sábado, 30 de julho de 2022

RELIGIÕES E INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Os ateus dizem que os homens, com medo da morte e do não vir a ser, inventaram Deus como válvula de escape. Os crentes dos mais diversos credos religiosos acreditam, em maioria acentuada, na vida após a morte. As religiões foram sendo criadas ao longo dos milênios, desde os primórdios da humanidade. Logo cedo, os seres humanos deixaram-se tocar pela mística e pelos mistérios das divindades.

As religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – arrebanham bilhões de fiéis. No caso específico do cristianismo, em suas diversas vertentes, e que são muitas, a fé na ressurreição de Cristo é o seu grande sustentáculo. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Especificamente, para o catolicismo, a fé deve ser sustentada pela Palavra, Tradição Apostólica e Magistério da Igreja.

Não há religião que não tenha suas instituições e autoridades religiosas. Umas mais, outras menos. Se as divisões entre os cristãos geraram guerras, disputas, incompreensões e intolerâncias, é de observar-se que no interior da própria Igreja Católica, ao longo de vinte e um séculos, muitas têm sido as discussões que levaram e levam a díspares compreensões, a acirradas disputas, a graves momentos de queda de alguns de seus membros e de elevação de tantos outros.

“Tu és pedra...”, disse Jesus a Simão Barjonas. Pedro. Pedra. O que falta, hoje, aos membros da Igreja Católica, mormente ao seu clero? Falta a busca de unidade na diversidade? Falta, da parte de alguns, a tão necessária humildade que deveria ser própria de todos os cristãos, católicos ou não, clérigos ou não? “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir...” (Mt 20,28). Jesus o disse.

Vez por outra, escândalos aparecem na superfície da Igreja que, como um grande navio, arrasta abaixo da linha d’água um casco com os mais variados problemas. Padres e bispos têm caído em suas próprias redes. Isso faz a Igreja, como instituição, pagar pela culpa de alguns de seus membros. Quando um escândalo vem à tona, não é apenas o seu causador que é posto na berlinda. É a Igreja, que, afinal, deve ser purificada com o banimento daqueles que a enxovalham na surdina, até que seus desvios sejam expostos.

As religiões seriam mesmo o ópio do povo, como declararam os marxistas? Até podia ser. Tempo houve em que se dizia e se pichavam nos muros: “Os fracos rezam; os fortes lutam”. Houve, porém, quem acrescentasse: “Os fracos rezam; os fortes lutam; mas os sábios rezam e lutam”. As religiões não são o ópio do povo. O ópio do povo é a fé escurecida pelos desvios devocionais e/ou comportamentais. Em quaisquer religiões.

Nalguns casos, elegem-se líderes religiosos como novos “messias” (com letras minúsculas). Fiéis deixam-se seduzir ou iludir por teologias imediatistas. Falo do interior da Igreja Católica, que é a minha Igreja. Não me interessa, aqui, voltar-me para outros segmentos religiosos, cristãos ou não. Cada um cuide de si.

Noutros casos, desvios de conduta de uns tantos líderes religiosos, sob os mais variados tipos de desvios, açulam o descrédito de muitos fiéis, desmoralizam as instituições e depõem contra a instituição maior, a própria Igreja, no seu todo considerada. O escândalo causado por um líder religioso não apenas o afeta, mas também a Paróquia, o Santuário, a Diocese e a dimensão geral, que vem a ser a Igreja Católica, espalhada por todo o mundo.

É difícil aceitar os escândalos, jogá-los debaixo do tapete. Escândalos são males que devem ser extirpados, tumores cancerosos a ser arrancados com bisturi e sem anestesia. Na crueza mesmo. Para salvaguardar a Igreja, deve-se expelir a parte, para não macular o todo.

Na Igreja Católica, os líderes religiosos (diáconos, presbíteros e bispos) devem ser varões probos, em tudo provados. Os presbíteros em sua ordenação fazem votos de obediência e castidade. Os religiosos acrescentam o voto de pobreza. Um voto feito é para ser cumprido. Quem assim não o faz, trai o voto, não se tornando digno do seu ministério. Por aí espalham-se os chamados “telhados de vidro”. E “telhados de vidro” voltam-se, por vezes, contra outros “telhados de vidro”. Luta intestina. Via de regra, por interesses contrariados. Há, decerto, “telhados de vidro” mais frágeis do que outros. Todavia, todo “telhado de vidro” não deixa de ter suas fragilidades, que, um dia, poderão ser expostas. Se não hoje, quem sabe, amanhã?

Por conta dos mais diversos desvios, sucedem-se os escândalos: financeiros, morais etc. Hoje aqui, amanhã ali. “Tu és pedra e sobre esta pedra erguerei a minha Igreja” (Mt 16,18). Um dia, espera-se, todos deverão compreender estas palavras de Jesus Cristo. A Igreja, hoje, está sobre os ombros de todos. Todos devem se sentir Pedro, mas cada um com a função que lhe compete, canonicamente. Nem mais, nem menos.

O Papa Francisco tem sido incansável no combate aos abusos praticados no interior da Igreja. Oxalá ainda dure o seu pontificado. Que Deus o fortaleça para continuar enfrentando os múltiplos desafios.

Por fim, aguarda-se o que está por vir, a partir do próximo Sínodo dos Bispos. Novos ares soprando sobre a Igreja, para o gáudio de alguns e para a contrariedade de outros, estes os ultraconservadores empedernidos. Estamos à vista do maior processo de consulta democrática da história da Igreja Católica. Que venha o Sínodo. E que a Luz vença o que ainda restar de trevas.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 10 de julho de 2022

A COVID-19 E O FEITIÇO DO TEMPO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O Feitiço do Tempo (Groundhog Day), filme filosófico da década de 1990, dirigido por Harold Ramis e estrelado por Bill Murray no papel de Phil Connors, um insuportável meteorologista de Pittsburgh, Pensilvânia, nos EUA, que se ressente de ter sido escalado para a insignificante tarefa de reportar a celebração do Dia da Marmota, no distrito de Punxsutawney, no mesmo Estado.

Ele planejava retornar para a pujante “Cidade do Aço” logo após as festividades, todavia, uma armadilha em forma de temporal, causado por uma nevasca, o faz ficar retido na pequena localidade. O aborrecido e egocêntrico personagem passa a dormir e acordar todo dia, no mesmo dia em que gravou a reportagem.

Essa comédia estadunidense reflete o que estamos vivenciando no terceiro ano da pandemia da Covid-19, enfrentando a quarta onda da doença, com os mesmos problemas e com as mesmas controvérsias. Parece que o tempo não passa...  A sensação de déjà-vu volta a atormentar os médicos e demais profissionais de saúde, além de gestores de unidades hospitalares, por diversos motivos: inúmeros telefonemas ou Zaps de pacientes e/ou familiares aflitos por estarem contaminados pelo nefasto vírus; aumento dos atendimentos nas urgências com síndromes respiratórias, carecendo de diagnóstico diferencial sobretudo com a influenza; crescimento dos internamentos de casos graves de Covid-19, forçando o retorno de UTIs dedicadas ao tratamento da virose, com todo o aparato de segurança requerido e o receio daqueles que lidam com os enfermos, de se contaminarem e/ou de transmitirem a virose para seus familiares e entes queridos.

A elevação do número de casos e de óbitos por Covid-19 registrada ultimamente, pode ser creditada, seguramente, a alguns fatores: queda, muito precoce do uso das máscaras em locais fechados; estagnação no processo de imunização; baixa adesão à quarta dose da vacina; surgimento de subvariantes da cepa Ômicron do SARS-Cov-2, como a BA.2, muito mais transmissível que a BA.1, que nos atormentou no início do ano e as  aglomerações em eventos', notadamente o carnaval fora de época no sudeste e as festas juninas aqui no nordeste.

Apesar de incontestes evidências favoráveis à proteção chancelada pelas vacinas contra a COVID-19, sobretudo para casos graves e mortes, e, inclusive, da falta de respaldo científico da eficácia de drogas como a Ivermectina, na prevenção e no tratamento da referida virose, ainda encontramos uma legião daqueles que, veementemente, torcem contra os imunizantes e disseminam o uso do “milagroso” vermífugo e de outros componentes do chamado “Kit Covid”, em detrimento dos efeitos colaterais (alguns graves), que estas drogas podem causar.

Pesquisa recente, realizada no HCor de São Paulo, mostrou que, entre os hospitalizados neste ano, 31,8% não haviam recebido uma dose sequer da vacina e que os óbitos praticamente zeraram entre os pacientes internados acima de 40 anos de idade e com poucas comorbidades, atestando o benefício dos imunizantes.

Portanto, a pandemia ainda não acabou! Temos que continuar usando a ciência para iluminar as nossas decisões e olhar para a frente com as lições aprendidas no passado. Finalizo citando o grande imperador romano, Marco Aurélio: “O que fazemos agora ecoa na eternidade”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 9 de julho de 2022

LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA, NUNCA MAIS!


  

 

José Lima Santana*

 

 

Tempo houve em que os homens barbarizados matavam mulheres, alegando uma estúpida tese de legítima defesa da honra. Advogados criminalistas faziam estripulias no tribunal do júri, para tornar assassinos confessos em supostas vítimas. Essa maldita tese acabou tombando, ante a melhor compreensão dos fatos pela sociedade e, obviamente, pela doutrina jurídica e jurisprudência, que foram revendo a tese malfadada e iluminando as decisões dos jurados.

A legítima defesa da honra se tornou popular a partir do julgamento, em 1979, de Doca Street, que três anos antes havia assassinado a tiros sua namorada, Angela Diniz, em suas férias em Búzios (RJ). A tese da defesa de Street passou a ser muito usada em situações semelhantes pelo país.

E, ainda que essa tese já não seja considerada válida pela Justiça, é comum que a defesa do acusado de feminicídio procure levar o tribunal do júri a desconsiderar a vítima, vilificando seu comportamento, e utilize o argumento da “violenta emoção” para, no mínimo, diminuir a pena imposta ao assassino. Um absurdo! Todavia, advogados existem para fazer o melhor possível em favor de seus clientes, mesmo os assassinos mais cruéis. Enfim, a ampla defesa é um direito constitucional.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro do ano passado, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. Mas, apesar dessa tomada de posição, nada pode impedir que os criminalistas de plantão possam insistir nessa tese do tempo da vida nas cavernas.

Lamentavelmente, a ocorrência de feminicídios tem aumentado de forma considerável e amplamente reprovável por quem tem a sensatez de combater essa forma de violência contra as mulheres e, claro, qualquer forma de violência contra quem quer que seja.

No último dia 6, a CCJ do Senado Federal aprovou o projeto de lei da senadora Zenaide Maia (Pros-RN) que proíbe o uso da tese da legítima defesa da honra como argumento para a absolvição de acusados de feminicídio. O texto também exclui os atenuantes e redutores de pena relacionados à “violenta emoção”, no caso de crimes contra as mulheres. A proposta, relatada pelo senador Alexandre Silveira (PSD-MG), segue para a Câmara dos Deputados, se não houver recurso para votação em Plenário.

O PL 2.325/2021 altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 1940) para excluir os atenuantes e redutores de pena relacionados à violenta emoção e à defesa de valor moral ou social nos crimes de violência doméstica e familiar. E alterando o Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689 de 1941), a proposta proíbe o uso da tese de legítima defesa da honra como argumento pela absolvição no julgamento de acusados de feminicídio pelo tribunal do júri. Aplausos!

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, só em 2020 foram registrados 1.354 feminicídios e 230.160 casos de lesão corporal em contexto de violência doméstica e familiar. Nesse período foram concedidas pelos Tribunais de Justiça 294.440 medidas protetivas de urgência.

Em Sergipe, os feminicídios cresceram 16,8%, no ano passado. Um dado a lamentar. Quando, enfim, os homens serão, verdadeiramente, homens, inseridos na vida social, nela agindo e interagindo como seres dotados de racionalidade e sabedores de que as mulheres não são seus objetos? Ninguém é dono ou dona de ninguém. A estupidez e a barbárie de alguns homens não devem ser jogadas para debaixo do tapete. Ao contrário, devem ser severamente reprovadas pela Justiça e pela sociedade.

Não cabe a ninguém que preza pela harmonia social e pela afirmação da dignidade da pessoa humana defender essa maldita tese da legítima defesa da honra. Defendê-la é portar-se como um animal indigno da vida na Polis.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 3 de julho de 2022

VACINA CONTRA COVID EM GESTANTES - "DOIS POR UM"


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A ocorrência de Covid-19 durante a gravidez pode resultar em doença grave com hospitalização e até mesmo morte da gestante, além do risco aumentado de complicações neonatais. As vacinas disponíveis contra a referida virose têm se mostrado eficazes na redução das infecções pelo SARS-Cov-2, e, principalmente, evitado o agravamento da doença, reduzindo, substancialmente, o número de internações e de óbitos.

Os benefícios da vacinação materna para o bebê, mediante a transferência de anticorpos pela placenta, já estão bem estabelecidos, desde os idos de 1870, quando ficou constatada a proteção contra varíola, nos primeiros meses de vida de crianças cujas mães foram previamente vacinadas.

A imunização das mães contra o tétano e a higiene durante o trabalho de parto resultaram em redução substancial da infecção neonatal em alguns países em desenvolvimento. Resultados semelhantes de proteção de recém-nascidos têm sido observados, também, com a imunização das mães contra difteria e coqueluche, geralmente conjugada com a antitetânica, na vacina acelular DTPa. Esta última deve ser administrada entre a 27ª e 36ª semanas de gestação para maximizar a produção materna de anticorpos e a consequente transferência placentária para o feto.

Estudos com vacinas que utilizam a metodologia de RNA mensageiro (Pfizer–BioNTech e Moderna) respaldam os benefícios e a segurança da imunização contra a Covid-19 durante a gestação e, portanto, os Centros regulatórios (CDC nos Estados Unidos e ANVISA no Brasil) recomendam a vacinação, incluindo reforços quando elegíveis, para aquelas que estão grávidas ou planejam engravidar.

Esta conduta pode ter duplo benefício, ou seja, protege a mãe e, também, o seu concepto, já que não se realiza vacinação em crianças com menos de 6 meses de idade. Tem sido constatada a presença de anticorpos contra o novo coronavírus tanto em sangue do cordão umbilical, como no leite de mães vacinadas, porém a correlação com a proteção da criança contra a nefasta infecção ainda não tinha sido comprovada.

Para responder a esta importante pergunta, foi recém-publicado, no conceituado periódico New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMoa2204399), um grande estudo multicêntrico, demonstrando que a vacinação maternal com duas doses (Pfizer–BioNTech ou Moderna) foi associada com redução significativa de hospitalização e de casos críticos da virose, em crianças menores de seis meses de vida. Vale ressaltar, ainda, que este estudo foi conduzido durante a circulação das variantes Delta e Ômicron do SARS-Cov-2.

Assim, a evidência de que as vacinas contra a Covid-19 ajudam a proteger tanto as mães como os bebês, passa a ser relevante para o aconselhamento materno, já que o argumento “dois por um” é bastante encorajador. Portanto, temos que continuar incentivando a vacinação da população por se tratar do principal armamento na luta contra essa “Peste”. Finalizo, citando o notável Charles Chaplin: “A persistência é o melhor caminho para o êxito”

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

ÉTICA E ESFERA PÚBLICA


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

A ética não se confina no espaço privado. Ela permeia, ou deve permear, as atividades públicas, que objetivam ao bem comum, onde quer que os seres humanos possam agir e interagir. Nesse sentido, diz-nos Eduardo Bittar: “A ética não é uma questão de esfera do privado, mas uma questão de relevante interesse público, e, exatamente por isso, uma questão da esfera pública. A própria noção de esfera pública está entrelaçada com a questão do que concerne ao bem comum, na medida em que atende e realiza a possibilidade da liberdade em comum, ou, ainda, do que concerne ao interesse de todos, àquilo que tem a ver com os negócios comuns, e, por isso, tem a ver com as atividades que não se confundem com as individuais, com as domésticas, ou com as coletivas, mas com aquelas que atingem e beneficiam o interesse da coletividade de todos aqueles que se reúnem em sociedade com uma finalidade comum” (p. 136-137).

E por que isso se dá? Porque as ações antiéticas, digamos, se soltam, são esparramadas por aí? Vejamos o que ainda nos afirma Bittar: “E isso porque, assim que o espaço público se torna o espaço do desvio de conduta, da atitude antiética, do denuncismo jornalístico, da conduta criminosa, da ilicitude, da rapinagem, junto com isso segue-se a descrença generalizada da população nos negócios públicos, a sensação de crise das instituições, a desconfiança na legitimidade da democracia para o controle das coisas de interesse comum, a criminalização da política e do serviço público, o desinvestimento nas iniciativas inovadoras de políticas públicas, o exaurimento do ambiente criativo para os temas de interesse social, tudo mergulhado numa atmosfera de acusações constantes, investigação ilimitada, desgaste e perseguição, que, em seu conjunto, formam a derrota da política – em seu sentido mais genuíno. Não por outro motivo, a Lei anticorrupção (Lei n. 12.846/2013) e outras iniciativas deste jaez são fundamentais para a garantia do zelo com o que é público, na medida em que em risco se encontram não apenas o dinheiro público, mas justamente com isso, o que há de mais inestimável na esfera pública, o interesse de todos pelo que é comum” (p. 137-138).

É de lembrar que a esfera pública a todos pertence. Esse espaço não se limita a alguns, por exemplo, aos que estão no poder. Não! Esse espaço é de todos, e, principalmente, dos que levam alguns ao poder, sem delírios, sem mitificações, sem deslumbres ideológicos, que cegam os que deveriam ver, que emudecem os que deveriam falar, que ensurdecem os que deveriam ouvir.

No espaço público está presente a cultura. Ética e cultura são afins. Logo, diz Bittar: “É impossível dissociar a ética da cultura, daí a importância inclusive dos estudos antropológicos sobre a temática ética. Toda cultura exprime uma forma de codificação moral do comportamento. Toda ética é a expressão de uma determinada endogenia cultural. Isto porque a cultura é o registro coletivo das práticas humanas determinadas no tempo e no espaço. De todo ato humano se depreende uma certa impregnação de cultura” (2019, p. 101).

Por outro lado, é preciso situar a ética na esfera pública por excelência, isto é, na Polis. Assim, não se deve dissociar a ética da atividade exercida pelos indivíduos na Polis. Nela, eles agem e interagem, como tão bem sabemos. Não é à toa que Faria explicita: “A ética é considerada por Aristóteles como um estudo introdutório à política. Diz respeito sobretudo ao comportamento do indivíduo na medida em que se insere no espaço “público” e se reflete sobre a polis. Por isso mesmo dizemos que a ética de Aristóteles é uma ética da cidadania. A concepção ético-política de Aristóteles considera a polis, não como ente artificial, produto de uma arte, mas como decorrente da própria natureza. Tal tese encontra apoio em quatro pressupostos que se articulam a outros planos de seu pensamento: a teleologia; a felicidade como fim último visado pelo homem e que dá sentido a todos os seus atos; a concepção do homem como “animal político”; e a concepção da cidade como uma realidade complexa que decorre desta natureza do animal humano e que tem como telos a justiça (2007, p. 60-61).

A finalidade da ética e do próprio homem é o alcance da justiça. O homem deve ser grandioso de alma. Lutar por méritos que lhe cabem de forma justa. Sob esse aspecto, o que deve fazer o homem altivo? Quem responde é o próprio Aristóteles: “O homem grandioso de alma não se atira ao perigo por razões fúteis e não é um amante do perigo porque há poucas coisas que ele valoriza; mas ele afrontará o perigo por uma grande causa e ao fazê-lo estará pronto a sacrificar sua vida, pois ele pensa que a vida não deve ser mantida a qualquer preço. E igualmente ser altivo diante de homens de posição e fortuna, mas cortês com aqueles de condição mediana, porque é difícil e de grande distinção ser superior aos grandes, ao passo que é fácil sobrepujar os pequenos, e adotar uma postura altiva com o primeiro não é ser mal-educado, enquanto é vulgar exibi-la com pessoas humildes; é como empregar a força contra os fracos (2002, p. 123).

Eis, pois, uma visão do homem aristotelicamente ético. E um pouco mais: “O homem que simula ter mais mérito do que realmente tem sem nenhum objeto ulterior, decerto é uma pessoa de caráter inferior...”, arremata o sábio grego (2002, p. 130). A esfera pública, ou seja, a Polis é para pessoas de caráter superior. Contudo, as de caráter inferior perambulam na esfera pública, aos montes e vindas de vários lados, desvirtuando a Polis, zombando das pessoas, que, às vezes, as idolatram, as mitificam. Que pena!

Referências bibliográficas: 1. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2002. 2. Bittar, Eduardo C. B. Curso de Ética Geral e Profissional. 15 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. 3. Faria, Maria do Carmo B. de. Direito e Ética. São Paulo: Paulus, 2007.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...