quarta-feira, 30 de junho de 2021

A OLIMPÍADA DA COVID-19


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Está prestes a começar o maior evento esportivo do planeta, os Jogos Olímpicos ou Olimpíadas, cuja origem remonta a antiga Hélade, conjunto das cidades-estado da Grécia antiga. Os jogos atraiam peregrinos de várias localidades para a cidade de Olímpia, onde eram realizadas as competições, cujo primeiro vencedor, em uma prova de corrida, foi o atleta Corobeu, em 776 a.C.

Após séculos de esquecimento, a congregação das práticas esportivas em um festival portentoso só voltou a acontecer em 1896, na cidade de Atenas, por ação de um pedagogo e aristocrata suíço, o Barão de Coubertin, considerado o fundador da versão moderna dos Jogos Olímpicos.

Segundo o seu idealizador, o conclave serviria para promover a paz entre as nações, mediante a chama do espírito esportivo de competição digna, independentemente do resultado. Os Estados Unidos lideram o ranking com 2.522 medalhas, sendo 1.022 de ouro; já o Brasil ocupa a 36ª posição, refletindo, provavelmente, a falta de incentivos à prática desportiva, exceto o futebol.

Enquanto os nossos atletas finalizam os preparativos para tentar, em Tóquio, melhorar a nossa classificação olímpica, o Brasil já alcançou o desconfortável 2º lugar de mortalidade global causada pela Covid-19. Esta semana foi superada a constrangedora marca dos quinhentos mil óbitos, índice conseguido, até então, apenas pelos estadunidenses, nesta iníqua Olimpíada promovida pelo SARS-Cov-2.

A adoção, por parte do novo mandatário americano, de uma política de enfrentamento da virose, embasada na Ciência, que prioriza vacinação em massa da população, tem proporcionado, além da redução drástica do número de infectados e de casos fatais, o retorno ao convívio comunitário de várias localidades.

Em contraste, a maioria dos hospitais brasileiros registram, ainda, números elevados de pacientes, frequentemente jovens e gravemente acometidos pelo novo coronavírus, reflexo da morosidade da vacinação, incentivada pela política negacionista e ao evidente desleixo das medidas de proteção.

Não nos valeu, por certo, a experiência imposta por este impiedoso inimigo invisível que continua sendo, visivelmente, desrespeitado por muitos, em detrimento das preciosas baixas registradas nos nosocômios Brasil afora. Os olhos da imaginação contemplam, fielmente, o quadro em que se debuxam, indeléveis, os lances da luta extênua empreendida pelos intimoratos profissionais de saúde.

Espera-se que este prélio sirva de inspiração para que a energia gasta na conturbada disputa política que se avizinha, seja canalizada para salvar vidas e não para angariar votos. Caso contrário, subiremos, em breve, ao ponto mais alto do pódio de vítimas da Covid-19.

Finalizo, parafraseando Pierre Lecomte du Noüy, em “A Dignidade Humana”: Ao nascer eras tu a chorar, mas riamos nós à tua volta. Conduz a tua vida de tal maneira que, quando vieres a morrer, sejas tu a sorrir e todos nós a chorar.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 19 de junho de 2021

AMOR QUE NÃO FINDA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Aquela tarde de março valia como a noite que não pôde ser celebrada. Ali estavam eles – ele e ela, as vozes trêmulas pela emoção. Se uma lágrima rolou dos olhos dela, duas ou mais rolaram dos olhos dele. Eram passados sessenta e dois anos. O mundo girou muitas vezes desde então.

Pessoas encontraram-se e desencontraram-se. Foram felizes ou infelizes. Prosperaram ou fracassaram. Muitas já tinham morrido. Muitas, aliás, que eles conheceram. Algumas impediram que eles caminhassem juntos. Ao longo daquele tempo decorrido, muitas flores desabrocharam. Algumas enfeitaram casas e igrejas, adornaram cabelos e lapelas. Todas se despetalaram ou murcharam. Todas feneceram. As flores não eram eternas. Que pena! Mas, o amor, mesmo sangrando por mãos alheias, mesmo impedido de fazer dois corações baterem no mesmo compasso, podia, sim, ser para sempre.

O amor é vaso santo. É vaso inquebrantável quando um desce ao sacrário da alma do outro, e vice-versa, e ali encontram o bálsamo da vida a dois. Vidas que se partilham. Que se completam, embora cada um andando com os próprios pés. Afinal, o amor é livre como o voo de um colibri ou de uma borboleta diáfana, em manhã de céu azul ou em tarde crepuscular.

Foi uma amiga de infância dela, quem o reencontrou primeiro. Igualmente numa tarde, mas de novembro. O calor do verão nordestino, que sempre engolia uma fatia da primavera e outra do outono, conduziu a amiga a uma sorveteria. Um sorvete de tapioca. Sorveteria nova, de fino gosto.

Ele a veio servir. E a reconheceu. “Você não é Doriana, amiga de Silvinha de “seu” Durval Pinheiro, lá do Gravatá? Se não for, desculpe-me. Parece muito, apesar de tantos anos passados”. Depois do falatório, ela o reconheceu. “Ah, João de Dona Raimunda, da Rua do Alecrim! Estou lhe reconhecendo. Quantos anos, meu Deus!”.

Foi o bastante. Ele sentou-se na mesa ao lado da mais nova freguesa. Tempos, tempos, tempos. O tempo não envelhece. As pessoas, sim. Estavam para ser completados sessenta e dois anos. Removeram as cinzas do tempo passado, foram ao mais longínquo que puderam e que precisaram ir.

Gravatá era uma cidade pequena. Cresceu um pouco. O tempo... Os preconceitos. Os modos absurdos de vida. As divisões sociais e familiares. Gente da Praça da Matriz. Gente das ruas próximas. Gente dos subúrbios enlameados e empoeirados. Pessoas diferentes, que deveriam ser iguais no ser, mas não eram no ter.

Aquele reencontro foi uma dádiva de Deus. Ela prometeu que haveria outros. O marido a esperava. A conterrânea deixou a saudade revolvida. Deixou um fio de esperança. Deu notícias da amiga de outrora. Animadoras.

Silvinha, a amiga da nova freguesa tinha saído de Gravatá, depois que ele, desencantado, saíra. Na manhã chuvosa de sábado, ele tomou o rumo da capital, para nunca mais voltar ao seu berço. Dentro de um ano, mandou buscar a mãe e a irmã. O pai tinha ganhado o mundo, anos antes, para as terras do Sul e para nunca mais voltar. Mandou umas poucas cartas, algum dinheiro, e nada mais.

Desde pequeno, ele ajudou a mãe no sustento da casa. Primeiro, como engraxate. A seguir, ajudando a carregar e descarregar fardos e sacos no armazém de “seu” Lió, que foi o seu segundo pai. Inclusive, foi quem lhe deu as condições de, aos dezenove anos, procurar meios de vida na capital.

Ele soube fazer-se na vida, apesar dos muitos sacrifícios enfrentados. Assentou parça na Polícia Militar. Concluiu o curso científico. Passou noites em claro. Aos vinte e um anos foi o sexto colocado no vestibular para Administração. O sonho de sua vida. Administrar um negócio próprio. Mas, ao formar-se, prestou concurso público. Aposentou-se como fiscal de rendas.

Resolveu, então, investir em um negócio, enfrentando nova vida, após os sessenta anos. Idade com saúde nunca foi empecilho para trabalhar, para ousar. Entrou no ramo de panificação. Chegou a possuir quatro delas. Uma rede conhecida e respeitada. Depois, uma rede de sorveterias. A melhor da capital.

Atiçado por muitas mulheres ao longo do tempo, o seu coração manteve-se inconquistado. Quantas vozes se ergueram para indagar: “João não namora? Não costuma estar com mulheres? Tem tantas pretendentes... Moças formadas das melhores famílias”. Ele desconversa. Não dava ouvidos. Coração amarrado no passado. Um nó górdio o prendia. Nó jamais desatado.

Pois, enfim, naquela tarde de novembro, a freguesa, conhecida dos tempos idos, deu-lhe um sopro de alento. Os dois, ele e ela, João e Silvinha, mantiveram-se solteiros. Ela também se mudou para a capital e, logo depois, tomou o rumo de Curitiba, onde morava uma tia.

Tornou-se advogada e juíza de direito. Desembargadora. Aposentou-se na compulsória. Voltou para a capital do Estado natal, onde moravam as duas irmãs viúvas. Ao menos, estaria perto da família, passada a desventura do amor impedido.

Dra. Sílvia de Arruda Pinheiro. De volta ao sol nordestino. Fazia um ano que ela tinha regressado. Morava bem pertinho das irmãs, que estavam bem de saúde. Ela, pela mesma forma. As irmãs mantinham a amizade com a amiga de infância, Doriana.

Doriana fez-se o elo entre dois pontos que se perderam nos desvãos da vida. E ali estavam eles, João e Silvinha. Sessenta e dois anos depois, ele aos 81, e ela aos 79 anos. Os pais dela impediram o namoro, iniciado na escola. Uma filha de Durval Pinheiro, o maior fazendeiro de Gravatá e das redondezas, quatro vezes prefeito e duas vezes deputado, andar de namoro com um pé-rapado, um joão-ninguém, que não tinha onde cair morto, carregador de fardos e sacos num armazém? Nem pensar.

Não adiantou choro, nem emagrecimento a olhos vistos, nem mesmo a proposta do avô, “seu” Olívio Pinheiro, que amava por demais a neta Silvinha: “Por que não adjutorar o moço a ter um meio de vida decente, para ver se ele prospera e, daí, casar com a menina?”. Resposta: “Não. Com todo respeito, meu pai. Já fiz isso com um aparentado e deu certo. Mas, com esse aí, não enxergo sinal de que possa prosperar”.

Namoro desfeito, sob pena de surra e sabia-se mais o quê. Tinham sido oito meses de namoro às escondidas. Bilhetes, sorrisos e encontros furtivos. Mas, dois corações balançados um pelo outro, prometendo amor eterno.

Naquela tarde de março, João e Silvinha se reencontraram. Viram-se um ao outro como nos tempos de namoro, em Gravatá. Ele, o rapaz mais bonito que ela já tinha visto. O de olhar mais terno que uma moça poderia conhecer e almejar. Ela, a mesma flor em permanente estado de desabrochamento. Em cada olho azul, uma estrela cintilante.

Era mesmo assim que eles se viam naquela tarde, após seis décadas. Guardaram-se um para o outro. E ali estavam, lacrimejantes. Livres. Ninguém mais a lhes impedir. Teriam dias, semanas, meses, anos, para viver o que não lhes deixaram viver por toda uma vida. Partilharam um sorvete. Misto de morango e amora. Sessenta e dois anos depois...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

EXISTEM BENEFÍCIOS DA VITAMINA D NA COVID-19?


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A segunda onda da Covid-19 continua atormentando a rotina da maioria dos hospitais, que tiveram que se estruturar para atender à demanda crescente de pacientes graves. O receio de contrair a doença, aliada à inexistência de tratamento específico, tem levado à procura de medicamentos ou suplementos que aumentem a imunidade.

Um dos produtos mais propagados em mídias sociais, na atualidade, é a Vitamina D, cujo fascínio pelo uso, com a pretensa esperança de proteção contra infecção respiratória, já ocorre há quase cem anos. Tem sido postulado que níveis séricos ideais de 25-hidroxivitamina D podem conferir propriedades imunomoduladoras e anti-inflamatórias, beneficiando, assim, os infectados pelo novo coronavírus. Esta suposição é verdadeira? Como se trata de produto natural, facilmente disponível, o seu uso carece de prescrição médica?

Enquanto existem evidências de benefícios da função da Vitamina D, no sistema esquelético, a ação protetora no trato respiratório continua controversa. Vale ressaltar, ainda que, apesar de alguns estudos observacionais terem sinalizados para evolução desfavorável de portadores de doenças agudas graves e com níveis baixos de metabólitos da Vitamina D, até o momento, o benefício da sua suplementação, quando avaliada mediante estudos robustos não se concretizou.

A pandemia vigente tem despertado na comunidade científica interesse renovado em   avaliar as ações desta vitamina, no combate à replicação viral e no controle da hiperinflamação, que têm um papel importante na patogênese desta trágica virose.

Estudo recentemente publicado na conceituada revista científica JAMA, demonstrou em 4.368 voluntários, com níveis baixos de Vitamina D (< 40mg/dL), que a suplementação não protege contra a virose, sugerindo, todavia, que pode prevenir formas mais graves da doença.

Por outro lado, o mesmo periódico divulgou um estudo brasileiro que, também, não evidenciou benefícios na utilização de superdosagem da referida vitamina, no tratamento de pacientes internados, com formas moderadas e graves da Covid-19.

Dessa forma, devemos manter o nível sanguíneo de Vitamina D acima de 30mg/dL, ingerindo, adequadamente, carnes, leguminosas, leite e derivados e frutos do mar, procurando, também, manter exposição solar periódica. Por outro lado, a suplementação quando indicada deve ter orientação médica.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

JULHO

                                            Padre José Lima Santana
  

 

José Lima Santana*

 

 

Julho. Sétimo mês do ano, no calendário gregoriano, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582, substituindo o calendário juliano implantado por Júlio César em 46 a.C. Tempo houve, em Sergipe, que o mês de julho era o mais chuvoso do inverno. Há tempos, contudo, o inverno se tornou a estação do ano mais destrambelhada.

Nem sempre chove, em julho, como em anos pretéritos. Aliás, o mundo parece estar destrambelhado em muitas situações. Destrambelhadas também muitas cabeças. Que o diga o escritor e acadêmico Jorge Carvalho do Nascimento, intelectual que, ultimamente, tem deixado de prender-se tão somente às amarras do academicismo, onde tem pontuado com obras referenciais, para ingressar no mundo da ficção. Antes, em crônicas e contos, com “O Carvalho” (2020), e, agora, na novela “Julho”.

Não sou crítico literário, mas um mero leitor, diga-se, de sofrível entendimento. Por isso, quero desdiagnosticar (um desaforado neologismo, talvez) que o novo livro de Jorge Carvalho se situe no gênero da novela policial. Para mim, não. É bem mais do que isso. Novela existencial. Ao avesso.

Historicamente, julho é um mês emblemático. Data magna da Bahia (terra natal de Jorge, embora sergipano desde criança), dia 2. Data maior dos Estados Unidos, dia 4. Data do início da Revolta Constitucionalista de São Paulo, dia 9. Queda da Bastilha, na França, dia 14, aliás, o dia em que o pai de Vera Lúcia, personagem/narradora, completaria 90 anos. Julho, o mês das tragédias na família: “Apenas três anos depois da morte da minha mãe, o mês de julho me aprontou outra tragédia” (p. 75).

“Julho” levou-me, inicialmente, como professor de Direito, a rememorar as aulas de Direito Penal ministradas pela mestra Jussara Fernandes Leal, em 1978. Levou-me a Tobias Barreto e ao seu “Menores e Loucos”. Levou-me ao hebreu-italiano Cesare Lombroso e ao seu “L’Uomo Delinquente”. Levou-me a tantos pensamentos, a tantos devaneios. É no que dá ser desprovido de maior acuidade, para compreender uma trama bem urdida, como essa de JCN.

A novela jorgiana começa com uma pergunta: “Quem matou meu pai?”. E termina com a mesma indagação, acrescida do artigo definido “o”. O autor penetra na mente esquizofrênica de Vera Lúcia, para trazer a lume as digressões produzidas pelas anomalias que sobre ela se abatem.

Mas, nesse penetrar, Jorge Carvalho não se fixou no ambiente policial, nas perseguições, nas linhas investigativas, nos entremeios do suspense. Mergulhou em aspectos antropológicos, sociológicos, psicológicos e psiquiátricos. Nos tormentos de uma mente degradada. Os assassinatos do pai e da irmã. Uma tragédia digna de Sófocles, como se lê em Antígona, a filha do rei Édipo, guardadas as diferentes situações. Tragédia urbana, familiar. Edipiana.

A trama faz-me, sim, evocar a obra tobiática: “Como é fácil, pois, de compreender, os progressos da psiquiatria, cultivada por tantos espíritos superiores, principalmente na parte que designamos por psicologia criminal, são incontestáveis” (Menores e Loucos, in Estudos de Direito II. Rio de Janeiro: Editora Record/Governo de Sergipe, 1991, p. 63). Embora a polícia na trama seja incompetente, como rumina Vera Lúcia.

Ela fora tocada por uma noite trevosa, advinda das profundezas do mar salgado, como cantou Hesíodo? “... os que nasceram da Terra e do Céu constelado, / os da Noite trevosa, os que o salgado Mar criou” (Teogonia – A Origem dos Deuses. Trad. Jaa Torrano. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 111). O mar salgado da saúde mental a desfazer-se.

Apropriando-se da mente da personagem central, decomposta pela esquizofrenia, o autor não deixa escapar o desenrolar de fatos importantes da vida brasileira, como a repressão política no tempo do regime militar. O delegado Benigno Augusto (nome sugestivo!), que investigou os assassinatos do pai e da irmã de Vera Lúcia, era amigo pessoal do famigerado delegado paulista Sérgio Fernando Paranhos Fleury (p. 85), um destacado torturador que no fim da década de 1960 atuava no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo, e esteve à frente do grupo paramilitar conhecido como Esquadrão da Morte.

Preso como homicida e traficante, o governo correu em seu auxílio, com a edição da “Lei Fleury”, como ficou conhecida a mudança na legislação processual penal, em 1973, para livrar o delegado/bandido da prisão. O autor também toca na ferida da questão racial tão em voga, sempre. Até a Ku Klux Kan está presente (p. 39). E a questão do armamento das pessoas (p. 55), que por aqui povoa muitas cabeças.

A perversão mental pode acometer qualquer um ou qualquer uma. Vera Lúcia é orientada por vozes de espíritos. “A minha sensação é a de ser vítima de uma espécie de espionagem espiritual” (p. 97). Perseguida, como sói ocorrer com os esquizofrênicos, visitada pelo “Capa”, na clínica onde a internaram.

“Capa” é personagem “real”. Várias vezes, lá estava ele: “Na Clínica São Thiago, frequentemente eu recebia a visita do Capa” (p. 95). A mente doentia sendo minada cada vez mais: “É grande o sofrimento interior. Eu vivo perseguida, sofro ataques mentais, sou torturada internamente” (p. 97).

Verinha, como a mãe a chamava, jamais poderia ser comparada à cunhada de Licurgo, que, grávida, mas tendo o marido, rei, falecido, e o filho no ventre a ser, mais tarde, proclamado rei, propôs ao cunhado matar o filho: “mataria no ventre o nascituro, com a condição de ser ela sua esposa e ele rei de Esparta. Licurgo sentiu desprezo por seu caráter” (Plutarco. Vidas. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 14).

Não se pode fazer tal comparação. A cunhada de Licurgo não tinha caráter, o poder a seduzia. Vera Lúcia está inserida na classificação das doenças mentais aprovada pelo V Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, de 1946, inserida, segundo constatação médica, nas Esquizofrenias, que foram avaliadas de três tipos (Delton Croce e Delton C. Júnior. Manual de Medicina Legal. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 513).

A personagem central de “Julho” gozaria de “uma psicose endógena, caracterizada essencialmente por um enfraquecimento psíquico especial, de marcha progressiva, sobrevindo em geral na adolescência, sem nunca comprometer a saúde física do doente”, como Hélio Gomes descreve as esquizofrenias (Medicina Legal. 30 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 157).

Nesse caso, o professor Henrique Roxo, citado por Gomes, “sintetiza a sintomatologia dos esquizofrênicos numa tríade essencial: perda da afetividade, perda da iniciativa e associação extravagante de ideias” (Op. Cit. p. 158). Essa tríade se nota no desenrolar da trama. Jorge Carvalho tinha, com “O Carvalho”, fincado um pé na ficção. Agora, com “Julho”, fincou os dois pés, para não mais sair.

Considero que o novo livro de Jorge Carvalho atende ao que diz o Abade Dinouart, em “A Arte de Calar”: “O primeiro grau da sabedoria é saber calar; o segundo, saber falar pouco e moderar-se no discurso; o terceiro é saber falar muito sem falar mal e sem falar demais” (Trad. Luís Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 11). O autor disse o necessário e o disse muito bem.

Finalizo estas parcas notas evocando Hipócrates, citado por Sêneca, em “Sobre a brevidade da vida”: “A vida é breve, longa a arte” (Trad. William Li. São Paulo: Nova Alexandria, 1993, p. 25). É preciso ler “Julho”. Recomendo. Vida longa à arte jorgiana de bem escrever!

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

INDENIZAÇÃO PELO USO DE MEDICAMENTO INEFICAZ


  

 

José Anselmo de Oliveira*

 

 

Nos Estados Unidos teve início uma enxurrada de processos de indenização contra a administração pública em alguns Estados pela prescrição e distribuição de hidroxicloroquina para pacientes com suspeitas de COVID-19 e depois vieram a falecer. As ações estão sendo movidas pelos familiares nos tribunais norte-americanos. E, já existem decisões favoráveis.

Enquanto isso, no Brasil, mesmo com quase meio milhão de mortos por COVID-19, ainda existem autoridades governamentais que insistem no discurso de “tratamento precoce” e de “negação da pandemia”. E o pior, com alguns profissionais de saúde que mesmo sabendo das pesquisas que apontam para a ineficácia, insistem no uso de medicações que podem agravar o quadro do doente e até mesmo levar à morte.

É uma verdadeira ofensa à ciência e um aplauso à barbárie e a ignorância. O mais grave ainda é que representantes da classe médica que devem preservar os valores éticos e fiscalizar o exercício correto da profissão, ultrapassaram os limites entre o ético e os interesses pessoais, políticos e partidários.

A questão da saúde passou a ser vista como uma disputa entre direita e esquerda. Sendo a esquerda todas as pessoas que não concordem com o pensamento do governo de plantão. Estamos vivendo um tempo de protagonismo da mentira fabricada e distribuída pelas redes sociais, pelo ataque sórdido e irresponsável contra a reputação das pessoas que ousam pensar diferente da narrativa fabricada no “shadow cabinet”, ou seja, “gabinete das sombras” como sugerido ao governo por um médico em reunião com o mandatário brasileiro.

Ameaças aos poderes constituídos e clara e manifesta propaganda por solução autoritária e com uso da força militar é um crime contra a democracia e contra o estado democrático de direito, e repercutem nas decisões das políticas públicas de saúde de enfrentamento a pandemia do coronavírus.

Por isso que nos preocupa que o poder judiciário venha a ser sufocado com ações cíveis pedindo reparação pela morte ou danos sofridos em razão dos equívocos e das opções que as autoridades públicas fizeram para enfrentar a doença, especialmente com relação ao uso indiscriminado através do kit-covid de medicamentos comprovadamente ineficazes e perigosos para a saúde das pessoas.

O controle do uso adequado e seguro de medicamentos é tarefa do estado, indelegável a quem quer que seja, muito menos a “grupos” formados por pessoas que não têm a qualificação de servidores públicos, portanto, inalcançáveis pela responsabilidade civil e criminal.

Tudo isso pode ser evitado com transparência e decisões fundamentadas na ciência, e não em “fake news” ou narrativas de grupos extremistas e obscurantistas. Precisamos da clareza e do equilíbrio de pessoas preocupadas com o bem estar de todos, sem qualquer tipo de discriminação de natureza política, de cor, de sexo, de origem ou de qualquer outra forma como assegura a Constituição Federal do Brasil.

 

 

*Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Professor universitário, escritor e membro da Academia Sergipana de Letras.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

COM ÁGUA NO PESCOÇO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Quem mora no litoral pode apreciar, diariamente, o airoso ritual das marés, provocado pelo avançar e recuar das águas do oceano. Este ciclo, de preamar (maré alta) e de baixa-mar (maré baixa), que se repete a cada seis horas, decorre das forças gravitacionais exercidas pelo Sol e pela Lua, sobre a Terra.

Conversando com o colega e amigo, José Augusto, surfista nas horas vagas, cada vez mais raras, graças ao seu dedicado trabalho no enfrentamento da pandemia, ele ressaltou, ainda, dois outros fenômenos, observados nos oceanos: as ondas, que constituem deslocamentos causados pelo vento, soprando sobre a superfície das águas e o backwash, que acontece quando as ondas, que batem na praia, retornam em direção ao fundo do mar, se chocando com aquelas que estão quebrando, gerando, por conseguinte, uma espécie de explosão, jogando água para o alto e, normalmente, desequilibrando o infortunado surfista que está na onda. Muitos desavisados já perderam bens e, até a própria vida, por desrespeitar estas leis da Natureza.

Estamos vivenciando a segunda onda da Covid-19, com características bem diferentes da primeira, provavelmente, porque a cepa brasileira do SARS-Cov-2, também conhecida como “P1”, de maior poder de transmissão e agressividade, é a predominante em nosso País.

Tem sido observado que os pacientes acometidos por esta nova variante, exibem evolução mais rápida para formas graves de insuficiência respiratória aguda, necessitando de cuidados intensivos e, muitas vezes, de intubação endotraqueal para assistência ventilatória mecânica.

Fica fácil entender que, doentes mais graves, são mais sucessíveis a complicações de diversas grandezas, implicando em maior tempo de permanência nas unidades de terapia intensiva, tornando mais difícil a gestão destes escassos leitos e, sobrecarregando ainda mais, os já exauridos profissionais de saúde, que são partícipes da imperiosa transformação de enfermarias e outras unidades dos hospitais em verdadeiras UTIs.

A Pandemia não segue, rigorosamente, o fenômeno das marés e, ao contrário delas, não fica restrita aos habitantes de cidades costeiras. Portanto, estamos na “preamar” da Covid-19 há algum tempo e, com o aumento de casos registrados nas últimas semanas, a maioria dos hospitais da rede privada estão com “água no pescoço”, no enfrentamento dessa virose, enquanto os da rede pública, já estão com “água no queixo”.

Assim, um inesperado “backwash”, como o causado, recentemente, pelo incêndio em uma unidade hospitalar municipal de Aracaju, que presta atendimentos de urgência a usuários do SUS de todo estado, pode ter consequências desastrosas para a população. Se tudo isso não bastasse, especialistas temem pelo iminente afogamento, causado pela aproximação de uma terceira onda, suscitada pela morosa campanha de vacinação, pelo frágil controle de fronteiras que já possibilitou a entrada de viajantes contaminados com a temível “cepa indiana”, e pelo não cumprimento, por muitos, das eficazes normas de segurança.

Finalizo, evocando o provérbio, de Romem Barleta: “Deus perdoa sempre, o homem perdoa às vezes e a natureza, nunca”, para enfatizar que o infausto novo coronavírus merece ser respeitado, tanto por parte das autoridades governamentais, como pela população.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

SEGREDO DE CONFESSIONÁRIO


  

 

José Lima Santana*

 

 

O padre Toucinho apeou do cavalo ruço. A duras penas. Pesadão, meio alquebrado, puxou a montaria até a direção de uns meninos e pediu que um deles tirasse a sela e soltasse o animal. Enxugou o rosto com um lenço. Tirou o chapéu e dirigiu-se à capela cheia de fiéis.

Um homem calvo, arrastando uma perna veio ao seu encontro. “Boa tarde, padre Gregório. Sua bênção!”. Era Bernardo Guedes, antigo tropeiro, líder da comunidade. “Deus lhe abençoe, meu filho. Tem batizados ou somente a santa missa?”, indagou o padre Gregório Canuto Toucinho de Alencastro e Gueiros, português que veio ao Brasil em 1916, para nunca mais voltar à terra natal. “Portugal é uma maravilha, mas o Brasil é o lugar da minha obra. Daqui não saio”, dizia o velho servidor de Cristo.

Havia, sim, batizados. Cinco deles. Dona Mocinha já tinha preparado tudo nos conformes. Os documentos, as anotações, as espórtulas de quem podia doar e os elementos necessários ao rito sacramental. Batizados após a missa. Uma mocinha queria confessar-se.

Por trás do pequeno presbitério, havia uma minúscula sacristia. Ali, o padre atendia confissões, que eram raras nas comunidades rurais. Confissão atendida, absolvição proferida, penitência dada. O velho padre ficou matutando por uns instantes. O pecado confessado poderia gerar graves consequências.

Segredo de confessionário era indevassável. Mas, ele teria que tomar uma providência antes que a situação se agravasse. “Dai-me tirocínio, Senhor! Dai-me sabedoria e discernimento, para evitar uma tragédia sem quebrar o segredo da confissão!”.

A celebração do santo sacrifício da missa transcorreu o mais acelerado possível. Teria os batizados. O jantar. O pernoite. E a providência a ser tomada quanto ao que foi confessado pela mocinha. Ali estava um padre das antigas, que não media sacrifício para atender as comunidades a si confiadas.

A Paróquia era grande em extensão. Quase mil quilômetros quadrados. Vinte e sete comunidades rurais. A cidade não era grande, nem populosa. A maior parte da população se esparramava pelos povoados. No inverno ou nas trovoadas, o atendimento aos fiéis era drasticamente reduzido. Estradas intransitáveis, riachos transbordantes. O tempo das chuvas era o tempo da riqueza no sertão, mas dificultava o cultivo das almas. “Deus põe e Deus dispõe”, vivia a repetir.

O padre Toucinho quase não comeu. Um pedaço de beiju misturado, massa com tapioca, mergulhado no leite. Um ovo cozido. Meia xícara de café sem açúcar. Dona Mocinha estranhou. O padre era um bom garfo. Estava de fastio. Biqueiro. No alpendre avarandado, tirou um dedo de prosa com dois ou três. Recolheu-se logo depois.

A casa de Bernardo era confortável. Homem de posses. Tinha rompido veredas e picadas nos tempos de tropeiro, conduzindo tropas de burros carregados dos mais diversos materiais e mantimentos. Por algumas vezes, foi atormentado por cangaceiros e volantes. Todos queriam as mesmas coisas: informações, mantimentos e dinheiro.

Informações, mesmo que as tivesse, não as dava. Mantinha a boca fechada. Era o sinal do bom viver naqueles tempos, naqueles confins. Mantimentos, até que ele os arranjava, um pouco. Dinheiro, ele nunca o tinha salvo algum para as compras, mas muito bem escondido, no enchimento de alguma cangalha. “Sou um homem pobre, sofrendo por esses ermos, meu capitão”. Deixavam-no seguir.

Só uma vez, um sargento de nome Aniceto, quis dar nele de pano de sabre, porque queria informação sobre os cangaceiros. “Sou um homem do meu trabalho e da minha casa. Respeitado pelas volantes que topei por aí. Nunca fui maltratado e espero não ser agora. A não ser que o senhor queira se entender com o coronel Afonso Guedes, meu tio”.

O sargento tinha fama de brabo. Pior do que os cangaceiros em suas perversidades. Afonso Guedes era o comandante da Polícia. O sargento sabia que ele era daquelas bandas. Amofinou.

Dormir? O padre demorou muito a conseguir fechar os olhos. Um segredo terrível que ele tinha que guardar. Porém, assim que fosse descoberto, e, por certo, o seria, ele não sabia a tragédia que poderia suceder. Aquele pedaço de chão seria virado e revirado. Mortes. De um pouco tempo para cá, as duas famílias das redondezas, que, no passado, se mataram à vontade, tinham serenado os ânimos. Ele foi o intermediário para a pacificação. Teria que agir novamente.

Todavia, era preciso uma iluminação para evitar o pior. Nem ao senhor bispo ele poderia expor o teor da confissão. Poderia até inventar uma história para ver se sua excelência reverendíssima lhe daria uma luz. O medo era de que o segredo oriundo do pecado confessado viesse à tona o mais rápido possível.

Manhã a prometer sol abrasador. Após um café ligeiro, o padre retornou à cidade. Andava sozinho. “Ando bem acompanhado por três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. Foi matutando pelo caminho. Aqui e acolá, um transeunte lhe cumprimentava e lhe tomava a bênção. Os miolos ferviam. A miséria estava para acontecer. A explosão da violência voltaria às duas famílias. Agora, bem mais ampliada.

O pecado confessado pela mocinha envolvia outras pessoas. Só ela tivera a coragem e a dignidade de confessá-lo. Descoberto o problema, seria um clamor. Ir à capital, consultar o bispo, era o que tinha em mente, embora soubesse que poderia ser tarde demais. A qualquer hora, a garapa azedaria.

Na chegada à cidade, outro problema para resolver, grave, mas, aparentemente, não tanto. O telhado da cúpula da velha igreja ameaçava cair. Uma travessa de madeira estalou e selou na noite anterior. As mulheres que rezavam o terço se assustaram e chamaram o sacristão, que também era carpinteiro. “Serviço feio. Pode desabar a qualquer momento”. Logo cedo, o sacristão e alguns voluntários colocaram umas escoras. Um paliativo. Bem. Que Deus segurasse o telhado da cúpula. Primeiro, seria atinar para o caso que a mocinha depositara no confessionário.

Às dez horas, como de costume, o padre Toucinho fez suas orações. Dobrou os joelhos diante do Santíssimo. Implorou ao Pai. Faria penitência e jejum em favor do sossego naquela comunidade. A situação teria que se arranjar. O diabo andava rondando por ali, levando pessoas a fazerem terríveis travessuras. Tentando-as, fazendo-as cair no precipício de pecados mortais.

Mas, o sangue de Jesus tinha poder. “Senhor Deus, se preciso for, tomai a minha vida, mas fazei que as vidas daquelas pessoas encontrem o caminho da correção, do modo que for possível”. Ofereceu-se em holocausto. Um santo homem.

P.S.: Termino aqui. Afinal, um segredo de confissão não pode ser desvendado. O Direito Canônico não o permite. Eu bem sei da curiosidade dos leitores. Mas, calma! Eu os peguei. Até mais ver.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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