domingo, 20 de fevereiro de 2022

BALA PERDIDA


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Não causa mais surpresa a notícia de que algum inocente foi vítima de uma “bala perdida”. Esta expressão retrata uma ocorrência típica das grandes metrópoles, quando uma determinada pessoa é atingida por um projétil de arma de fogo, cuja procedência é desconhecida. O cineasta Guillaume Pierret explorou este tema, na produção de suspense e ação francesa Balle Perdue (Bala Perdida), estrelado por Alban Lenoir e distribuído pela Netflix, em 2020.

A variante Ômicron do SARS-Cov-2 tem protagonizado mais uma onda da virose que vem nos afligindo desde março de 2020. Ao contrário das anteriores, a referida cepa se disseminou, rapidamente, pelo território brasileiro seguindo um padrão semelhante ao apresentado na Europa e nos Estados Unidos, retratando o seu alto poder de alastramento.

A imunidade populacional adquirida por meio da vacinação e/ou por infecções prévias causada pelo novo coronavírus tem proporcionado, na maioria dos casos, manifestações leves da doença, geralmente relatadas como dor de garganta, coriza e congestão nasal. Porém, tem ocorrido muita internação por casos graves, sobretudo em idosos, naqueles não imunizados ou com o esquema vacinal incompleto, nos portadores de comorbidades e nos imunossuprimidos.

No atual tsunami de infecções pela Covid-19, é comum o relato, “não sei como contraí esta doença?”, sobretudo quando se trata de um infortunado que tem evitado aglomerações, conforme recomendado pelas autoridades sanitárias. Esta perplexidade se assemelha a uma verdadeira “bala perdida”, porque, muitas vezes, não é possível identificar quando e como a infecção ocorreu, levando-se em consideração a alta transmissibilidade da cepa dominante, o que tem resultado em grande quantidade de pessoas contaminadas, muitas das quais assintomáticas.

Vale ressaltar, ainda, que a nefasta Ômicron tem acometido mais as crianças que as variantes antecessoras. Este fato tem sido preocupante, pela possibilidade de evolução para a Síndrome Gripal Aguda Grave, podendo acarretar maior demanda por leitos hospitalares pediátricos, o que certamente deve ser evitado, uma vez que a população pediátrica (0 a 12 anos) no Brasil representa, cerca de 35.5 milhões de pequenos brasileiros, segundo dados recentes do IBGE, conforme adverte a cardiopediatra, Dra. Geodete Batista. Ainda, segundo a conceituada profissional, dispomos, somente, de cerca de 83.000 leitos hospitalares (incluindo os leitos de terapia intensiva), sendo apenas 43% destes ofertados pelo SUS.

Todos estes argumentos reforçam a importância crucial da vacinação da população em massa, incluindo as crianças, para mitigar os efeitos da Covid-19, dificultar a circulação do vírus e o surgimento de novas linhagens. As campanhas favoráveis à imunização, veiculadas pela maioria das sociedades de especialidades brasileiras, deveriam, também, ser abraçadas pelo governo federal, para o benefício de toda a comunidade.

Finalizo, citando o icônico primeiro ministro britânico, Winston Churchill: “Cidadãos saudáveis são o maior bem que um país pode ter”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

ALMOÇO NO SÁBADO


 

ALMOÇO NO SÁBADO

 

 

José Lima Santana*

 

 

O veículo, um Siena vermelho, acabara de parar em frente ao prédio de quatro andares. Um Uber. Não se passaram três minutos e a passageira desceu. Vestia um conjunto de calças e blusa na cor azul claro. Ao motorista, ela pareceu um misto de elegância e desolação. Os grandes olhos cor de mel pareciam mortiços.

Tocaram para a Av. Beira Mar, ou melhor, Paulo Barreto. Não demorou quase nada e o carro estava na Av. Jorge Amado. Entrou numa rua perpendicular. Desceu em direção ao rio. Estacionou à direita, na esquina com a avenida. A passageira pagou e desceu. O porteiro do prédio chique já a conhecia. “Bom dia, Dona Ana”. Ela respondeu, chamando-o pelo nome.

Décimo primeiro andar. Tocou a campainha. “Bom dia, Dona Ana Maria”, disse a empregada. “Bom dia, Augusta”. Na sala ampla estava a amiga. Esta não se deu conta de levantar-se. Saudou a amiga, degustando alguns morangos. Ofereceu. “Não, obrigada”. Esmeralda olhou Ana Maria da cabeça aos pés. “Você está bem nesse conjunto. Parece bem mais nova. Certas roupas enganam muito”. A convidada suspirou levemente.

Eram amigas há décadas. A anfitriã não era má pessoa. Só tinha a língua destrambelhada. Falava pelos cotovelos, o que devia e, muito mais, o que não devia. Às vezes, a recém-chegada pensava porque a suportava, porque ainda mantinha a sua amizade. Não encontrava uma resposta convincente. Era do seu feitio mostrar-se serena, embora sofresse um pouco com o seu jeito de ser.

“Você quer logo uma cervejinha sem álcool”? Ana Maria recusou. Por ora, precisava dizer umas coisas à amiga anfitriã. A conversa ácida da última quarta-feira ficara entalada na garganta. “Esmeralda, você precisa me ouvir, como eu lhe ouvi na nossa última conversa. Aliás, nossa, não. Sua conversa. Afinal, você falou sozinha”.

A anfitriã levantou-se e escancarou uma janela, que estava entreaberta. Voltou-se a sentar. “Deixe o seu papo para depois do almoço. Eu tenho uma coisa muito importante para lhe contar. Assunto da ordem do dia, que, certamente, você ignora”.

E começou o tiroteio de um lado só.

Amiga, você não queira saber em que embeleco o meu irmão Antônio Alcides se meteu. Você bem conhece o cunhado de sua prima Alice, o tal de Mário Ferreira. O irmão, marido de Alice, é um homem de bem. Mas, esse Mário é um velhaco. Pois meu irmão caiu na besteira de emprestar um dinheiro a ele, trezentos mil reais. Recebeu um cheque sem fundos.

Ele estava acostumado a emprestar quantias pequenas, vinte, trinta mil, coisas do tipo. Agora, não. Foram trezentos. O velhaco do Mário Ferreira parecia ir bem no comércio dele. Ampliou a loja no Centro, abriu loja no Shopping e, agora, está para fechar as portas. Dizem que ele tem grana graúda entocada.

Vai dar o golpe da falência para cima dos credores. E nessa, meu irmão está ferrado. Quem tem um cheque sem fundos, nada tem. Se fosse no tempo do papai, lá no interior, um bom delegado de polícia, daqueles militares de antigamente que não davam sopa a ninguém, já dava uma surra de cipó caboclo e queria o dinheiro na mão. Agora não é assim. Tudo tem que ir à Justiça. Uma Justiça morosa, que, às vezes, só sabe dar direitos a quem não tem.

Meu irmão falou com um sobrinho da mulher dele, que se formou em Direito há dois anos, para entrar com uma ação judicial. Eu, assim que soube do caso, não por ele, mas por Jorginho, meu filho, liguei para Alcides e disse que ele deve procurar um advogado tarimbado, como o Dr. Netônio Machado.

Nem sei se ele voltou a advogar depois que se aposentou como desembargador. Antes de entrar para a magistratura, ele foi advogado da nossa família, de papai e de todos nós. Tudo de Justiça da nossa família era com ele. Antônio Alcides é um homem rico, você sabe. Rico. Nenhum dos nossos irmãos chega aos pés dele. Eu, nem passo perto de sua sombra. Além do que já tinha, ele recebeu da herança de papai e de mamãe, que não foi pouca coisa para cada um de nós, e a esposa herdou muito mais dos pais dela. Tem muita gente nesta Aracaju que se passa por rica, embora tenha lá seus bons tostões, mas não chega perto da fortuna deste meu irmão. Você sabe. Eu sempre lhe disse. Entre nós não há segredos. Embora podre de rico, trezentos mil é muito dinheiro, minha amiga. É ou não é?

Eu estive pensando uma coisinha de nada. Acho que você poderia me prestar um grande favor em nome da nossa amizade. “Augusta, minha filha, traga o balde com cervejas. Umas castanhas e as patinhas de caranguejo”. Vamos beber um pouco. As cervejas estão bem geladas, como a gente gosta.

E por falar em Augusta, você soube que ela teve que ir ao cardiologista? Eu não lhe disse isso, não foi? Pois teve. Andou com umas coisas esquisitas, um cansaço, um peso no peito. Mandei que ela procurasse o Posto Médico lá no bairro dela. Nada. Marcaram uma consulta para um ano e três meses depois. Assim, ela morreria bem antes.

Como você sabe, ela está comigo há quase trinta anos. Não tive o que fazer. Marquei a consulta com o Dr. Souza. Paguei. Pensei em ir descontando do salário dela, mas Jesus tocou o meu coração. Deixei para lá. Resultado da consulta? Uma série de exames. Paguei tudo. Ela merece, coitada.

E sabe o que deu? Angina. Por enquanto, mudança de estilo de vida, o que vai ser difícil com o marido e as filhas que ela tem, que só lhe dão desgostos, e medicamentos. Mais tarde, poderá ter que passar por uma angioplastia ou até mesmo cirurgia. Se precisar, tomara que não passe da angioplastia. Você sabe que a angioplastia coronária é o tratamento não cirúrgico das obstruções das artérias coronárias por meio de cateter balão, com o objetivo de aumentar o fluxo de sangue para o coração. Você sabe, sim! Lembrei que o velhote da Receita Federal que você trocou pelo sarará do forró fez angioplastia com o Dr. Teles.

Ah! O favor que eu quero é que você sonde, sem querer, mas querendo, com a sua prima se o velhaco do cunhado dela tem dinheiro entocado ou algum negócio em nome de outras pessoas. Aí você me diz e eu passo para o Alcides. Preciso desse favor, minha amiga. “Augusta, pode pôr o almoço”! A gente come, descansa um pouco e você poderá desembuchar tudo que quiser. Vamos à mesa. Hora da lasanha de frango, que você gosta.

 

 

*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

domingo, 13 de fevereiro de 2022

ONDE TEM FUMAÇA TEM FOGO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Este adágio popular sinaliza que algo suspeito está acontecendo. Consultando o dicionário de expressões coloquiais “Cada Caso é um Caso”, da estimada confreira da Academia Sergipana de Letras, Luzia Maria da Costa Nascimento, constato que esta frase foi atribuída ao imperador romano Nero, após fazer arder Roma.

Estamos vivenciando mais uma onda da Covid-19, agora patrocinada pela variante Ômicron do SARS-Cov-2. A referida cepa, apesar de maior grau de transmissibilidade, tem se mostrado menos virulenta do que as suas antecessoras, refletindo, provavelmente, a imunidade populacional adquirida mediante a vacinação ou a infecções prévias.

Os sintomas da doença se iniciam 2 a 14 (média 5-6) dias após a exposição. A maioria das pessoas acometidas têm apresentado sintomas leves, não requerendo internação hospitalar. Todavia, os idosos, aqueles não imunizados ou com o esquema vacinal incompleto, os portadores de comorbidades e os imunossuprimidos, podem evoluir para doença grave.

Existem, ainda, os assintomáticos que contribuem significativamente para a disseminação da virose. A imunidade humoral diminui após a vacinação inicial, porém a dose de reforço tem reduzido, substancialmente, a chance de resultados adversos. Dados recentes, na vigência da referida cepa, sinalizam que as três doses de vacina reduzem o risco de contrair a doença em 50%, de ser hospitalizado em 90% e, de morrer em 95%.

Como o novo coronavírus é um patógeno das vias respiratórias, os sintomas mais relatados, têm sido: coriza, congestão nasal, dor na garganta, rouquidão, tosse, diminuição ou perda do olfato, fraqueza muscular, febre, calafrios e cefaleia. Menos frequentemente, pode ocorrer: diarreia, mialgia rash cutâneo e olhos irritados.

Lembrar que, a ocorrência de dificuldade de respirar, dor torácica persistente, confusão mental, perda da fala ou da mobilidade e cianose (extremidades e/ou lábios arroxeados), sinalizam para a forma severa da virose, devendo o paciente ser, prontamente, conduzido para um serviço de urgência.

Assim, diante da presença dos chamados sintomas gripais, devemos pensar na possibilidade de Covid-19 e proceder, imediatamente, o isolamento e a realização de exame laboratorial diagnóstico, mediante coleta nasal ou oral por swab (espécie de cotonete), do RT-PCR ou do teste de antígeno para o SARS-Cov-2, este último encontra-se disponível, também, em farmácias.

Em breve, estarão no mercado os autotestes, com metodologia semelhante ao do antígeno, com a facilidade de poder ser feito pelo próprio paciente. Portanto, onde tem fumaça, pode ter até incêndio!

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

MUI AMIGA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Mulher, pelo amor de Deus, tome tento! Você acha pouco o que já passou na vida? Olhe ao seu redor. Você já casou e descasou duas vezes, já se amigou umas três e nunca prosperou nada de seu. Esqueça que seu tataravô foi um tal barão. Barão...! Isso conta o quê? Nada.

Desculpe, mas você me conhece. Não tenho papas na língua. Cadê a fortuna do seu avô? Os engenhos, as fazendas, o banco? Foi tudo para o beleléu. Não sobrou nada. Seus irmãos, como vivem? Um tornou-se empregado dos Correios, emprego arranjado pelo deputado Leite Neto, junto ao presidente Juscelino. O outro virou representante comercial. Este até conseguiu andar direito na vida. O terceiro vive de uma mísera aposentadoria do Estado, e ainda bem que tem uns tostões para não morrer de fome. Suas duas irmãs até que não se desgraçaram nos casamentos. Ana Célia casou com um gerente do Banco do Brasil. Rosa Maria agarrou o filho do deputado Ananias, cheio da grana.

E você, Ana Maria? Casou com um bonitão, porque era bonitão, e ele pensava que daria o golpe do baú, só porque sua família ainda morava no casarão da Rua de Pacatuba. Propaganda enganosa. Jorge não passava de um salafrário, mulherengo, jogador, safado, que lhe deixou por uma ricaça de Salvador. E você ficou com dois filhos pequenos.

Sorte sua, em parte, que casou sem papel passado com “seu” Britinho, bem aposentado da Receita Federal, que ajudou a criar seus filhos, mas você, com a cabeça virada por um peste de cantor de banda de forró – um sacrilégio! –, mandou o velhote passear, depois de onze anos com ele.

E o cantor? Dormiu com você quatro ou cinco noites, sei lá, e, a bem da verdade, você ainda era um tipo de mulher de dar gosto a qualquer homem. O que aconteceu? Você, de cabeça virada, entrou em depressão. Quase se foi. Se não fosse o Dr. Zé Hamilton, que era amigo do seu pai, você tinha entrado em parafuso. Louve a Deus pela assistência que o Dr. Hamilton lhe deu!

Ana Maria, minha nêga, você ainda teve sorte que o deputado Robertinho se engraçou por você e lhe botou no gabinete dele com um CC de bons trocados, por dois mandatos. Todo mundo dizia que você tinha um caso com ele, mas você sempre negou. Acredito em você, até porque nunca me escondeu suas trapalhadas. Quando ele perdeu a última eleição, você ficou sem nada.

O seu filho Aroldo José e o seu genro, Dr. Honorato, nunca lhe deixaram passar fome. Sorte grande a sua. Mas você nunca perdeu a vaidade. Coberta de bijuterias finas, imitações de joias verdadeiras, indo ao salão de beleza toda sexta-feira, embora devendo um bom pedaço à pobre da Zuleica – veja se toma vergonha na cara e paga o que deve a ela, pois Marize, que lava os cabelos das clientes, por conta própria ou a mando da patroa, tem lhe lascado. E ainda conseguiu pagar um botox, aqui para nós, bem vagabundo. Olhe direito para a sua cara, mulher. Parece que as bochechas botocadas são salsichas vencidas. Um horror. E você me agradeça que sou a única amiga que você tem que diz a verdade na sua cara. Nunca lhe iludi.

Mulher, tome prumo uma vez na vida. Se enxergue. Onde você mora? Num apertamento de dois quartos, num prédio de quatro andares sem elevador. Mesmo assim, agradeça a Deus, porque mora no que é seu. Você jogou sua vida fora. E não venha me dizer que Deus não olha para você.

Deus tanto olha que deve ter se cansado. Você é que não toma prumo. Veja agora: suas amigas ricas, as do seu tempo do Colégio das Freiras, vão comemorar cinquenta e cinco anos de formatura. Formatura, não. Conclusão do curso ginasial. E vão fazer um encontro em Paris.

Aí está você, que pensa que sabe francês, só porque diz Bonjour e outras besteiras na língua de Édith Piaf, querendo botar-se para Paris com suas ex-colegas. Mulher, se assunte. Bote a cabeça no lugar. Não está vendo que isso não vai dar certo? Comprar um pacote de viagem pelos olhos da cara, para pagar em dez vezes, com qual dinheiro?

Se você não tivesse virado a cabeça e outra coisa mais para o cantor de forró, e tivesse ficado com o velhote da Receita, hoje estaria com uma gorda pensão. Aí, sim, poderia ir a Paris, Londres, Moscou, Tóquio, Nova York e fosse lá para onde fosse. Mas, não, preferiu ouvir aquele sarará com cara de melão maduro cantar aos seus ouvidos “Lá no um pé de serra / deixei ficar meu coração”. Pois o seu coração não ficou em lugar nenhum.

E ainda veio me dizer, na semana passada, que sabe que o seu príncipe encantado vai chegar. Eu fiquei bolada. Será que alguma abelhinha anda zumbindo nos ouvidos de Ana Maria? Será que ela está arrastando asas por alguém? Um príncipe encantado! Será o velho da cabeça branca? Santo Deus dos céus! Deve estar perdendo o juízo.

Mulher, se enxergue. Você já passou dos setenta. Ainda está um pouco empinada, mas é só. Não estou lhe desmerecendo, até porque eu sou mais velha. Porém, você acha que a essa altura da vida, vai lhe aparecer um príncipe, montado num cavalo branco, para espanto da galera, como dizem os meus netos? Bem, tomara que apareça alguém que lhe console no fim da vida, que lhe ajude a atravessar o portão do purgatório terreno, que é essa fase da idade que estamos atravessando. Os setenta anos! Um descer de ladeira.

Ana Maria Bueno de Souza Brites, minha amiga querida, você merece um final de vida tranquilo, sem os corre-corres e os atropelos que você tem vivido a vida toda. Ah, amiga! Eu lhe quero tanto bem, e você sabe disso. Rezo por você todas as noites. E tenho até perguntado: Meu Deus, será que eu não sei rezar? Mas, confio em Deus, no nosso Jesus e na sua santa Mãe, que você não vai se acabar à míngua. E sabe que pode contar comigo. Eu posso ter a língua solta, mas é para tocar nos seus miolos, para acender a luzinha da razão.

Ah! E para encerrar o meu trololó, venha almoçar comigo no sábado. Tenho novidades para contar. Vou mandar fazer a lasanha de frango que você tanto gosta. E uma cervejinha sem álcool. Pronto. Já falei demais. Agora, venha cá com os seus assuntos. Bote-os em dia, querida.

Àquela altura, a tarde despedia-se do mundo. A boca da noite aproximava-se. Logo mais, o céu estaria pipocando de estrelas. Sentida, mas, resignada, Ana Maria, amiga da boca-rota Esmeralda, deixou-se afundar no sofá, alisando a cabeça da gata Flor de Lis. Não disse nada, a não ser: “A gente conversa no sábado. Você vai ter que me ouvir também”. Desligou o telefone.

 

 

*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

TESTES RÁPIDOS PARA O NOVO CORONAVIRUS


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A terceira onda da Covid-19 tem provocado inundações tanto nos serviços de urgência, pelos portadores de sintomas gripais, como em mensagens enviadas para os ZAPs de médicos, por aqueles aflitos com a possibilidade de estarem acometidos com a temível virose.

Não bastasse o tormento causado pela variante Ômicron do SARS-Cov-2, verifica-se, também, um surto atípico de gripe, proporcionado pelo subtipo “H3N2” do vírus influenza. Este cenário tem resultado em grande procura pelos testes diagnósticos, provocando escassez dos mesmos e erros no tipo de exame solicitado.

Um interessante artigo, recentemente publicado no prestigiado periódico New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMcp2117115), ajuda a desmistificar a utilização dos testes para o novo Coronavírus. Vale lembrar que existem testes para detectar a existência do SARS-Cov-2 no organismo e aqueles que servem para identificar a ocorrência de anticorpos (IgG ou IgM) induzidos pelo vírus.

Estes últimos começam a positivar, geralmente, após a 2ª semana de infecção, não servindo, portanto, para o diagnóstico da fase aguda da doença. Já os exames que revelam a presença do vírus, podem ser de dois tipos: os moleculares que detectam fragmentos específicos de partículas do agente invasor, sendo mais utilizado o RT-PCR e os imunoensaios ou testes baseados em antígeno, que constatam a existência de proteínas do SARS-Cov-2.

As duas metodologias utilizam swab (espécie de cotonete) nasal para a coleta de material e são altamente específicas, embora o RT-PCR seja mais sensível na demonstração da infecção, especialmente em pessoas assintomáticas com cargas virais baixas. O exame por pesquisa de antígeno é chamado de “rápido”, porque o resultado está disponível dentro de alguns minutos após a coleta.

O teste molecular do RT-PCR pode ser realizado de duas formas: a rápida, denominada “Express”, cujo resultado é disponível em algumas horas, porque conta com maior grau de automação; e a “Padrão”, cujo processo é feito em várias etapas e o resultado é entregue após alguns dias. A melhor janela para realização destes exames é entre o 4º e o 7º dia da exposição, quando geralmente ocorre a maior carga viral.

A Organização Mundial de Saúde recomenda a realização de teste diagnóstico para o SARS-Cov-2, em três situações, independentemente do estado vacinal, de acordo com a probabilidade de infecção: alta – aqueles com sintomas compatíveis com a doença; moderada - os assintomáticos que tiveram contato com pessoas positivas ou com sintomas da virose; e, baixa – os assintomáticos que estiveram em locais com risco alto de transmissão como aviões, shows, eventos esportivos etc.

Nas duas primeiras situações, um teste rápido positivo, confirma a infecção, devendo o contaminado ficar isolado e notificar o seu médico assistente, assim como as pessoas com as quais manteve contato recente. Caso o resultado seja negativo, naqueles com alta probabilidade clínica ou que apresentaram piora dos sintomas, o teste deve ser repetido após dois dias, dando preferência ao RT-PCR “Padrão”. Já os indivíduos com baixa probabilidade de infecção, um resultado negativo afasta a doença e, caso seja positivo, o exame deve ser confirmado dois dias após.

Os autotestes para a Covid-19, já disponíveis na Europa e nos Estados Unidos, foram, recentemente, aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Todavia, as empresas interessadas em comercializar o produto precisam solicitar o registro dos mesmos junto à citada agência.

Este tipo de exame é parecido com o teste rápido de antígeno, mas pode ser feito por leigos, em casa, constituindo ferramenta útil para o diagnóstico da virose. Aquele que testar positivo deve se isolar imediatamente, mesmo se assintomático e confirmar o resultado mediante um dos exames tradicionais.

Vale ressaltar que o SARS-CoV-2 é, predominantemente, um patógeno respiratório das vias aéreas, e a transmissão ocorre principalmente por meio da inalação de pequenas gotículas de saliva e aerossóis. Assim, embora combatido pelos negacionistas, usar máscaras, higienizar as mãos e evitar aglomerações continuam sendo condutas protetoras de reconhecida eficácia. Finalizo, citando o médico humanista, Sir William Osler: “Quanto maior a ignorância, maior o dogmatismo”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

VILA DO SOCÓ

 

 

 

José Lima Santana*

 

 

“O terreiro lá de casa, não se varre com vassoura...”. Eh, marimbondos de fogo cuspidos, cortando troncos e membros! Um vexame danado na Vila do Socó. A cabroeira do coronel Roberval Canuto veio como açoite de ventania braba, derrubando tudo. Política. Maldição de política.

Quinze ou mais anos de baixo. Só foi o partido dele subir, para o sertão pegar fogo. O coronel não perdoou as traições de certos cabos eleitorais e de eleitores que tinham sido seus e bandearam-se para o partido do major Vivaldino. Além de tudo, este morrera há um ano, e o filho, Venâncio, não deu conta de ser chefe político. Frouxo, muito frouxo.

Antes, a viúva, Dona Bertildes, tivesse assumido o partido, no Socó. Ela tinha peito para enfrentar o coronel. Eram até aparentados, ela pelo lado do pai, e ele, pelo lado da mãe. Parentesco lá por trás das nuvens, mas do mesmo sangue dos antigos donos do Arraial das Cobras, lá para os tempos do Império, nos seus começos, mil, oitocentos e pouco.

No Império ou na República, eleição pouco valia. Mais, muito mais, valiam as armas, garantindo eleições a bico de pena, ou desfazendo-as. No sertão, urnas não tinham serventia. Valia mesmo era o que se escrevia nos livros de apuração. Ganhava quem detinha os livros e quem os escrevia. O resto era conversa para boi dormir.

“O terreiro lá de casa...”. Jorjão de Alípio queria, há muito, a patente de capitão. Posses tinha para comprá-la. Mas, precisava de um encosto, que lhe fizesse ir para riba. Acocorou-se aos pés do coronel. Muita gente duvidou que ele tivesse traído o major. Pois traiu. Logo ele, afilhado de fogueira, que era como se fosse de pia batismal.

Largou o padrinho pela promessa de obter a cobiçada patente. O sobrinho do coronel, deputado federal, haveria de arranjar o papel-pago. Jorjão comandou o massacre na Vila do Socó. Morreram mais de trinta homens, seis mulheres, cinco adolescentes e uma criança. Esta, de bala perdida. A jagunçada do filho do major que sobrou, deu no pé. Melhor não ter um chefe do que ter um sem tintura de sangue nas veias.

O Socó virou um cemitério. Dava dó. As duas bodegas fecharam as portas. O luto cobriu quem sobrou e resolveu ficar. Também, ir para onde? Morador não era jagunço, para sair mundo afora. Os mortos seriam pranteados na labuta do dia a dia. Com o tempo, a situação se ajeitaria como desse. Noutras vilas e arraiais aconteceram coisas parecidas. Era o sertão desembestado pela fúria dos homens de posses e de armas alugadas. Capitães, majores e coronéis eram os barões da política e do crime.

“O terreiro...”. Joãozinho Cara de Índio não viu o enterro do pai e do irmão, pois estava no bucho da mãe. A mãe quis mudar-se para o Arraial do Tombo, nos confins do Vale do Aleixo, a quinze dias de boa marcha e em boas montarias. Mas, teve tutano para ficar e criar o filho, que seria o homem e a voz da casa. Sertão.

Muitas luas se passaram. Anos bons de invernos aquosos e anos de penúria, de miseráveis secas. O coronel Roberval Canuto morreu atacado por uma ferida braba que lhe comeu o rosto inteiro. Fedia como carniça enjeitada por urubus. Nesse tempo, a política tinha mudado de lado algumas vezes.

Ao morrer o coronel, o seu partido estava de baixo. Nenhum grandola lhe prestou tributos. O sobrinho não era mais deputado. A cabroeira sob as suas ordens já tinha se espalhado. No dia do enterro, uns gatos pingados estiveram no casarão. Quem acompanhou o esquife até o cemitério teve que usar máscaras improvisadas. Mesmo assim, alguns vomitaram. Do massacre da Vila do Socó à morte do coronel, vinte e dois anos tinham se passado.

Um ano depois do coronel baixar à sepultura, o presidente da República seria deposto. Era o fim da Grande Guerra. Nova era seria instalada no País. Diziam. Nas cidades grandes, o que se sabia do sertão? Nova era... “O terreiro lá de casa...”.

1947. Joãozinho Cara de Índio cresceu forte, trabalhador. Cedo, tornou-se comboieiro. Atravessou várzeas e sertões transportando mercadorias. Prosperou. Jamais buscou confusão. Nunca falou em vingança. Cuidou da mãe até que ela morreu, nova ainda. Passou-lhe o vento. Só depois, Joãozinho deu-se em casamento, desposando a filha de Antero do Baixio, um dos homens mais ricos de todos os sertões.

Maria Gabriela era filha única. Flor silvestre desabrochada sob os luares, faces morenas beijadas pelo orvalho. Prendada nos afazeres do lar. Tinha até algum estudo. Fala mansa, nunca alterava a voz. A mãe da moça, Dona Julinha, era natural da Vila do Socó. Um irmão dela fora uma das mais de trinta vítimas do coronel Roberval e do pretenso capitão Jorjão de Alípio, cuja patente jamais lhe chegara às mãos, embora por ela tivesse pago vultuosa soma em dinheiro. Jorjão, ele mesmo, sangrou Gabriel Matoso, irmão de Dona Julinha, enfiando-lhe um punhal enferrujado na jugular. “Morre, porco maldito”!

Maria Gabriela concordou em casar com Joãozinho Cara de Índio sob uma condição. O rapaz ouviu em silêncio. Olhou no fundo dos olhos da flor silvestre. Olhos que não piscavam, apenas faiscavam. Além de uma mulher cheia de encantos, era herdeira de incalculável fortuna. Não que ele fosse um pé-rapado, mas a moça podia nadar em ouro, se quisesse. Condição aceita.

“O terreiro lá de casa, não se varre com vassoura / Varre com ponta de sabre, bala de metralhadora”. As rixas, as desavenças, as guerras do sertão, com ou sem causa política, não cessariam da noite para o dia. Maria Gabriela teve esse nome de batismo por causa do tio e padrinho, Gabriel Matoso, sangrado como um porco por Jorjão de Alípio.

Joãozinho Cara de Índio teria de sangrar o assassino do tio da futura esposa, na frente dela. Na Vila do Socó. No lugar em que o tio foi morto, bem na frente da bodega de Tonho de Sizino, que ainda existia, mas com outro dono. Jorjão fazia morada no Sítio do Meio, três léguas adiante.

Joãozinho, sozinho, o arrastou até a Vila. Até a frente da bodega de Tonho de Sizino. Nunca foi de confusão, mas coragem jamais lhe faltou. Diante de Maria Gabriela, ele o iria sangrar como a um porco. Cumpriria a condição imposta. No exato momento em que levantou o punhal, a moça exclamou: “Deixe para lá! Um porco grita muito na hora de morrer. Solte o traste”.

“O terreiro lá de casa...”. Uns dias depois, Jorjão de Alípio, desmoralizado, enforcou-se.

 

 

*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

CONTRA O CONSENSO


  

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

   

O ato médico está embasado em dois pilares, o intelectivo, incapaz de ser padronizado, porque depende da capacidade cognitiva do profissional na tomada da decisão e o técnico que depende da formação, aperfeiçoamento e atualizações, podendo, portanto, ser regulado por diretrizes de prática clínica.

Estas constituem ferramenta importante, especialmente em uma área tão complexa e em rápida mudança como a da Covid-19, objetivando aperfeiçoar a qualidade do atendimento, baseada na melhor evidência disponível e reduzir a disparidade de condutas para o mesmo tipo de situação clínica.

A variante Ômicron do SARS-Cov-2, dotada de uma capacidade de transmissão incomparavelmente superior às demais, se alastrou, rapidamente, pelo território brasileiro, favorecida, sobretudo, pelo evidente relaxamento das medidas protetoras. Apesar de a maioria dos contaminados exibir sintomas leves a moderados, sendo alguns até assintomáticos, podendo se recuperar em ambiente domiciliar, alguns, particularmente aqueles mais idosos, os portadores de comorbidades, os imunocomprometidos e os não vacinados, podem desenvolver quadros graves, necessitando recorrer à internação hospitalar.

Vale reforçar que os indivíduos que receberam a imunização de reforço têm menor chance de apresentarem complicações graves e morte pela virose, do que aqueles que não a receberam. Portanto, a implementação apropriada de diretrizes constitui grande interesse para os prestadores de cuidados à saúde, para as organizações nacionais, para as associações profissionais, beneficiando a sociedade, como um todo.

A Comissão de Incorporação de Tecnologia ao Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão ligado ao Ministério da Saúde (MS), aprovou na primeira semana de dezembro de 2021, mediante relatório, as Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid-19, rejeitando o uso ambulatorial de medicamentos que compõem o “kit covid”, baseado em cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina para tratamento precoce da doença, pois não havia sido constatada evidência que mostrasse qualquer benefício clínico para tal fim.

Esta era, desde o começo, a posição do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que integra a citada Comissão. Vale lembrar que, em maio de 2020, o CNS recomendou ao governo a suspensão imediata das Orientações do MS para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19 e, em agosto do mesmo ano, recomendou à pasta da Saúde medidas para a garantia do abastecimento de cloroquina e hidroxicloroquina para os pacientes que fazem uso contínuo e imprescindível destes medicamentos para outros fins não relacionados à Covid-19.

Em Nota Técnica publicada no Diário Oficial da União de 21 de janeiro de 2022, assinada pelo chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, o MS rejeitou as diretrizes da Conitec, alegando "incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida".

Estranhamente, na Tabela-1da referida nota, consta que há demonstração de efetividade e de segurança, em estudos controlados e randomizados para o uso de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, o mesmo não ocorrendo com as vacinas!

O Colegiado de Professores Titulares da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) manifestou solidariedade ao Prof. Dr. Carlos Carvalho, que coordenou um seleto grupo de especialistas, representando diversas sociedades médicas e universidades e que resultou na elaboração das diretrizes para o tratamento da Covid-19, aprovada pela Conitec.

Na esteira desta interlocução, várias entidades médicas, como a Associação Médica Brasileira (AMB), também, têm emitido duros pronunciamentos, de repúdio à referida portaria do MS. Em carta aberta, em um site de petições on-line (https://chng.it/snJ8wZVQ), inúmeros pesquisadores, professores e profissionais de saúde pedem urgência na adoção das normas aprovadas em dois turnos pela Conitec, que barrariam o "kit covid". "Nos sentimos perplexos quando lemos a vasta lista de estultices apresentada pela nota técnica", diz o manifesto.

Após todos esses protestos, a portaria do MS foi reeditada, sendo retirada a “Tabela-1”, citada acima, sem alterar, todavia, a essência do documento. Fica a esperança que essa decisão seja, realmente, revista, para evitar maiores prejuízos à saúde da população brasileira. Finalizo, citando o pastor estadunidense Martin Luther King: “O      que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...