domingo, 28 de fevereiro de 2021

A LOTERIA DA COVID-19


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Estamos vivenciando a esperada segunda onda da Covid-19, provocando sufoco em moradores de inúmeras cidades brasileiras, notadamente na Região Norte do país, apesar do negacionismo, explícito, de algumas autoridades governamentais e de parcela, significativa, da população.

Já dispomos do mais poderoso armamento para o enfrentamento de uma pandemia desta natureza, a vacina! Todavia, a vacinação avança, timidamente, Brasil afora, enquanto já se registra a presença da cepa amazonense do SARS-Cov-2, mais veloz no ofício da contaminação, em outras localidades, provocando o fechamento de fronteiras de vários países, para cidadãos brasileiros.

Após mais de um ano do registro do primeiro infectado, na China, a principal certeza desta doença é a incerteza da evolução dos acometidos pelo nefasto novo coronavírus. Aprendemos, ao longo do ano passado, que existe um grupo de risco para desfecho desfavorável, composto pelos idosos, os hipertensos, os diabéticos, os portadores de doenças cardiovasculares, os renais crônicos etc.

Porém, tem sido registrado, com certa frequência, a ocorrência de casos de portadores de tais comorbidades que evoluem satisfatoriamente e, por outro lado, a de indivíduos jovens, muitos dos quais atletas e sem doença aparente, que são penalizados com internações demoradas em unidades de terapia intensiva e, até, com desfecho letal.

Pelo exposto, poderíamos comparar o futuro daqueles acometidos pelo referido vírus, com o de uma loteria, composta por três bilhetes. Os contemplados com o bilhete um, que constitui a maioria de quase 80%, vão ser assintomáticos ou apresentarão sintomas leves, não requerendo internação hospitalar, devendo, contudo, permanecerem isolados por 14 dias.

Sabemos que muitos desses “sortudos” não adquirem imunidade duradoura e, ainda é incerto, se não sofrerão consequências futuras, já que existem relatos de sequelas tardias. Já os aquinhoados com o bilhete dois, 15% dos pacientes, geralmente exibem manifestações moderadas da Covid-19, com sinais clínicos de pneumonia (febre, tosse, dispneia, taquipneia), mas com saturação de oxigênio (O2), no sangue periférico, maior do que 90% em ar ambiente, requerendo, às vezes, internação em enfermaria e suplementação de O2, via catéter nasal, sem, todavia, recorrer a tratamentos intensivos.

Por outro lado, os 5% azarados, que receberam o bilhete três desta impiedosa doença, vão passar por um verdadeiro calvário, necessitando de terapia intensiva, muitas vezes de intubação endotraqueal, podendo apresentar as formas críticas, com falência respiratória, choque cardiovascular e insuficiência renal e/ou hepática agudas, algumas vezes, irreversível.

Fica patente que o mais sensato é evitar, de todas as formas, a traiçoeira loteria da Covid-19, porque, por mais sadio que seja o jogador, como em todo jogo de azar, a sorte pode não estar ao seu lado. Ressalte-se, ainda, que, até o momento, não existe comprovação científica de tratamento precoce para esta mazela, embora insensatamente defendido por alguns.

Só nos resta continuar insistindo com as eficazes medidas de distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos enquanto aguardamos que o vírus deixe de circular, quando a maioria da população for, efetivamente, vacinada.

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

O NOME ERRADO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Até Manequinha do Brejo, pai de santo, foi chamado. Ele, sempre arredio, até se prontificou a sair do seu quase esconderijo na baixada do Brejão do Nêgo, para dar um adjutório ao padre Belisário Fortunato e ao pastor Conrado Pires, que se uniram, pela primeira vez na vida religiosa da cidade, com o intuito de combater a desgraça que tinha se abatido sobre José Rodolfo Marques Montes.

Pobre homem que, de repente, não mais que de repente, viu-se acometido por uma doença desgramada, que lhe cozinhava os miolos, fazendo-o gemer dia e noite sem parar. Um desassossego desmedido. E que homem bom era José Rodolfo, benquisto por toda a cidade e para além dela!

Uma alma de Deus. Um santo. Caiu em desgraça por um descuido dos céus. Só podia ser. Mas, Deus não haveria de lhe faltar. José Rodolfo apareceu na cidade como que por encanto. Sozinho, um rapazola, jamais procurou casamento. Viveu para servir. De onde ele viera, não se sabia.

Ele sempre desconversava quando alguém puxava o assunto. Um homem de bem, como poucos que ali nascera ou se arranchara. Montou um comércio de miudezas e foi-se fazendo na vida. Ajudava a quantos podia. Devoto de São Francisco de Assis, a quem, na maior das intimidades, chamava de São Chiquinho, foi o principal contribuinte para a edificação da nova igreja matriz, que substituiu a antiga, muito acanhada para acomodar os fiéis, especialmente nas missas domingueiras.

O padre Belisário não lhe poupava encômios. Merecidamente. Fez campanhas para a construção da Casa de Parto, para instalar o Ginásio, um sonho da comunidade, sobretudo dos mais pobres que não tinham meios para mandar os filhos e filhas estudarem na capital ou noutra cidade maior.

Recém-chegado à cidade, o jovem pastor Conrado Pires estabeleceu-se em casa alugada, para iniciar suas pregações da Palavra. Locador? José Rodolfo, que, além de fixar um aluguel em conta, ainda dispensou os três primeiros meses para dar tempo do pastor se ajeitar lá com os seus convertidos.

Assim era a criatura atacada por tão grande malefício, uma doença esquisita, que os médicos da capital não deram conta de remediar. Segundo se falava, até pai Manequinha recebia favores de José Rodolfo, nas festas de Cosme e Damião, que, no sincretismo religioso, representam os orixás Ibejis, filhos gêmeos de Xangô e Iansã.

Era o que se falava. Ora, não seria à toa o adjutório do velho pai-de-santo, fazendo soar os atabaques em dias que nem eram de sua obrigação, para favorecer o doente. Dona Bela do finado Pedro Coceirinha torcia os beiços para o sincretismo. “Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, repetia.

E esclarecia que São Cosme e São Damião eram dois irmãos gêmeos, médicos, que viveram na Ásia Menor. Ficaram conhecidos porque curavam pessoas sem cobrar dinheiro. Morreram por volta do ano 300 d.C. degolados. Nada a ver, pois, com os orixás gêmeos. Nada a ver.

A cidade mobilizou-se. Beatas faziam promessas, acendiam velas, entoavam ladainhas, realizavam círculos de orações. A comunidade do pastor Pires orava entre glórias e aleluias. Filhos e filhas de santo se esforçavam para evitar que José Rodolfo se tornasse um aruê e para que não fosse preciso realizar em sua memória um axexê.

Sem dúvida, a cidade estava diante da maior junção de forças espirituais em favor de alguém, como jamais foi visto e, provavelmente, jamais viria a se ver. Todos estavam em sintonia para afastar a doença do homem mais caridoso da localidade. Ah, quantas pessoas tiveram a fome mitigada por José Rodolfo! Quantas foram socorridas em tantas outras precisões!

Passaram-se dois meses e meio desde que os médicos da capital desenganaram José Rodolfo. Não havia na literatura médica conhecida um caso igual ao dele. Até médicos de São Paulo foram consultados. Exames foram enviados para o maioral de um grande hospital paulistano. Nada.

Doença estranha. Desconhecida. Parecia que os miolos derretiam na cabeça. Uma velha rezadeira, Dona Fiinha de Maurício do Pau D’Arco, avaliou o caso e vaticinou: “O que ele tem é semente de homem não ejaculada. Sobe para a cabeça e ferve os miolos do cristão. É coisa sem jeito. Não haverá de durar”. Ora, quem daria ouvidos a uma velha faladeira?

Quarta-feira, meados de abril. Zé de Vadico desceu a ladeira dos Carrapatos com um feixe de lenha na cabeça. Candeia branca, cujas folhas eram um lenitivo para doenças do fígado. A melhor madeira para se queimar no fogão a lenha. Zé de Vadico achou estranho que uma sucupira bem ao pé da ladeira estivesse florida. No mês de abril? Estranho. As florezinhas roxas estavam fora de tempo. Mau agouro.

Naquela mesma quarta-feira, José Rodolfo bateu a caçoleta. Não teve missa, nem culto, nem batida de atabaques que dessem jeito na doença daquele benfeitor da cidade. Consternação geral. Mamede de Secundino do Gravatá, que se dizia descrente nas coisas do alto, berrou, na bodega de Vânia Tanajura: “Ô, minha gente, cadê as rezas e tudo mais para salvar José Rodolfo? Cadê os santos e os orixás? Cadê o Deus de vocês? Estaria dormindo?”. Um herege. Um blasfemador, como disse Carolina de Maria Safira de Joãozinho Pé Ligeiro.

Corália, antiga doméstica da casa de José Rodolfo, tinha instruções para o caso dele bater as botas. Ela abriu um envelope, que ele lhe tinha confiado. Dentro, um testamento particular, disposições de última vontade e uma certidão de nascimento. O seu nome era, na verdade, Valdomiro Canuto de Bretas Peixoto. E, na letrinha miúda dele, uma explicação: era foragido da polícia maranhense desde os 17 anos, quando os membros de sua família, pai, mãe e dois irmãos, foram chacinados a mando de um ricaço, fazendeiro e grileiro de terras, que se apossara da propriedade de Bento Bretas Peixoto, seu pai. Ele escapara porque estava na casa de um parente, no Pará.

Aos 17 anos, o conhecido por José Rodolfo fez-se nas armas e deu cabo do grileiro. A polícia o caçou, vasculhando palmo por palmo do território do Maranhão. Em vão. Com a ajuda de um parente materno, ele arribou no mundo. Pronto. Ali estava o porquê de tantas rezas e tudo o mais não lhe terem poupado a vida, na sentença de Dona Fiinha: “Ô desgraça, rezaram para o nome errado. Por isso, a morte veio”. Certo estaria William Shakespeare ao dizer, pela boca de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe a nossa vã filosofia”.Parte superior do formulário

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

A VACINA E O QUEIJO SUIÇO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A Suíça se destaca, também, pela variada produção de deliciosos queijos, sendo o Emmental, aquele cheio de furinhos (olhadura) e massa semidura, o mais conhecido no Brasil. Seu nome deriva do local onde começou a ser fabricado, desde o Século XIII, no vale de Emme, na região de Berna.

Vale ressaltar que tais buracos são gerados por bactérias específicas, responsáveis pela formação do ácido láctico. Durante esse processo, algumas delas consomem o referido ácido, liberando dióxido de carbono, que formam bolhas dentro do queijo, configurando, assim, a sua famosa característica.

Afinal, qual é a relação entre essa iguaria e a vacina contra a Covid-19 que continua assolando, impiedosamente, todo o território nacional, causando estragos na economia e ceifando vidas preciosas? Na verdade, trata-se de uma metáfora que visa a reforçar a importância de se utilizar múltiplas proteções para dificultar a propagação do SARS-CoV-2, vírus altamente contagioso, sobretudo as novas cepas.

Nenhuma camada, por si só, é 100% segura, contendo, portanto, imperfeições, representadas pelos orifícios. Quando eles se alinham, aumenta o risco de contaminação. Contudo, a sobreposição de várias camadas: distanciamento social; uso adequado de máscaras; higienizar as mãos; etiqueta ao tossir ou espirrar; evitar aglomerações; preferir locais ventilados; isolamento e quarentena para os infectados e contactantes, respectivamente, e, sobretudo a vacinação, criam uma barreira praticamente impenetrável.

A engenhosa metáfora acima descrita, foi adaptada pelo Professor Ian Mackay, da Universidade de Queensland, Austrália. Vale ressaltar que o sucesso do modelo depende do rigor da adoção de cada conduta, como ressalta o profissional, “Cada fatia tem orifícios ou falhas, e esses orifícios podem mudar em número, tamanho e localização, dependendo de como nos comportamos em resposta a cada intervenção”.

As máscaras servem como um bom exemplo de camada. Elas reduzem o risco de o indivíduo contaminar ou de ser contaminado, todavia a sua eficácia na proteção se reduz ou desaparece se não cobrir, adequadamente nariz e boca, se estiver no queixo, se não for trocada periodicamente, se não for lavada, se não for descartada corretamente, se as mãos não forem higienizadas ao tocá-las. Cada uma destas falhas constitui um buraco, em uma única camada.

Por enquanto, com a vacinação avançando timidamente, devemos continuar usando o maior número de camadas de proteção possíveis, para evitar o alinhamento de orifícios, permitindo, assim, a passagem do arisco vírus.

Finalmente, recomendo que, nas ocasiões festivas, degustemos o queijo suíço em família, sem aglomerações, com a esperança de que, no próximo ano, possamos confraternizar, também, com parentes e amigos.

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

O JUIZ E O BICHO-DE-PORCO


  

 

José Lima Santana*

 

 

No alpendre da pensão de Dona Carminha do finado Tonho de Maria de Zé Afonso, dormitava o senhor juiz de direito, numa cadeira de balanço, aproveitando um ventinho que de vez em quando soprava, meio morno, pois o verão estava no auge. Fevereiro, nos seus meados.

O sol vinha castigando o sertão desde outubro. As últimas chuvas tinham caído no início de setembro, uns tamboeiros, um quase nada, barrufo que mal deu para pagar a poeira. O inverno não tinha sido bom. Chuvas esparsas de maio a julho. O juiz, Dr. Armando Fonseca Pires, pouco trabalhara no ano findo.

A comarca estava sem promotor de justiça há quase dois anos. Um promotor substituto aparecia, quando aparecia, uma vez a cada quinze dias. Audiências criminais na pauta, com réus presos, que eram poucos, outras audiências de família, questões de alimentos, e só. O juiz roncava mais do que motor de caminhão velho a subir uma ladeira bastante íngreme. A pança subia e descia como um fole resfolegando.

Chica Preta, cozinheira da pensão, achegou-se com um pirex de doce de goiaba batido. Chamou o juiz. Uma mosca lambia seus beiços. O magistrado espantou o inseto intruso com a mão esquerda. Ajeitou-se na cadeira. Olhou para a cozinheira. “Seu docinho, doutor. Acabou de esfriar”. Ele sorriu: “Obrigado, Chica!”.

Depois de bater o pirex cheio de doce, deu mão da moringa ao seu lado. Bebeu dois copos. Água de moringa era uma delícia. E a água de beber da cidade, da fonte de Aristides da Furna da Onça, era quase mineral. Água leve, que descia limpando a goela, coisa de dar gosto.

O juiz tirou o sapato do pé direito. Uma coceirinha no dedão do pé, que vinha lhe incomodando há dias. O local estava até inflamado e avermelhado. Ao chegar em casa, teria que ver aquilo. Tentou levantar-se, enquanto Chica Preta sumia no interior do quintal, no qual o juiz tanto gostava de caminhar, de manhã cedo.

Chica foi alimentar os seis bacorinhos, que já, já, seriam vendidos por Dona Carminha. A pança do juiz o impediu no primeiro tanjo. Então, ele apoiou os dois braços nos braços da cadeira e, a custo, levantou-se com um gemido. Olhou o relógio. Faltavam quinze para as quatro.

Dali a pouco, a marinete de Pedro Moreira passaria, no rumo da capital, para enfrentar oitenta e cinco quilômetros de terra batida até alcançar o asfalto da rodovia federal. Quinta-feira. Dia de retornar para casa. As tarefas judicantes semanais estendiam-se da terça à quinta-feira.

Despachos no Fórum improvisado, que funcionava na Câmara Municipal, e que só tinha sessão à noite, duas por semana. Raras audiências. Um ou outro despacho no Eleitoral. As fofocas de sempre, alardeadas pelo tabelião Maneca Mãozinha e pela escrivã, Dona Helenita de Tavarinho. Sem contar com os préstimos noticiosos do oficial de justiça, Paulo Timboco, o maior raparigueiro do sertão. Mais de quinze filhos.

O Dr. Armando estava na comarca há seis anos. Viu três colegas seus, mais novos na função, serem promovidos, passando à sua frente. Um deles, era sobrinho do vice-presidente do Tribunal. O outro era genro do governador. O terceiro, neto de um general de pijama. E ele não tinha pistolão.

Naquela época, o Tribunal não seguia regras para as promoções. Era, pura e simplesmente, a veneta dos doutos desembargadores. Tempos brabos. Para complicar, a família dele era do PSD, enquanto o presidente do Tribunal, desembargador Cardoso, e o governador eram da UDN.

Ele estava metido num atoleiro. A sua esperança era que o noivado com a neta do velho deputado Fulgêncio Amado Porto, udenista, prosperasse, como prometia. Quarentão, corpulento, pouco tinha se dado em namoro depois da morte prematura da primeira namorada, sua colega de turma, que falecera um mês antes da formatura. Câncer. Um desgosto profundo.

Dez anos depois da morte da namorada, duas tentativas de namoro foram por água abaixo. Há um ano, namorava com Estelinha, viúva sem filhos, dois anos mais velha do que ele, mas, parecendo uns cinco ou seis anos mais nova. Ela era diretora de uma escola pública noturna, na capital. Uma mulher prendada, inteligente, que escrevia poemas para um jornal. Estava preparando-se para publicar o primeiro livro.

Uma buzina estridente soou e ressoou. Era a marinete. O juiz comprava dois bilhetes, pois ocupava dois assentos no ônibus. O filho de Dona Carminha era o agente da Viação Eldorado, empresa de uma marinete só. Os bilhetes do doutor já eram permanentemente reservados, no primeiro banco.

Mala na mão, o juiz desceu os seis degraus da pensão para a rua. O motorista da marinete, Vavá Curiboca, pegou a mala do doutor, cumprimentando-o: “Boa tarde, doutor. Vamos seguir viagem com a graça de Nosso Senhor!”. Segurando no corrimão da marinete, o juiz subiu com certo esforço.

Três horas e meia de uma viagem cansativa e empoeirada, com uma parada em Córrego Largo, à meia distância entre a comarca e a capital. Enfim, em casa. A irmã, Dona Almerinda, dez anos mais velha, solteirona, com quem ele morava, o recebeu com o jantar em ponto de bala.

O juiz tomou banho, vestiu a roupa de dormir e foi à mesa. O jantar foi um regalo: salada de bacalhau com frios, robalo ao molho de camarão, arroz à grega, purê de maças. Dispensou a sobremesa. Tomaria uns dois cálices de vinho do Porto.

Na manhã seguinte, o juiz pediu o parecer da irmã sobre a inflamação no dedão do pé direito. Ela o apalpou e não teve dúvida no diagnóstico: “Meu querido irmão, você está com tungíase ou tunguíase”. Professora aposentada de Ciências, ela deu uma ligeira aula: “A Tunga penetrans é a menor das pulgas e tem como característica ser hematófaga. Ela pertence ao gênero Tunga, família Tungidae, classe dos insetos, ordem dos Sinfonápteros, ramo dos Artrópodes. Tem como hospedeiro preferencial o porco, mas também o homem e outros animais”. E emendou, no seu jeito debochado, herdado do pai, que Deus o tivesse: “Desse jeito, senhor juiz, vossa excelência jamais será promovido para a tão sonhada segunda entrância. Além da barreira da UDN, o senhor tem como sócio um bicho-de-porco. Um juiz assim nunca será promovido”.

Colhido de surpresa, ele franziu a testa e disse: “O seu veredicto é terrível. Aliás, mais terrível do que a caneta do presidente do Tribunal, que me ignora”. Então, o jeito foi os dois caírem na gargalhada. Depois, com uma agulha esquentada numa vela, para matar germes, Dona Almerinda extirpou o bicho-de-porco.

O olhinho preto, ou seja, o próprio parasita, nadando numa massa espumosa, as larvas, que o povo chamava de lêndeas, como as de piolhos. Aliviado, disse o irmão: “Bem, um empecilho eu já não o tenho. Quanto à UDN, essa praga você não pode retirar do meu caminho”.

O magistrado que esperasse por melhores dias, para ser promovido. Por ora, iria encontrar-se com a namorada. Ouviria versos.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

ADEUS AO AMIGO MANELITO MENEZES

                                              Manelito Aguiar Menezes

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Manoel Aguiar Menezes Neto, conhecido como Manelito, tinha em suas veias a inquietude dos empreendedores e a consciência de que são as suas escolhas que constroem a sua essência. Filho mais velho de Henrique Menezes e Carmita, logo se tornou o braço direito do pai na concretização e no gerenciamento de um dos maiores conglomerados de empresas que Sergipe já teve, o Grupo SAMAM, que gera empregos para centenas de conterrâneos.

O esforço, a coragem, a perseverança e o dom de comerciante nato criaram as energias necessária para diversificar e impulsionar, cada vez mais, os negócios da família, seguindo o conselho de seu experiente genitor: “em tempos difíceis, o varejo é a solução”! Era um obcecado pelo trabalho e fazia dele uma diversão. Como pessoa humana, era um sentimental que não limitava o seu horizonte afetivo a si mesmo, à sua família, às suas empresas, ia muito além.

Tive o privilégio de ser médico de Manelito, desde 1995, referendado pelo saudoso Dr. Hyder Gurgel, quando passou a apresentar hipertensão arterial sistêmica. Durante este convívio, ao tempo em que estreitávamos a nossa amizade, pude testemunhar o seu acometimento pelas mais diversas complicações cardiovasculares: acidente vascular encefálico (AVC), infarto agudo do miocárdio, insuficiência renal, requerendo transplante renal (duas vezes), intervenções pertutâneas coronarianas requerendo colocação de stent, arritmia cardíaca e, até seis episódios de parada cardiorrespiratória, requerendo implante de cardiodesfibrilador (CDI). Por incrível que pareça, ele conseguiu superar todas estas adversidades.

Na madrugada de 12 de fevereiro de 2021, seu coração silenciou, vencido pelo terrível SARS-Cov-19, que tem aterrorizado o mundo e não para de contabilizar, em seu pedágio, inúmeras vítimas.

Cabe aqui o pensamento de Cícero em Paradoxos: “A morte é horrível para aqueles a quem tudo se extingue com ela, mas não para aqueles cujo bom nome não morrerá”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
 

DELÍRIOS


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O padre Zéfiro Moreira foi acordado às duas da manhã. Madrugada fria. O vento açoitava lá fora e entrava por umas frestas do telhado, na casa sem forro. Casarão do fim do século XIX, doado à Paróquia recém instalada, em 1912. Doação do neto do Barão do Alecrim. O velho padre tateou na escuridão em busca do interruptor para acender a lâmpada de 60 velas. Ergueu a mão, arranhou a parede, mais um pouco e eis o acendedor da luz.

Àquela hora, aos berros, só podia ser Maria de João do Pati, afamada papa-hóstia, coordenadora do Apostolado. Seria mais uma crise do neto, Flodualdo. A velha beata insistia que o neto de dezoito anos estava possuído por um demônio. Implorava por um exorcismo. Porém, um exorcismo teria que ser autorizado pelo senhor bispo e na presença de evidências que o justificassem. Não era coisa de brincadeira. Depois, nada evidenciava uma possessão diabólica. E ainda que fosse, o velho padre não teria tutano para tanto. Não era exorcista. Briga com o demo não era para qualquer um.

O jumento de Belisário, no terreno aos fundos da casa paroquial, fez alvoroço. Relinchou duas vezes. Duas horas, no contado. Relógio sem corda, mas que nunca falhava. O padre vestiu a calça e a batina preta. Bocejou. O amargor fê-lo afastar com a mão a papa dos anjos nos cantos da boca.

Maria vivia sofrendo com aquele neto desde que ele perdeu a cabeça por uma zinha do último circo que esteve na cidade, uma rumbeira balzaquiana, que lhe tirou o sossego e algo mais. O rapaz virou a cabeça para a tal, e esta acabou indo embora com o circo. Bebedeira, malcriações, delírios.

Ele era um brinco de moço até a chegada do circo, até tê-la visto rebolando no palco. Até ela o ter sufocado na serpente de seus braços. Balzaquiana, mas bela e fogosa. Numa noite de exibição, ela passou o lenço no pescoço do moço, como costumavam fazer as rumbeiras, à cata de uns trocados.

Flodualdo, no frescor e no viço dos dezessete anos, soltou uma nota de dez cruzeiros, daquela que tinha a estampa de Vargas. Ela o fitou, passou a mão no queixo dele, que fechou os olhos. Quando os abriu, ela o beijou. Na boca. Língua viperina. Ele ficou arreado dos quatro pneus. Tiveram um chamego. Aceso.

A beata estava aflita, transida de frio, o velho xale branco do seu próprio feitio sobre os ombros, além de um casaco de lã. “O seu vigário me perdoe, mas o menino está possuído de novo. Tá vendo coisas novamente. Vampiros”. Embora não chovesse, o padre tomou do guarda-chuva e do chapéu. Pôs uma capa Renner. E lá foram os dois a acudir o rapaz atacado por vampiros.

Flodualdo era, desde criança, amante de filmes, assistidos no Cine São José, de Valmor de Zuliná. Desde a adolescência, gostava dos bangue-bangues e dos espadachins. Censura? Naquele tempo, não se exigia. Não ali, na Tapera dos Martins. Mas, o filme “Drácula” com Christofer Lee o impressionara.

Depois que a rumbeira se foi, ficaram os vampiros para lhe atormentar. Sonhava com eles. Via-os a todo instante com seus dentes afiados, prontos para ser cravados no pescoço de alguém. No dele, primeiramente. Recolhia-se ao quarto. Lá estavam os vampiros. Gritava. Sacudia-se na cama como se estivesse sendo atacado. Atracava-se com os travesseiros, lutando. Passava a mão no pescoço, o sangue escorrendo pelos dois furos. A avó o acudia. Nada. Ele estava intacto.

O padre Zéfiro foi encontrar Flodualdo com os olhos esbugalhados, movendo a cabeça para a direita e para a esquerda sem parar. Dona Maria sentou-se ao lado do neto. “Meu filho, olhe o padre”. O neto atracou-se com ela. Gritou. “Vó, é o vampiro, é o vampiro!”. Os gritos de pavor aumentaram.

O padre aspergiu água benta sobre ele. Fez em sua direção o sinal da cruz. Orou: o Pai-Nosso e o Credo. Por um momento, a luz tremulou, bruxuleou e, enfim, estabilizou. A custo, o rapaz relaxou. Já passavam das cinco horas. A aurora lutava para se derramar sobre o mundo. Um sol sem forças tentava se levantar. Era setembro. Comecinho. Fim de inverno.

Acalmado o neto, Maria de João do Pati pôs-se a preparar o café para o padre. Ah, o velho sacerdote gostava de um bom cuscuz com natas de leite, queijo de coalho derretido, ovos fritos e uma tigela de café preto, sem açúcar! Antes, uma fruta, mamão de preferência. Se tivesse um pedaço de carne de sol, assada na brasa, ele louvava a Deus duas vezes.

A história da rumbeira deixara a avó de Flodualdo em pânico. Um menino seduzido por uma marafona, uma rapariga de circo, uma rampeira, isso, sim, ela era. Ele perdeu o juízo. Nas cinco semanas que o circo se ajeitou na cidade, o rapaz não arredou os pés de lá, armado que estava na Praça de “seu” Juca.

A casa alugada pelo dono do circo virou um antro de safadeza. A marafona arrastou Flodualdo para o lodaçal da perdição. Ficou encegueirado. Primeira mulher da vida dele, no sentido carnal, a avó o supunha. Com ela, tirou os atrasados da adolescência, que só os exercia nos banhos demorados.

Passaram-se dois meses. Flodualdo teve melhoras e pioras. Um médico de passagem pela cidade aconselhou que ele fosse levado a um especialista de cabeça, na capital. Médico de doidos. Maria de João do Pati alvoroçou-se. Procurou o padre. Este referendou o aconselhamento do doutor.

Enfim, duas semanas depois, a avó e o neto aboletaram-se para a capital. Uma prima marcou a consulta. Não teve jeito. Internação mais que depressa, na clínica de doentes mentais. Clínica particular. Coisa nova na capital. Custaria um dinheirão, mas isso não seria problema. A avó era farta nas patacas.

A clínica ficava no subúrbio, numa pequena elevação. Arborizada e bem asseada. Devidamente medicado, Flodualdo foi levado ao apartamento. Uma enfermeira trintona lhe foi apresentada. Ele fez pouco caso. Um muxoxo. Fechou os olhos. Dormiu. Era o fim da tarde.

A noite já tinha descido. Um chuvisco borrifou a clínica e adjacências. O jasmineiro ao lado perfumava a noite. O jantar foi servido. Flodualdo pouco comeu. Deitou-se. Talvez tenha adormecido. Por volta da meia-noite, a enfermeira adentrou ao apartamento. A claridade da luz no corredor deixava o apartamento na penumbra.

Flodualdo viu a enfermeira aproximar-se. Silenciosa. Chegou perto dele, causando-lhe susto. Ela abriu a boca. Dois dentes vampirescos, duas presas enormes saltaram à vista. Ele quis gritar. O grito foi abafado. Então, ele sentiu as presas no pescoço, penetrando cada vez mais. O sangue escorreu. Inundou o corpo, a cama, o quarto. Delírios...?

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A BOTIJA


  

José Lima Santana*

 

 

Diacho de precisão. Ainda faltavam dois contos e duzentos. Um negócio daquele não se deveria perder. Sítio formoso, pertinho da cidade, terra dadivosa, minadouro de boa água, que escorria fazendo um naco de terra verdejar de verão a verão. Partido mimoso de mandioca escondida, o melhor tipo, e uns bons paus de macaxeira rosa, a de maior predileção das donas de casa e doceiras, que se esmeravam nos manauês besuntados com manteiga ou leite de coco ralado, do grosso. Uma gostosura.

Além do quê, um partido de cana caiana, para um bom caldo de cana com limão ou para chupar, quem bons dentes tivesse, e fruteiras à larga: manga rosa, manga espada, manga bobona, manga maria, caju vermelho e amarelo, jaca mole e dura, jabuticaba, jenipapo, pitanga, araticum, carambola, laranja de umbigo, mexerica, mamão de cheiro e até um frondoso umbuzeiro. Lá no fundo tinha também dois pés de murici. Ah, uma farinha de murici era de dar gastura de tanto desejo!

Robertão de Maria de Dó contou e recontou o dinheiro que tinha disponível. Dez contos e oitocentos. Pedrinho de Tonho de Fulô não arredava pé: só passava o sítio por treze contos de réis. Era um dinheirão, que daria para comprar algumas boas tarefas de terra com pastos de capim sempre-verde. Cerca de cinquenta tarefas.

Mas, aquelas seis tarefas do sítio tão almejado, valiam muito bem o preço pretendido pelo dono. Onde arranjar o restante do dinheiro? Ele era alfaiate. Teve uma numerosa freguesia, mas os novos tempos começaram a afugentar os fregueses, que compravam roupa feita nas lojas, que, a bem da verdade, eram mal costuradas, coisa de carregação, inundando as cidades. Embora ficassem mais em conta, não dava para comparar o talhe bem medido e cortado, na tesoura, e melhor costurado na máquina de pé de Robertão.

O que se chamava de novos tempos estava tirando o bocado da boca e da barriga dos artesãos-oficiais. Dois contos e duzentos. Tomar emprestado, nem pensar. Quem lhe fiasse essa quantia ou até mais, Robertão tinha, fazendeiros de grana grossa, seus amigos. Nunca, todavia, foi do seu feitio sair por aí, pedindo empréstimos. O seu chapéu só ia até a altura da cabeça. Não acima dela. Dois contos e duzentos...

Perder aquela ocasião era um sacrilégio. Desfrutar seus últimos dias de travessia nesta vida, num sítio daquele, era o sonho acalentado e requentado. Refestelar-se numa rede, no fim da tarde, balançando-se para lá e para cá, lambendo os beiços com o mel das frutas, no tempo propício, beber da água minada, criar galinhas de terrança, soltas, quem sabia também um bacorinho para a ceia de Natal, tudo ali pertinho da cidade, tudo era um mimo, um conforto de rico, para quem dedicou a vida inteira ao trabalho duro, desde os tempos de aprendiz de alfaiate com o mestre Zuza Tesoura de Ouro, que mais do que mestre foi um verdadeiro pai. Ele bem merecia. Para tanto, faltavam dois contos e duzentos.

Noite alta. O sono demorou a vir aos olhos cansados de Robertão. Para não incomodar Dona Lourdinha, sua esposa há mais de quarenta anos, ele procurou ficar quieto, aguardando que Morfeu lhe visitasse. Já tinha provado as laranjas de umbigo do sítio que almejava comprar, pois Pedrinho era seu freguês e mais de uma vez lhe presenteara com deliciosos cítricos.

Dois contos e duzentos. Enfim, adormeceu, um galo cantando ali perto e outros respondendo adiante. Robertão teve um sonho com a finada Lourença de Chico do Marmeleiro. A mulher de maior sovinice da cidade, quem sabia, do mundo inteiro. Dizia-se que, em vida, a dita cuja não comia merda, porque fedia. Um horror!

Ela e o marido eram, até a morte, dela, que se foi por derradeiro, donos do melhor e mais sortido armazém de secos e molhados das redondezas. Freguesia farta de todo lugar. Enriqueceram no comércio. Nunca tiveram filhos. A fortuna ficou para os irmãos e sobrinhos de ambos.

No sonho, a velha Lourença mostrava o canto de um quarto da antiga casa do casal, agora fechada. Ali encontrava-se uma botija. Um bauzinho de trinta por trinta, cheio de joias. A defunta, que, no sonho, apareceu vestida como tinha partido desta para a outra vida, com uma mortalha azul-claro e um véu azul-escuro, estava mais feiosa do que em vida. Num minuto, os olhos faiscavam, noutro, ficavam mortiços como uma névoa. Pareciam um rabo de vagalume, acendendo e apagando.

A defunta deu as seguintes instruções: “Você deve ir sozinho à minha casa, na proximidade da meia-noite. À meia-noite, em ponto, deverá cavar sem olhar para os lados, nem dar ouvidos ao que tiver de ouvir. Demônios terríveis tentam desviar a atenção dos cavadores de botijas. E lá está mais do que você precisa”. Disse mais alguma coisa, que Robertão não conseguiu ou não quis ouvir. Boa coisa podia não ser.

Foi só um sonho, ou a defunta rica tinha mesmo uma botija para lhe dar? Robertão acordou encafifado. Não custava arriscar. Meia-noite em ponto, ele deveria começar a cavar a botija. Dez para a meia-noite, a hora do cão soltar-se, dirigiu-se à casa botijeira. A porta dos fundos estava só encostada. Estranho. Para ele, era uma providência da defunta.

Candeeiro numa mão, enxadeco na outra, procurou o local indicado. Um cheiro de mofo e coisas ruins dominava o ambiente. Ajoelhou-se e começou a cavar. De chofre, um sacolejo fez o chão tremer. Vozes esquisitas. Gritos tenebrosos. Fedor de enxofre. Outros sacolejos, ainda mais fortes. O inferno parecia abrir as portas. Mas, ele não deu fiança a nada daquilo.

No pescoço, um crucifixo e uma medalha do Arcanjo Miguel, tudo benzido pelo Cônego Monteiro. Cavou um pouco mais. O enxadeco bateu em algo. Era o bauzinho. Tirou a terra de cima, ergueu o recipiente. Vozes, gritos e fedor sumiram. Levantou-se para sair. Candeeiro numa mão, bauzinho na outra. Enxadeco? Deixou para lá.

Um susto. Susto das seiscentas! Um gato preto pôs-se diante dele, miando de forma horrenda. Olhos de fogo. Ele gritou: “T’esconjuro, maldito”! E correu. Em casa, sozinho, abriu o baú de trinta por trinta. Deu-lhe uma tremedeira. Ouro e brilhantes. Joias de grande valia. Bendita fosse a velha sovina em vida, mas, dadivosa após a morte!

Robertão largou tesoura e trena. Encostou a máquina de costura. O sítio adquirido era um sonho antigo. Mudou-se para lá, de mala e cuia, com a mulher, a filha e dois netos órfãos de pai. Dois anos e duzentos dias depois, no contado, eis que numa tarde de verão, Robertão estava na rede, no alpendre da casa, tentando tomar uma fresca. Galinhas ciscavam por perto. De repente, seus olhos faiscaram e nevoaram. Faiscaram e nevoaram. Morreu.

Disse, depois, Maricotinha, serviçal da casa, que um vulto de mortalha azul-claro e véu azul-escuro esteve ao lado do alfaiate já morto. Só ela viu.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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