sábado, 25 de setembro de 2021

AS DOENÇAS CARDIOVASCULARES E A 2ª GUERRA MUNDIAL


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

No início do século XX, as doenças cardiovasculares, notadamente o Derrame e o Infarto do Miocárdio, eram responsáveis por menos de 10% de todas as causas de morte nos EUA, passando para 25% nos anos 40 e, aproximadamente, 40%, na década de 60. A partir de 1980, com a implementação mais rigorosa de políticas públicas de controle dos fatores de risco cardiovasculares, passou-se a registrar declínios significativos, da mortalidade por tais doenças, atingindo o patamar de, aproximadamente 32%, segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS.

O Brasil acompanhava, atônito, os desdobramentos de um dos maiores massacres da humanidade, a 2ª Guerra Mundial, sem tomar uma posição declarada até que, no dia 15 de agosto de 1942, o submarino alemão U-507, comandado pelo capitão de fragata, Harro Schacht, torpedeou, no litoral sergipano, as embarcações Baependi (270 mortos) e Araraquara (131 mortos); no dia seguinte, foi a vez do Aníbal Benévolo (150 mortos). No dia 17 de agosto, outros dois navios foram atacados, Itagiba e Arará, na costa da Bahia, vitimando mais 56 pessoas.

Naquela época, a precariedade das estradas e a escassez de linhas férreas faziam da cabotagem um eficaz meio de transporte de mercadorias e de passageiros. Portanto, a significativa morte de civis, provocada pelos covardes ataques nazistas, causou uma grande comoção nacional, forçando o então presidente, Getúlio Vargas, a declarar guerra contra os países do Eixo – grupo formado por Alemanha, Itália e Japão.

Afinal, o que as doenças cardiovasculares têm a ver com a nefasta Guerra? O grupo dos Aliados, ao qual o Brasil aderiu, tinha como principais líderes, Winston Churchill (Primeiro-Ministro da Inglaterra), Franklin Roosevelt (Presidente dos EUA), Charles De Gaulle (Líder da Resistência Francesa) e Josef Stalin (Líder da União Soviética). Logo após o término do conflito, em abril de 1945, o Presidente Roosevelt, tabagista e hipertenso, morre, aos 63 anos, vítima de AVC.

No dia do fatídico evento, a sua pressão arterial estava absurdamente elevada (300/190 mmHg), para o conhecimento atual! Todavia, naquela época, era desconhecido o risco causado pela hipertensão arterial, como pode ser constatado pela análise do prontuário do presidente, que evidenciava níveis tensionais persistentemente acima de 140/100 mmHg e era interpretado, pelo seu médico particular, como “normal para um homem da sua idade”.

Impulsionado pela morte de seu antecessor e à luz do crescimento epidêmico das doenças cardiovasculares, o Presidente Truman cria, um junho de 1948 o National Heart Institute e nomeia o prestigiado professor da Harvard, Dr. Paul Dudley White, como Chefe do Conselho Consultivo Nacional do Coração. Dr. White, juntamente com outros especialistas em Cardiologia e em Saúde Pública, escolheram, engenhosamente, a cidade de Framingham, localizada próximo a Boston, para sediar aquele que viria a ser um dos mais importantes estudos de Medicina preventiva, “The Framingham Heart Study”, com o objetivo de estudar as doenças cardiovasculares. Os investigadores recrutaram, inicialmente, 5.209 homens e mulheres sadios que foram seguidos, rigorosamente, tanto do ponto de vista clínico como de exames complementares. Após um ano de relativo descrédito, assumiu a diretoria do programa, o jovem Dr. Thomas Dawber que conseguiu, com empatia e credibilidade, consolidar o estudo, que continua até os dias atuais, já na terceira geração de participantes.

Em 1961, Dr. William Kannel, Dr. Dawber e col., publicaram, no prestigiado periódico Annals of Internal Medicine, o artigo “Fatores de Risco para o Desenvolvimento da Doença Arterial Coronária:  O Estudo de Framingham”. Neste artigo, os autores chamaram a atenção, pela primeira vez, para a associação causal entre a Hipertensão Arterial, a Dislipidemia, o Tabagismo, a Diabetes, a Obesidade, o Sedentarismo, o envelhecimento e o antecedente familiar com as doenças cardiovasculares.

Além de incontáveis produções científicas, as investigações advindas do referido Estudo, geraram, também, um escore de predição do risco cardiovascular, amplamente utilizado. O legado do Framingham Heart Study continua com pesquisas de ponta em genômica, em validação de novos biomarcadores e ferramentas de imagem e em investigação de causas familiares das doenças cardiovasculares.

Finalizo, parafraseando o Prof. Dr. Paul D. White: “Uma caminhada vigorosa de cinco milhas (aproximadamente 8km), fará mais benefício para um adulto infeliz, porém, saudável, do que qualquer terapia medicamentosa e psicológica disponível”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

ORGULHO DE SER UFS


  

 

José Lima Santana*

 

 

As Universidades surgiram para congregar e difundir conhecimentos nas mais diversas áreas das atividades intelectuais inerentes aos seres humanos. Isso ocorre em quaisquer partes do mundo, desde o surgimento das primeiras instituições assim denominadas.

A Universidade Federal de Sergipe, instalada em 1968, após muitas discussões e não poucos esforços envidados, tem crescido. Da primeira gestão à atual, muitos foram os problemas enfrentados e, mais ainda, muitos foram os avanços empreendidos. Todos os reitores que passaram pela UFS deram a sua parcela de contribuição para o aprimoramento da nossa única Universidade pública sergipana.

Fui aluno da UFS (1977-1980), no momento em que estava em construção o Campus que lhe serve de sede, em São Cristóvão. Aliás, sou da última turma de Direito que se formou sem pisar os pés no citado Campus. A minha turma é, inteiramente, da velha Faculdade de Direito, na Av. Ivo do Prado, onde está assentado o CULTART.

Reconheço, como dito acima, os esforços de todos os reitores e de suas respectivas equipes de gestão, no crescimento da UFS. Todavia, o meu conhecimento pessoal se acentua a partir do momento em que a ela retornei, dessa vez na qualidade de professor, no fim de 1996, primeiro como professor substituto e, depois, como professor efetivo, nomeado em setembro de 1997, após lograr o primeiro lugar no concurso para professor de Introdução ao Estudo do Direito.

Ingressei na UFS, como professor, na gestão do reitor José Fernandes de Lima. Era um tempo de grandes dificuldades, especialmente no que dizia respeito à alocação de recursos financeiros por parte do Ministério da Educação. Lima passou por poucas e boas, como ele mesmo registrou no livro “Pensar e Fazer a Universidade Pública / UFS 1996-2004”, de cujo lançamento virtual eu participei, como convidado do autor, na função de debatedor, pois, como disse o professor Lima na dedicatória do exemplar que me ofertou, fui testemunha da sua “jornada universitária”, como reitor. Na gestão de Lima, eleito e reeleito, a UFS conheceu significativos avanços, no aspecto físico e humano.

Após Lima, o seu vice-reitor Josué Modesto dos Passos Subrinho elegeu-se e reelegeu-se reitor. Na sua gestão, chegou a vez do REUNI, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, instituído pelo Governo Federal através do Decreto 6 096, de 24 de abril de 2007. Apresentava-se como uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), do Ministério da Educação, lançado no mesmo período, com o objetivo de duplicar a oferta de vagas no ensino superior no Brasil. Alguns membros das Universidades federais, entre professores e técnicos, posicionaram-se contra o REUNI, por questões ideológicas ou de outros entendimentos. Porém, o REUNI avançou. A UFS ganhou o interior. Hoje, além dos Campi de São Cristóvão e Aracaju (Saúde) a UFS encontra-se assentada em Laranjeiras, Itabaiana, Lagarto (com diversos cursos na área da Saúde, o Campus consolidado entre Josué e Antoniolli) e Nossa Senhora da Glória, o último Campus a ser instalado, ainda provisoriamente, na gestão anterior à atual. A interiorização da UFS trouxe um ganho enorme ao ensino superior sergipano.

A partir do REUNI, a UFS pôde crescer em instalações, cursos, corpos docente, técnico-administrativo e discente. Crescendo no seu corpo docente, teve a oportunidade de expandir os programas de extensão e de pesquisa. Com mais professores, o campo para essas duas formas de ação que, ao lado do ensino, compõem o tripé da educação superior, abriu-se em maiores possibilidades de mais pesquisas e de mais publicações qualificadas.

Participei ativamente da gestão anterior à atual, ou seja, da profícua gestão de Angelo Roberto Antoniolli, vice-reitor de Josué, que se elegeu e se reelegeu reitor. Participei dos seus oito anos de gestão. Primeiro, como coordenador de relações institucionais (primeiro quadriênio) e, depois, como assessor (segundo quadriênio). Nesse lapso de tempo, além da minha docência normal, mesmo no período do doutorado, cursado na própria UFS, quando eu tinha direito legal de afastar-me da sala de aula, mas não o fiz, exerci a presidência da Comissão de Ética, a coordenação do EFISCON (Escritório de Fiscalização dos Contratos de Terceirização), a direção eventual do RESUN (Restaurante Universitário) e fiz parte do Comitê de Integridade, além de participar de algumas Comissões ou Grupos de Trabalho. Assim, pude ver de perto o arrojado desenvolvimento da UFS nos últimos oito anos (novembro de 2012 a novembro de 2020).

A UFS vem mostrando a sua cara, aliás, a sua boa cara, galgando posições interessantes no cenário nacional. Agora, vem de ser distinguida como a quinta melhor Universidade brasileira, no Top 5 do Times Higher Education 2022. A UFS ficou em quinto lugar no Brasil, mas em terceiro entre as universidades públicas e em primeiro no Nordeste. Não é pouca coisa, para uma Universidade jovem e pequena, no contexto de todas as Universidades públicas e privadas do País.

A mais nova conquista da UFS é resultado de um esforço continuado, especialmente levado a efeito nas últimas gestões. Todos nós que integramos a UFS, como professores, técnicos-administrativos e alunos, esperamos que a UFS possa agigantar-se ainda mais. A atual gestão, encabeçada pelo reitor Valter Joviniano Santana Filho, deve procurar os meios para continuar elevando a UFS a patamares ainda mais expressivos. Há amplas condições para isso, a partir da capacidade gestora do reitor, que já vinha sendo experimentado, satisfatoriamente, na gestão anterior, daí ter sido escolhido pelo ex-reitor para concorrer ao cargo máximo da UFS.

Que a UFS se aprimore ainda mais. Que cresça. Que continue prestando relevantes serviços à sociedade sergipana. Que possa se expandir. Que possa nos fazer sentir ainda mais orgulhosos. E que muitas outras distinções e conquistas estejam a caminho.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 19 de setembro de 2021

ENTRE A FRIGIDEIRA E O FOGO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Tanto no Brasil, como mundo à fora, os profissionais de saúde e os pacientes têm enfrentado uma pandemia e uma infodemia – a primeira causada pelo impiedoso SARS-Cov-2 e suas temíveis variantes e a segunda pela desinformação das desagradáveis fake news que inundam, diuturnamente, as mídias sociais.

Seguramente, milhares de pessoas foram expostas a extenso material enganoso, publicado no “WhatsApp Journal of Medicine, alegando que a Covid-19 é uma farsa ou que os especialistas estão exagerando sobre a sua real gravidade e a extensão e velocidade de propagação das variantes do novo coronavírus, que as máscaras são ineficazes e, mais recentemente, que as vacinas causam doença, alteram o DNA do receptor ou veiculam dispositivos de rastreamento. Portanto, acreditar em tais afirmações está associado a uma menor chance de envolvimento em programas preventivos e de vacinação.

Vale ressaltar que, apesar de o risco de alastramento da variante Delta, avaliado pelo parâmetro epidemiológico, R0 seja de seis (uma pessoa infectada pelo vírus, transmite a doença para outras seis), o ZAP0 (analogia que o autor faz ao popular aplicativo de telefonia celular) é incalculavelmente superior, já que as fakes podem ser transmitidas, em segundos, para grupos compostos por números ilimitados de participantes.

Com o intuito de otimizar o enfrentamento da infodemia, foi publicado, recentemente, no prestigiado periódico médico, New England Journal of Medicine (doi: 10.1056/NEJMp2103798) uma inovadora proposta de aplicação do modelo epidemiológico, para combater a desinformação, baseado em três elementos: vigilância em tempo real, diagnóstico preciso do problema e resposta rápida.

Segundo os autores, para que a cascata de uma desinformação seja detida, um sensível sistema de vigilância deve ser acionado antes que o ponto de inflexão da curva atinja proporções virais. O passo seguinte é a identificação precisa do tipo de fake, realizada por um centro especializado como o Serviço de Inteligência Epidemiológica do CDC (órgão regulatório americano, equivalente à nossa ANVISA).

Dependendo do contexto do problema, os infodemiologistas podem utilizar dados oriundos de fontes confiáveis ou links de órgãos regulatórios ou de Universidades que tenham expertise no assunto. As respostas devem ser rápidas, concisas, em linguagem coloquial, repassadas com empatia, mediante as mídias sociais, entrevistas etc. Infelizmente, ainda não dispomos, em nosso meio, de tal centro de apoio.

Segundo um provérbio chinês, há três coisas na vida que jamais voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Nesta mesma toada, um ZAP maldoso, intempestivamente lançado, dificilmente passará despercebido, mesmo que se tente corrigir o erro. Portanto, antes de repassar uma informação, cheque a credibilidade de sua origem e pondere a sua utilidade. Na dúvida, para evitar a contaminação de outros celulares, use uma vacina eficaz e em dose única: DELETE!

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 18 de setembro de 2021

BURACO DO MEIO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Buraco do Meio completaria seu trigésimo nono aniversário de emancipação política, separado de Monte Belo. Brigas políticas não foram poucas desde os tempos do velho coronel Jacinto Barbosa, adversário do major Belisário da Gameleira, um e outro contumazes ladrões e assassinos, desde que eram crianças de peito, como diziam os mais antigos do lugar.

O prefeito de Buraco do Meio era Messias de Jacinto que, se não era ladrão, e disso ninguém lhe acusava, ao menos formalmente, era metido a brabo, admirador dos modos do delegado Zeca da Palmatória, torturador e desfazedor de lares. Havia também suspeitas de ter o prefeito Messias mandado apagar um crítico severo de sua conduta política, vereador da Baixa Florida, povoado populoso, talvez o mais populoso do Município. Provas, porém, não havia. O adversário-mor do prefeito Messias era Luiz de Maninho, ex-prefeito, que tinha sido preso a mando do juiz anterior, mancomunado com os partidários do prefeito Messias, como alardeavam os contrários. Preso sob acusações diversas, todas relativas a aquisições suspeitas de imóveis, acabou solto por decisão do Tribunal. Os seus cupinchas fizeram alardes, soltaram foguetes, caíram na bebedeira, coisa, aliás, do gosto do ex-prefeito livre do xadrez. Já os seguidores inebriados do prefeito Messias de Jacinto não se conformaram com a soltura de Luiz de Maninho.

Estava para chegar a eleição municipal de 2012. Messias de Jacinto tentaria a reeleição, rodeado por fanáticos que quase o divinizavam. Tinha ele, pois, que buscar meios de alcançar a maioria dos eleitores de Buraco do Meio, alguns dos quais, que tinham lhe apoiado, já debandavam.

Luiz de Maninho deveria bater-se nas urnas contra o prefeito que, de forma atabalhoada, resolveu cometer uma série de acusações contra o juiz do momento, Dr. Alípio de Mendonça, acusando-o de lhe desfavorecer e aos seus apaniguados em várias ações judiciais, sentenciando-os de maneira a saltar para fora dos comandos normativos.

Do outro lado, os vereadores Rildo Conselheiro e Rodolfo Rocha, opositores do prefeito, buscaram as raias da Justiça, para detonar o prefeito, numa CPI aprovada pela maioria dos edis, inclusive com o apoio do vereador situacionista Otílio Amazonas, que, bêbado, assinou o pedido da CPI. Atacado pelo prefeito e pelos seus seguidores, sentiu-se ofendido e não retirou a assinatura. Daí resultou a busca da Justiça para fazer valer a instalação da CPI. Um balaio de gatos era o que era a composição dos mandatários do povo buraquense, uma excrescência inominada.

O juiz de Monte Belo, de cuja comarca Buraco do Meio era termo, do alto de sua vistosa careca, mais luzidia do que panela de alumínio devidamente areada, fez rolar por terra as derradeiras pretensões judiciais do prefeito Messias de Jacinto. Foi um Deus-nos-acuda. O prefeito cuspiu fogo e arrotou brasa. Pelos cantos, desceu o pau no juiz careca. Depois, passou a falar cobras e lagartos do magistrado a plenos pulmões e no desencampado. Falava ao Deus-dará. E para fazer frente ao juiz, convocou uma “apoteose popular”, como ele mesmo designou, para o dia da emancipação política de Buraco do Meio. Mandou vir gente de todos os povoados.

A massa popular haveria de cercar o prédio do Fórum, que era anexo à Câmara Municipal. Cercariam Fórum e Parlamento local. Ao amanhecer o dia a cidade estava tomada por partidários de Messias de Jacinto. A cada cinquenta metros, postava-se alguém vendendo churrasquinhos de gato com cerveja ou capetinha. Em eventos que tais, o que não faltavam mesmo eram capetas. De vários tipos.

A cidade agitou-se. Não poucas pessoas temeram o pior: a invasão do Fórum e da Câmara Municipal, embora fechados estivessem os dois prédios contíguos, por força do feriado municipal, data-mor da comunidade. Ainda assim, o temor era acentuado. Nos dias anteriores, falou-se até em bombas. Ou seja, atentados. Faixas proclamavam a “santidade” de Messias de Jacinto. Outras desfaziam na Justiça: “Abaixo a Justiça”. “Justiça pra ladrão, aqui tem vez não”. “Pra a gente ser feliz, tem que mudar o juiz”.

No fim da manhã, o prefeito Messias de Jacinto compareceu ao local das manifestações. Foram distribuídos “santinhos” seus com acalentados dizeres: “Messias de novo, nos braços do povo”. Campanha antecipada? Previa-se mais buscas pelas raias da Justiça. Ah, o discurso do prefeito foi mítico! “Vou pedir ao Tribunal a remoção desse juiz. Ou o Tribunal muda o juiz, ou a gente muda o Tribunal”. Delírio. A massa convocada urrava: “Apoiado! Apoiado! Apoiado!”.

Messias de Jacinto, mais messiânico do que o verdadeiro Messias, o enviado de Deus, acelerou: “Buraco do Meio não vai se render à ditadura desse juiz. Aqui tem homem. Aqui tem macho, que também tem aquilo roxo”. Uma senhora de dentadura postiça viu a perereca saltar-lhe da boca, ao dar um grito, em apoio do celerado discurso. Manequinha de Safira de Tonho Mijão deu um pinote da gota serena que lhe causou uma distensão na perna esquerda. “Aqui, em Buraco do Meio, quem manda sou eu e o povo!”. Àquela altura, Mocinha de Damião Cego já tinha vendido todas as cocadas do tabuleiro, sem dar-se conta de que não tinha recebido nem o valor da metade das cocadas vendidas. Mas, ela estava ali em nome do prefeito Messias, macho que também tinha aquilo roxo. Como um outro prefeito do passado.

À tarde, a aglomeração foi-se desfazendo, cada qual retornando ao seu canto. Não houve confusões. Enfim, tudo transcorreu na paz que nem todos esperavam. Os pombos voltaram a sobrevoar a praça onde se dera a manifestação. Pousaram. Cataram restos. Encheram a pança. Era o que restava daquela “festa”.

No dia seguinte, as ruas de Buraco do Meio amanheceram tranquilas. O normal vai-e-vem das pessoas. As mesmas fofocas. O mesmo disse-me-disse. E o careca continuou juiz. “Até quando?”, perguntava Marquinhos das Gameleiras, líder do prefeito, na Câmara Municipal, que, após comer, no almoço, um bom sarapatel apimentado, com feijão mulatinho e farofa de banana-da-terra, sentado na fresca da calçada, despachou dois arrotos e outras coisas menos dizíveis. “Buraco do Meio espera por novidades, até que alguém bufe na farofa”, disse o líder. Ufa!

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 12 de setembro de 2021

PEDRA AZUL


  

 

José Lima Santana*

 

 

“Descendo ribeira/cruz na mão/vencendo tudo/até fio do cão”. Era a moda de cantoria de Zabelê, primo meu do lado de mãe minha. Franzino qual graveto de tísico arvoredo. No verão de 37, verãozão de seca com cara de herege, nem calango era de conseguir pra assar no espeto. Fome da moléstia! Muita gente bateu caçoleta. Velho e menino, então!

Levas de gente miúda andejou por empoeirados caminhos, como almas em alargadas penitências. No ceuzão azul de cegar, urubus voavam e revoavam, sabedores por atrevido instinto que mais hora, menos hora, um bicho haveria de cair e acabar em seus carnicentos bicos.

Primo Zabelê desceu leito seco rio Comprido, travessou serras e brejos sem pingo d’água. Botou-se pros sertões de Minas e, adepois, pros sertões de Goiás. Bom manejo de armas sempre teve. Deu de meter-se em empreitadas de políticos. De arma na mão, até fio do cão ele cortava.

Mira de revólver ou rifle de papo-amarelo, era com ele mesmo. “Moita que tem preá, pode ter cobra também”. Maneiroso ele era. Parecido com jaguatirica. Dela, partes parecia ter. No faro e na tocaia. Bicho do mato. Embrutecido no Paraíba. Desmiolado no Goiás. Arranchou família, mulher e três filhos na fazenda Pilões. Era dono um senhor major de graça Pedro Lopes, mistura de lacraia com gangurgito. Raça ruim tava ali. Mas, de afeições caiu por Zabelê primo meu.

Filhos Zabelê primo meu eram Manuquinha, 15 anos, Maria Clara, 12 anos, e o mais velho, cara do pai, cagado e cuspido, Vardumiru, 18 anos. Só que era fornido de corpo, não franzino como Zabelê. Puxou pro lado da mãe, Quitéria, família de gente avolumada. Nossa gente amorenada de olho claro, azul ou verde. Dizem mistura de índio com holandês. Disso não dou prova. É dizer do povo. Mas, que holandês andou por nossas bandas, isso lá andou. Botaram eles pra correr, os antigos, muito antigos. Coisa de séculos pra trás.

Pois Vardumiru caiu nas graças da filha do major Pedro Lopes. Mocinha assanhada, endoidecida pra fazer perdição do moço. É que mulher quando destonteia é como formiga que cria asa. Voa longe. A tal voou pros braços de Vardumiru. Deu de embuchar. Major pai dela assuntou e desassuntou.

Filha embuchada por retirante. Desfeita e desonra. Matar Vardumiru e dar chá de espirradeira pra filha desmiolada tomar e tanger fora o bebê em formação. Matar Vardumiru tinha que matar também Zabelê e sua raça. Difícil era não. Jagunçada muita a serviço.

Major, porém, voltou a assuntar e desassuntar. Chamou às falas primo Zabelê. Entendimento fizeram. Vardumiru se arrancharia de genro. Planos major tinha. Primeira filha a meter-se de casamento. Festa graúda fez. Abalou os sertões dos Buritis de Cima e dos Grotões. Burguesia matuta vindo de todo lado. Sorte grande do Vardumiru. Assim parecia.

Nascido neto major Pedro Lopes e Zabelê. Plano major era fazer filha viúva, para novo casamento arranjar. Mulher viúva nos sertões era de melhor aproveitamento do que moça destampada, menino tirado do bucho por força de espirradeira, abortiva planta. Major queria meter Vardumiru perversa empreitada. Matar primo distante seu, desafeto na política, cidade próxima.

Moleque ainda com ceroulas cheirando mijo, feito já 19, era de tirocínio aguçado. Sabia rastejar e andar. Andar e correr, nunca para trás. Gente nossa sempre assim. Dá pulos como cabritos. Desconhece cercas e valados. Espreita de onça e bote de cascavel. Matando desafeto do sogro major, se tal conseguisse dar conta, Vardumiru seria morto jagunçada de lá muita e perversa. Esse plano major coisa ruim.

Vardumiru contou ao pai plano do sogro. Juntos, assuntaram. Deram de arranjar as coisas. Madrugadinha, adepois de uma bebedeira do major com amigos, aniversário da patroa lá dele, Zabelê desarranchou família com nora e neto. A moça não refugou. Compreendeu intenção malvadosa do pai. Sol nascido, longe estavam.

Cabroeira do major deu no encalço. Primo Zabelê tinha reza forte do Padim Ciço do Juazeiro, seu padrinho verdadeiro de pia batismal. Encantaram-se pras vistas da cabroeira. Seguiram rumo sertões adentro. Major Pedro Lopes notícia nunca que teve. Parentes família nossa tinham se espalhado por muitos sertões. Encontro se deu. Estava salva família Zabelê. Boa trincheira encontrou. Primo Terto de Agostinho, homem de brios e patente, acolheu e amoitou.

Tempos correram. Era já 46. Política mudou. Presidente ditador caiu. Ditadores quaisquer caem. Duram não pra sempre. Partido major Pedro Lopes desbancado. Primo dele adversário cobrou caro desavenças passadas. Major arruinado. Deu-se, então, inusitado acontecimento. Vardumiru arranchado em pequena solta de gado, que trabalhador era, viu, fim de tarde, olhos encandearem-se. Luz azul facheando. Turmalina. Preciosa gema. Tamanho descabido. Uma riqueza.

De fugido, a homem de posses muitas. Vardumiru tava rico. Muito rico. Fosse Deus louvado! Êh, mundão que voltas dá! Major Pedro Lopes viu-se desapacatado. Fazenda indo leilão na Justiça. Dívidas no Banco. Primo adversário botando quente pra riba dele, na política. Amigos afastando-se. Cabroeira buscando novos patrões. Ruína.

Domingo. Sol a pino das 11 horas. Carro americano de potente motor desroncou frente casa-grande fazenda major Pedro Lopes. Vardumiru, mulher e quatro filhos. “Seu major, com sua licença, vim amostrar seus netos e sua filha, para tomar bênção. Também peço bênção sua”.

Águas passadas. Major Pedro Lopes conteve não lágrimas. Dona Felismina, sua mulher, teve tonturas de quase desmaio. Família era obra de Deus.

Vardumiru assumiu lugar major Pedro Lopes na política. Tornou-se prefeito e deputado. Cresceu na política. Zabelê primo meu tornou pra Paraíba. Comprou fazenda e botou largo comércio. Tudo arranjo de Vardumiru.

Pedra azul. Turmalina. Preciosa gema.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 5 de setembro de 2021

O DIA DEPOIS DE AMANHÃ


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A redução do número de internações e de mortes por Covid-19 registradas, ultimamente, na maioria das cidades brasileiras, refletem, seguramente, o avanço da vacinação pelo País. Estes fatos sinalizam para a dissipação da segunda onda e trazem a esperança de que o retorno à vida pré-pandêmica pode estar iminente.

Todavia, este sonho pode ser postergado, graças ao acesso diferencial às vacinas e ao grande absenteísmo para a segunda dose, tornando a imunização incompleta e às insistentes ações de negacionistas que pregam, levianamente, a ineficácia e os efeitos colaterais das vacinas disponíveis em nosso meio.

Na esteira de tal intelecção, não podem ser desprezados os efeitos de variantes emergentes, como a Delta e os do não cumprimento das medidas protetoras, por parcela significativa da população.

A volatilidade dos imprevisíveis atributos demonstrados, até então, pelo SARS-Cov-2, merecem respeito para que não tenhamos um inerente futuro problemático. Este ambiente de incertezas nos faz lembrar da apocalíptica ficção científica, imortalizada no filme de Roland Emmerich, estrelado por Dennis Quaid, “O Dia Depois de Amanhã”, o qual retrata os efeitos catastróficos do aquecimento e esfriamento global, provocados pelo desrespeito à natureza.

Seguindo esta linha de raciocínio foi recentemente publicado, no conceituado periódico JAMA (doi:10.1001/jama.2021.11042), um intrigante Ponto de Vista, no qual os autores descrevem quatro possíveis cenários para a resolução da pandemia – erradicação, eliminação, coabitação e deflagração.

Por definição, para que uma doença seja considerada erradicada, a sua prevalência global deve ser reduzida a zero. Para isso acontecer, é necessário que seja atingida uma imunidade de rebanho eficaz e duradoura, que impedisse a transmissão e reinfecção da virose e, ainda, conferisse proteção contra variantes presentes e futuras. Nenhum país conseguiu atingir esta quase utópica situação.

A curto prazo, a eliminação (redução para zero da prevalência regional) do novo coronavírus constitui uma meta bem mais realista, especialmente se houver reforço após uma eficiente cobertura vacinal da população. Este status está sendo atingido por Israel, Vietnã e Brunei, graças aos bem-sucedidos programas de imunização utilizados e, por Nova Zelândia, onde estão sendo cumpridas, desde o princípio da pandemia, as eficazes medidas de uso de máscara, higienização das mãos, distanciamento físico e evitar aglomerações.

Segundo os autores, no cenário da coabitação, atingido pelos Estados Unidos, a China e o Reino Unido, a cobertura vacinal seria suficiente para prevenir as manifestações mais graves da doença, interromper a cadeia de transmissão viral e combater a maioria das variantes emergentes. Todavia, infecções podem ocorrer, principalmente entre os não vacinados, os imunodeprimidos e os que receberam vacinas de eficácia limitada.

Por outro lado, a Índia, outras partes do Sudeste asiático e a maior parte da América do Sul, encontram-se em estado de conflagração, caracterizado por um nível moderado de endemicidade da Covid-19, já que grandes segmentos da população não estão vacinados ou não completaram a imunização, favorecendo à circulação do SARS-Cov-2 e lhe dando oportunidade de adaptação mediante o surgimento de novas variantes.

Dialogando, recentemente, com a eminente cardiologista carioca, Profª. Gláucia Moraes, que demonstrava preocupação com o crescente número de internações no Rio de Janeiro, onde a maioria dos casos decorrem da temível variante Delta, oriunda da Índia.

Portanto, o final desse “jogo” depende mais das escolhas coletivas de enfrentamento da virose do que da performance do vírus. Finalizo, parafraseando o genial Charlie Chaplin: “Lute com determinação, abrace a vida com paixão, perca com classe e vença com ousadia, porque a vida é muito bela para ser insignificante”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

UM CURIÓ EM CANTORIA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Moleque fui de não curta esperteza. Cacei preás aos seis anos. Eram muitos, nas macambiras. Cobra aparecia, nalguma vez. Aprendi com avô meu a fugar de seus botes. Livros de cordel avó minha os lia. Aventuras teimavam fazer morada minha cabeça inocente. Voar num pavão misterioso pras terras do sem fim.

Avó minha, Dona Antonieta, deu de me ensinar lições de ABC. Juntei letras, formei palavras, soletrei velho livro de figurinhas. Pouco aprendi, mas aprendi. Sei ler uma carta e rabiscar outra. Pouco é, bem sei, mas tem serventia. Aprendi muito cedo dar valor natureza. Conheço ervas e árvores pelos nomes. Quem não conhece nomes de árvores, diz pé-de-pau. Triste é desconhecer o que é seu.

Mãe minha morreu quando vim ao mundo. Parteira de parcos recursos. Culpa não teve. Mãe minha botou muito sangue. Morreu da cor de vela, branca, sem tintura nas veias. Pai meu arribou, casou de novo. Fiquei com avós meus e tia minha. Pai não conheci. Terras do Sul o prenderam. Nunca retornou. Abandonado fui, mas boa criação tive.

“Seu” Dioclécio, avô meu, homem de tutano nos ossos. Vaqueiro das antigas, de gibão e perneiras. Cachorro Veludo, preto como a noite, companheiro na caatinga. Boi nunca escapou garras avô meu. Com ele, aprendi ser vaqueiro. A caçar aprendi. A respeitar natureza. A nadar riacho Mulungu e açude fazenda “seu” Amintas. Açude fundo, traiçoeiro. Atravessei vezes muitas. Boas traíras para pesca. E vistosos carás.

Tia minha, Maria Célia, casou com homem da cidade. Eu tinha dez anos. Chorei. Era a mãe que eu tive. Órfão fiquei mais uma vez. Avós meus, porto meu seguro. Olho duro avô meu deu lições, evitou castigos. Nunca levei surras. Avó minha fazia vontades minhas com doces e mel de açúcar desmanchado. Melhor família ninguém teve, ordem de pobre. A respeitar aprendi. E ai! se não aprendesse.

Corpo criei aos doze anos. “Um homenzinho”, dizia avó minha. Nessa idade, já vaqueiro, tangendo gado, apartando bezerros, curando bicheiras. Ligeiro no lombo cavalo meu, presente tia minha, costureira. Família pobre sem dever nada, sem submissão. Honestidade aprendi. “Viver no que é seu e do que é seu”, dizia “seu” Dioclécio.

Vinte e um anos eu tenho. Pé-de-meia formando. Pequena criação de miunças. Tomarei lugar avô meu, na lida do campo. Vista dele anuviando com o sol-a-sol. Dia há de assim chegar pra mim.

Bebida de álcool na boca nunca botei. Segui lição avô meu. Lição de boa prática. Amigos poucos tenho. De conversa, de corridas de mourão. Jamais de bebedeira. Sou esquisito, dizem. Balanço a cabeça, nada digo. Tem uma casa de mulheres onde vou vez em quando. Doença do mundo peguei. Domingos da farmácia me favoreceu com injeção doída e comprimidos duas cores. Beberagens também tomei. Sarei.

“Seu” Armandinho, amigo avô meu, morador duas léguas adiante, seleiro dos melhores da região, dele comprei sela nova. Preço bom. Filha dele trouxe caneco d’água sem qu’eu pedisse. Passou olhos n’eu. Estremeci. Saí com coração agoniado. Moça cabelos de fogo. Bonitinha... Não, não, bem bonita. Bonitona, sim.

Cabeça minha ferve. Devo voltar casa “seu” Armandinho? Fazer o quê? Dizer o quê? Ah, vou dizer que gostei muito sela nova comprada! Terei outro caneco d’água? Tomara... Coração meu vai dar pulos. Vou dar na vista que estou roendo unha? Sei não...

Manhã de domingo. Descanso. Levo miunças minhas para pastar beira do riacho. Comida boa, verde ainda, água encostada. Ingazeira cheia de ingás. Frutos caem n’água. Peixes engordam. Boas águas riacho Mulungu. Camarões também tem. Pescados e assados palha bananeira, ali mesmo. Gostosura, se bem temperados.

Avó minha especial cozinheira, comida sertaneja. Como seria mãe minha? Igual mãe dela, vó minha, Dona Antonieta? Boa cozinheira? Teria me amado, quanto? Queria ter mãe minha, queria colo seu, na meninice. Queria crescer mirando seus olhos, neles me vendo. Não tive. Tia minha e avós meus me deram o que puderam dar. Sou grato. E acho que sou feliz.

Mandacarus enfeitados flores vermelhas. Sinal chuva próxima. Três anos sem seca. Uma bênção. Mais chuva está vindo. Festa no sertão. Aqui porta do sertão. Sertão mesmo dez léguas para cima. Tudo se esturrica. Riachos e aguadas secam. Aqui, seca de menor monta. Riacho Mulungu nunca seca. Vira filete d’água, mas corre.

Olho em volta. Sucupiras soltam flor arroxeada. Bom sinal. Nem sei nome filha “seu” Armandinho. Terá ele outras filhas? E filhos? Não sei. Terá ele gosto, se eu gostar filha sua? Ou não dará aprovação? A moça é quem mais deve contar. Terá já um homem no seu bem-querer? Aquele olhar e o quase sorriso pareciam dizer que não. Como saber?

Tiro roupa. Fico nuzinho em pelo. Por aqui não há passar viv’alma. É manhã, domingo. Riacho faz poço debaixo ingazeiras. Água fria. Água boa. Filha seleiro dará boa companheira. Devo voltar lá. Puxar conversa com pai. Ela vai aparecer. Vai me olhar daquele jeito. Criar coragem vou.

Almoço de bom cozido de cabrito. Gosto muito. Selo cavalo meu. Tô de arribada. Levo brida para conserto. Tenho motivo pra ir casa “seu” Armandinho. Sol baixando. Devem ser umas quatro horas. Sei pelo tamanho da réstia. Passarinhos muitos cantando galhos de árvores. Natureza precisa cuidados. Salvar matas e bicharada.

Casa “seu” Armandinho à vista. Rede vazia balançando telheiro. Dono da casa estará? Filha cabelos de fogo também? Apeio cavalo alazão. Bem escovado, melhor selado. Presente tia minha. Amarro cabresto cavalo aroeira de larga copa. Santo remédio, aroeira, para febre e outros males.

Achego. Gritar “ô de casa”, vou. Porém, nem precisa. Na sala de visita, moça cabelos de fogo sentada ao lado homem bem vestido. Conversa e risadas. Murcho. Murcho como caatinga na seca. Que dizer, não sei.

Desconcertado fico. Estranha dor de barriga. Bucho embrulhado. Pareço querer vomitar. Pernas tremendo. Cabeça sem tino. Moça bonita namorado tem. Dele raiva deverei ter? E dela? Mal não me fizeram. Apenas, tarde cheguei. Olhar dela, outro dia, não era promessa. Não era nada. Deixo brida para conserto? Vou embora calado, sofrido?

Filha “seu” Armandinho levanta ao me ver. “Entre, moço! Pai chega já. Vou buscar caneco d’água. Este, irmão meu, Zeca, mora na cidade”. Tiro chapéu de couro. Enxugo testa. Pernas tremem mais. Adepois, bebo caneco d’água fria de pote. Alma sossegada. Rosinha, esse seu nome, me atravessa com o olhar. Incendeio. No juazeiro, um curió desanda em cantoria.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...