves na fase aguda, ela se constitui um novo desafio para a ciência, devido à falta de informações sobre as manifestações tardias da doença. Portanto, não se trata de uma “gripezinha”. Finalizo citando o célebre cientista e matemático inglês, Isaac Newton: “O que sabemos é uma gota. O que não sabemos é um oceano”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

 

domingo, 15 de maio de 2022

ALIENÍGENAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

O monumento ao Imperador foi o primeiro alvo. Caiu. Não sobrou uma pedra. Tudo virou pó. Dava para ter uma ligeira impressão do que ocorreu em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. O que estava acontecendo na pequena capital, acontecia noutras cidades brasileiras e estrangeiras? Uma moça que estava na Praça da Assembleia tentou correr para o carro. Não deu tempo. Foi pulverizada.

A partir dali, caiu uma incessante chuva de fogo sobre a cidade. Milhares de artefatos como se fossem raios laser devastadores. Destruição. Carnificina. Bairros inteiros destruídos. Um gato preto saltou de uma janela e foi colhido no ar. Desintegrou-se.

O azul do céu tornou-se vermelho-alaranjado. Rolos de fumaça empreteciam o baixo espaço. Às explosões seguiam-se a liberação de radiação e o pulso eletromagnético. A formação de uma onda de choque inicial causava um deslocamento de ar capaz de derrubar prédios no alcance de 500 metros em circunferência.

Não dava para precisar se os artefatos funcionavam por uma espécie de fissão nuclear, ou seja, com a “quebra” de átomos, liberando grande quantidade de energia, ou por algum modo de fusão nuclear, com funcionamento contrário, isto é, com a “união” de átomos para liberar energia.

O fato era que alienígenas, vindos sabia-se de onde, castigavam o já castigado planeta Terra. De naves espaciais gigantescas saiam naves pequenas, que despejavam os artefatos da destruição.

No bairro Jabuti, César Jean ligou a TV, após receber um telefonema do primo Antoninho. O primo falou e calou. Um barulho esquisito interrompeu a ligação. O apresentador da TV disse alguma coisa sobre uma invasão em vários lugares e não disse mais nada. Chuviscos na tela.

O rapaz olhou pela janela do sexto andar. A cidade tinha virado uma espécie de Sodoma. A destruição aproximava-se. Descalço como estava, ele saiu do apartamento e tentou acessar o elevador. Emperrado. Buscou a escada. A porta corta-fogo estava trancada. Viu, então, um clarão aproximar-se.

O inferno abriu suas portas e expeliu toda a sua pestilência: enxofre e fogo. Na noite anterior, ele disse à mãe que tinha um pressentimento de que o mundo iria se acabar a qualquer momento. Dona Celina riu. “Você está exagerando cada vez mais. Devem ser esses filmes idiotas que fica vendo na TV”. Mas, ele tinha certeza de que o mundo estava prestes a explodir ou a ser explodido. “Ah, não pode ser a Rússia, que já está por aqui”! Foi o que ele pensou, sem querer ter pensado. Havia alienígenas mercenários contratados pelo Putin? Ia-se saber!

Desesperado, César Jean, de 17 anos voltou ao apartamento. Pela janela, que continuava aberta, pôde ver aeronaves de formato estranho despejando raios mortíferos. Logo, o condomínio começaria a ruir. As pessoas não tinham tempo para entrar em pânico. Eram devoradas pela energia liberada. Ele resolveu tentar escapar de maneira suicida. Pularia do sexto andar. Usaria um colchão, que amorteceria a queda sobre o telhado de zinco do abrigo dos carros. Se desse tempo.

Alienígenas. Ele tinha razão. A mãe estava no trabalho. Ela não lhe dera ouvidos. Estaria viva? Quem poderia saber? Já tinha ligado para ela trocentas vezes. Nada. O pai estava no oco do mundo. Um andarilho. Deixou mulher e filho ainda de braço, para jogar-se com uma cantora de circo. Notícias? Nenhuma.

Tempo houve em que ele queria conhecer o pai. Esse tempo passou. Não tinha raiva do pai, mas seria melhor não o ver. Agora, provavelmente, jamais o veria. Todos estariam mortos em pouco tempo. No mundo inteiro, ao que parecia. Aquela destruição não estaria acontecendo somente ali. O mundo todo estaria sendo atacado pelos seres espaciais com suas naves mortíferas. E ainda diziam que não havia vida em outros planetas. Ali estava a prova. Havia, sim.

Pulou. Como previsto, o colchão o salvou. Escorregou para a beira do telhado de zinco. Poucos metros. Caiu ainda agarrado ao colchão, no exato momento em que o prédio foi atingido. Os quatro prédios que formavam o condomínio foram arrasados. Ele conseguiu arrastar-se até um caramanchão semidestruído. Foi quase esmagado por um bloco de concreto em chamas.

Se conseguisse escapar, o que era improvável, certamente não mais veria a mãe. Jamais poderia conhecer o pai. A cidade tinha virado uma fornalha. Labaredas infernais consumiam o que não tinha sido pulverizado. Logo mais, tudo seriam cinzas.

Gritos dilacerantes eram ouvidos e, de chofre, silenciados. O mundo dos dinossauros se fora. Milhões de anos se passaram. Enfim, vieram os homens, que também estavam indo. Tudo estaria acabado em questão de minutos. Os alienígenas não queriam dominar a Terra. Apenas destruí-la. Seres perversos, ferozes e mortais, como os próprios homens, porém com tecnologia muito mais avançada.

César Jean viu uma nave descer. Parecia um pé de pato de algum tipo de metal com um brilho ofuscante. Ao redor, escombros em chamas. Ele tentou se esconder por trás de uma cadeira de balanço. Era onde um professor aposentado ruminava seus antigos sonhos, suas conquistas e seus fracassos.

A nave abriu uma portinhola de poucos centímetros de largura. Um serzinho oleoso desceu. Tinha seis pernas que se moviam lentamente, uma após a outra. Bizarro e muito feio. Tinha língua parecida com a de uma serpente. Serpente de outra galáxia? Quem poderia saber...!

A língua do serzinho oleoso moveu-se em sua direção. Parecia caçá-lo. Naquela devastação, sentiu-se uma presa fácil. Sucumbiria. O primo Antoninho sempre o chamava de fraco. Contudo, não era um covarde. Se tivesse de morrer, e, decerto, morreria, até porque não haveria de querer viver num mundo devastado, morreria sem medo.

Haveria de morrer sem votar pela primeira vez. Tirara o título de eleitor para defender a democracia contra os corruptos e os golpistas, duas laias imprestáveis, na sua adolescente visão. Adeus eleição. Adeus vida. Adeus mundo. Levantou-se. O calor era insuportável. Tudo ardia. Caminhou resoluto em direção ao serzinho serpentoso. Um vento infernal, tangido por labaredas, queimava seu corpo. Aproximou-se do alienígena feioso. Sentiu sua língua roçando-lhe o rosto em fogo.

Dona Celina chamou César Jean. “Acorde, dorminhoco”! Eram quase seis horas. As aulas começavam às sete. “Mãe, eu tive um sonho maluco com alienígenas”! E dona Celina: “Lá vem você de novo...”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 8 de maio de 2022

SORVETE DE MANGABA


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Tarde de sexta-feira. A tarde ia a meio. Seriam umas 15:30, mais ou menos. O carro prateado estacionou na única vaga naquele momento existente ao longo da avenida. O calor de janeiro fez logo, logo, o motorista começar a suar, enquanto caminhava os cem metros que distavam do carro à sorveteria, estando a casa com suas mesas quase todas ocupadas.

Uma mesa lá atrás o convidava. Para lá se dirigiu. Tirou o lenço. Enxugou o rosto e o pescoço. Mulheres e crianças compunham a maioria da clientela. Todos ávidos por um sorvete na casquinha ou no copinho, a depender de cada gosto. Os atendentes abriam as tampas dos grandes vasilhames, colocavam o sorvete de duas ou três bolas.

Os sorvetes mais pedidos eram os de mangaba, coco, goiaba, umbu e tapioca. Uma moça de olhos mortiços passava o pano no chão, que ficava muito limpo, quase virando um espelho. As crianças menores lambuzavam-se. Um sorvete era, deveras, uma delícia. No verão, então, era um gozo celeste.

O recém-chegado abancou-se, aguardando a vez de ser atendido. Conversas. Barulho. Choro de uma criança, uma menininha, que queria mais um sorvete, no que a mãe disse “não”. Como dizer não a uma criança que clama por mais um sorvete? Ao menos uma bola. Mas, cada mãe sabia o que devia ser adequado para os filhos. Ele fez um muxoxo. Não via porque se incomodar com aquilo. Esperou o atendimento.

Sorvete de mangaba. Duas bolas. Foi o pedido dele. Saboreou o sorvete como uma criança. Lembrou dos tempos de menino, quando o pai ou a mãe o levava à Sorveteria Cinelândia, a mais afamada da cidade naquela época, de onde saiam quilos e mais quilos de sorvete para a degustação de autoridades brasilienses, por conta de um parlamentar dado a mimar os poderosos.

Há cinco anos, divorciado, retornou ao chão de origem. Montou escritório de representações. Tudo ia bem, quando veio a crise forçada pela pandemia. Porém, a situação tendia a melhorar, aos poucos. Os filhos vinham vê-lo nas férias. As aulas virtuais deixaram a desejar.

Ele tinha dois lindos garotos, de 13 e 16 anos. O casamento começou a desgastar-se quando a ex-mulher passou a interessar-se por uma amiga. “Uma fase louca”, ela o disse. Não deu mais. Foram três meses de brigas, incompreensões e desalinhos. Ela quis voltar atrás. Foi tarde.

Ele arrumou as malas, mudou-se para um hotel. As crianças, de início, não compreenderam. Ele nunca as jogou contra a mãe. Esta, por sua vez, também fez o mesmo, verdade seja dita. Romperam. Veio o divórcio. Dois anos depois, ela se interessou por outro. E por outro, mais adiante.

A amiga ficara para trás. “Uma fase louca”, como ela o disse. Agora, segundo os filhos disseram nas últimas férias, ela estava sozinha. Melhor assim, para cuidar mais de perto dos filhos numa fase de idade difícil, sobretudo numa cidade como o Rio de Janeiro, embora Marcos César e Marcelo Augusto fossem bem ajuizados. “Graças a Deus”.

Ele pediu uma água mineral com gás. Pensou, momentaneamente, no pai, que, como por milagre, escapou da covid-19. Esteve no pau do canto. Quase se foi. Passou quase um mês na UTI. A equipe multidisciplinar que cuidou dele, teve uma atuação ímpar. Também na cidade havia bons profissionais na área da saúde. Não era somente nos grandes centros que eles estavam.

Uma mulher espigada entrou na sorveteria, conduzindo um menino ruivo, falador. Perguntava mil coisas ao mesmo tempo. Era a fase dos questionamentos. Ele riu com a desenvoltura do garoto. Marcos César, muito mais que Marcelo Augusto, era assim também. Às vezes, a mãe se impacientava com tantas perguntas. Ele achava graça.

Em junho, os meninos viriam para o São João. E, se tudo corresse bem, em dezembro ele planejava viajar com os filhos para algum lugar, no Sul. O desejo era levar os rapazes à Europa, mas a situação financeira ainda não permitia. Quem sabia, em 2024 ou 2025. Marcos César desejava conhecer a Alemanha. Marcelo Augusto só falava em Madri e Barcelona, por causa do futebol. O esporte da bola no pé era o seu favorito. O outro vivia para a tecnologia da informação.

Consultou o relógio. Passava um pouco das 16 horas. Eram 16:10. Não tinha pressa. Ainda daria tempo para outro sorvete de mangaba. Bebeu mais um gole de água. Não estava muito gelada. Era como ele gostava. Água fria; gelada, não. “Água fria é que mata a sede”. O garotinho ruivo continuava fazendo perguntas à mãe, a cada palheta de sorvete posta na boca. Ora a mãe respondia, ora apenas sorria. Que belo quadro, a mãe e o filho em animada sintonia!

O telefone tocou. Era ela. Provavelmente, para lembrar-lhe da hora em que deveria buscá-la. Tinham marcado às 18 horas. Era cedo. Atendeu. Do outro lado, a voz apressada, como sempre, da namorada, Anna Stella, defensora pública. “Onde você está? Não me diga que está com alguma amiguinha, no Shopping. Venha me buscar agorinha mesmo. Resolvi sair mais cedo. Para mim, acabou de sextar. Não demore, está ouvindo”? Ele não tinha amiguinhas, nem era frequentador de shoppings, salvo uma vez ou outra para ir ao cinema. Ela sabia disso. Mas, quando falava, dizia coisas sem pensar. Um saco!

Ele bebeu um gole. Pediu outro sorvete. Do mesmo. O namoro de oito meses começava a fazer água. Anna Stella era do tipo possessiva. Inteligente, dona de si, mandona. Ele gostava dela, mas contestava certas posições suas, inclusive a política. Naquele instante, o namoro pareceu-lhe mais gélido que o delicioso sorvete de mangaba.


*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...