domingo, 25 de setembro de 2022

A RECONHECIDA EXCELÊNCIA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE DA UFS


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Finalmente, há poucos dias, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundação vinculada ao Ministério da Educação (MEC) que regula e coordena toda a pós-graduação brasileira, publicou o aguardado resultado preliminar da sua avaliação quadrienal.

A característica central da referida avaliação é ser realizada por pares (comissão de especialistas da área, no caso ensino), com base em informações anuais públicas e transparentes, registradas em separado por cada programa de pós-graduação (PPG) na Plataforma Sucupira, comum ao Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG).

Os relatórios são analisados pela Comissão de Área, num esforço concentrado de avaliação comparativa da evolução e do estado da arte em cada área, posteriormente revisado pelo Conselho Técnico Científico do Ensino Superior (CTC-ES), que integra todas as áreas. Os PPG se distribuem em notas 3 (regular), 4 (bom) e 5 (muito bom), e destes últimos se destacam programas excelentes, com notas 6 e 7, que constituem referências para as Áreas.

Foi com imensa alegria e indisfarçável orgulho que recebemos a notícia de que o PPG em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Sergipe (PPGCS-UFS) obteve a nota 6, atingindo, portanto, desempenho equivalente ao dos centros nacionais e internacionais de excelência, na Área de Medicina I.

A láurea que ora recebemos, constitui uma vitória especial, diante dos baixos recursos e falta de uma política clara de fortalecimento das pesquisas por partes das agências estaduais de financiamentos de investigações científicas. Soma-se a esta constatação, ainda, os infundados ataques que os cientistas e as universidades, especialmente as públicas, vêm recebendo, pela crescente neocultura do negacionismo científico.

Vale ressaltar que os demais PPG da UFS também evoluíram para um patamar superior, perfazendo um total de 41,8% de alterações positivas de conceito, segundo o competente Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFS, Prof. Lucindo José Quintas.

O desempenho do PPGCS-UFS foi particularmente notável, durante a pandemia da Covid-19. Os mais de cem artigos publicados por seus integrantes (a maioria em periódicos com conceito “A” da CAPES) têm merecido o reconhecimento da comunidade científica nacional e internacional, pelas relevantes contribuições em diversos aspectos desta perigosa virose.

O esforço, a coragem e a perseverança conjunta dos nossos docentes, discentes, egressos, técnicos e colaboradores criaram as energias propulsoras para esta merecida conquista. Portanto, o nosso ideal é hoje realidade. Viva a UFS!

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

FULÔ ENTRE FULORES


  

 

José Lima Santana*

 

 

Brocar vou não, sinhô. Não aprendi a andar de marcha à ré. Carro não sou. Só meto pé na estrada pra seguir em frente, cruzando veredas e caminhos. Se rio tá cheio, espero baixar. Se o demo faz presepada no meio de redemunho, corto caminho, que tento não tenho não pra me defrontar com o tinhoso.

Meu saber é, de longe, muito curto. Valdevino, tio meu de muito viver e muito pelejar, botava tino de dar a cara pro zambeta. De muitas treitas ele saiu, rodeando um magote de diabos, cruz de caravaca na mão direita e espada de São Jorge na esquerda. Espíritos daninhos deram com ele ao chão, mas tio meu era abençoado, tinha grande proteção lá do alto. Os de baixo com ele não podiam. Roncavam como bois zebus cavando formigueiro com afiados chifres, mas explodiam no ar com fedor de enxofre empesteando o mundo.

Quanto a mim, esse poder tenho não. Todavia, vou vivendo de bom viver, sem medo de bicho ou gente. Tenho cá de meu, cisma com coisa do além. Só cisma. Por puro desgosto. Por sobrosso, não.

Estou indo em passo maneiro, bem montado. Pedra Azul é destino meu. Vou em paz, que de paz eu sou. Brigas, gosto não. Brigar nem com formiga cortadeira. Ela que corte! Não cortando roça minha, tá no direito dela de também viver. Tudo é criatura de Deus, nosso soberano, assim diz mãe minha, senhora de muito silêncio, mas de palavras certeiras. Curtas, porém.

Ainda mais curtas, palavras de pai meu. Curtas, mas acesas como brasas sem cinzas. Pai meu, vem dos antigos Santos Lima do Baixó, herdade dos tempos da Colônia, bem que dantes do Império. Gentes de posses muitas, no passado. Hoje, minguadas posses, porém, de ninguém morrer de fome ou no servilismo sob gritaria de algum grã-fino da cidade.

Pedra Azul tem uns grã-finos de titica. Dos ricos dali, talvez nenhum se salve, a não ser, no entendimento deles, João Pescocinho e Tertuliano de Curvelinho do Pau D’Arco, metidos em latomias de igreja, xeretando a batina do padre Alonso Medeiros, das antigas, brabo que nem cascavel. Dia desses, enfrentou Lampião, sem piscar um olho. Padre Alonso pisca não. Não é desses modernosos que piscam ao ver uma barata, inofensivo bichinho, comedor de restos.

E pra ter salvação é preciso viver grudado em batina de padre? É? Né não! Nosso Senhor quer muito mais da gente. Mãe minha diz, em seus poucos dizeres, que Jesus Cristo deu de andar por este mundo de perdição pra abrir as ventas e as oiças das pessoas. Abrir o coração. Tem gente igrejeira que tem coração fechado como caramujo. Tem salvação? Só Jesus sabe. Ele sabe.

Pai meu pediu pra comprar arreios em “seu” Joventino, maior mestre de bater sola destes rincões. Seleiro sem igual. Vem gente de mil e um cantos pra fazer encomendas de sela e arreio. Dois filhos de “seu” Joventino arribaram pro Sul. Não deram fiança de seguir o prumo do pai.

Quem se meteu em aprendiz de selaria foi Cotinha, caçula do seleiro e de Dona Maria Pia, coitada, que bateu as botas há mês e dias, picada por uma jararaca. A maldita tava escondida numa touceira de bananeira, na beira do córrego que atravessa o sítio da família.

Tristeza em Pedra Azul. Dona Maria Pia era mulher de trato e respeito. Querida de todos, devota do Menino Jesus, sem precisar beijar mão de padre. Mulher mais que distinta. Muita gente chorou na sentinela. E no enterro também. “Seu” Joventino, duro na peleja, segurou lágrimas, não. Também, perdeu um cabedal.

A dona da casa agora é Cotinha. Boa de corpo, sardentazinha, mas de rosto delicado. Moça de aflorado aprumo. Bem adiantada no aprendizado de fazer sela e arreio. Taí uma moça que pode fazer bem a um homem que dela se enrabiche. Eu mesmo sempre tive por ela bons olhos e melhores pensamentos. Não me incomodo de fazer dela minha companheira, até morando com “seu” Joventino, que dela vai ser precisado cada vez mais, no enlarguecer dos anos. Mudar pra Pedra Azul não há de custar nada.

No caminho, na forcada dos Araçás, dei de cara com Janjão Boca de Sapo. Dele não gosto. Não é por nada não. É que ele é falador demais da conta. Boca grande. Metido a mexericar a vida alheia. Sou educado, quando posso. Dou-lhe “bons dias”. Sigo em frente. Ele tenta puxar conversa. Faço que não ouço.

De vez em quando é bom ser surdo. As conveniências pedem. Se eu fosse de arruaça, já teria dado uma surra de cipó caboclo naquele tipo. Deu de falar de Cotinha. “Uma moça metida em fazer sela precisa é de um macho taludo”, ele disse na bodega de Otelo de Chico de Bernadete. Um despropósito! Moça distinta, Cotinha. Ouvir, eu não ouvi ele dizer essa asneira. Soube por primo meu, Zelito de tia Margarida. Ainda bem. Ainda bem.

A casa de “seu” Joventino está logo ali, na entrada da Rua do Melão. Casa avarandada. De quatro águas. Terreiro limpo, cheio de fulôres. Dona Maria Pia zelava pelo jardinzinho. Agora, Cotinha é quem zela. Lá tá ela, acocorada, mexendo na terra, nalguma planta. Fulô no meio de tantas fulôres.

Janjão Boca de Sapo ainda há de levar uma sova. De cipó caboclo ou de rabo de teiú. De briga, sou não. Mas, Cotinha é favo de mel a não poder estar em suja boca. Sorrateiro, nas manhas, dela me aprochego. De algodão, boa colheita eu tenho. Dá pra casar. Cotinha se levanta. Boas ancas. Na medida pra ter muitos filhos. “Bom dia Dona Cotinha”. Ela mal responde. Encolhe-se. É bem mais bonita que um botão de rosa se abrindo. Fulô de brejo, viçosa. Peito meu bate que nem zabumba.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 18 de setembro de 2022

DECLÍNIO DA COBERTURA VACINAL


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

As vacinas são aplicadas, gratuitamente, nos postos de saúde e se constituem no principal armamento para o enfrentamento de uma virose. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de vacinação ideal é acima de 90% e o Brasil sempre foi considerado exemplo de excelência neste quesito.

Todavia, segundo alerta do Instituto Butantan, a cobertura vacinal em nosso país vem despencando, perigosamente, nos últimos dez anos, colocando em risco a população, sobretudo a infantil, que tem se tornado mais vulnerável a doenças outrora erradicadas, como o sarampo e a poliomielite.

A imunização contra a Covid-19, também tem enfrentado desafios decorrentes de desinformação, hesitação provocada por movimentos antivacina, curta duração da imunidade e, o surgimento de variantes virais altamente transmissíveis que escapam parcialmente dos anticorpos.

Nosso sistema imunológico é dividido em dois braços, o inato e o adaptativo. O primeiro, herdado, independe de exposição prévia ao vírus, inclui barreiras celulares e a secreção de substâncias que formam a primeira linha de defesa contra o agente agressor. Já o sistema adaptativo, desencadeado por contato com o vírus ou provocado por vacina, é apoiado em dois pilares do sistema imune, o humoral e o celular.

No caso da Covid-19, por exemplo, a imunidade humoral é formada por anticorpos que se ligam à proteína Spike, do SARS-CoV-2, neutralizando o vírus ou eliminando-o por meio de outros mecanismos efetores. A imunidade celular, por sua vez, é composta por dois grupos de células, específicas contra o vírus: as do tipo “B” que também produzem anticorpos e as do tipo “T”, que tanto eliminam, diretamente, células infectadas pelo vírus, como fornecem apoio às demais respostas imunes.

Para infecções virais agudas, incluindo as promovidas pelo novo coronavírus, é provável que os anticorpos neutralizantes sejam essenciais para bloquear a aquisição da infecção, enquanto uma combinação das respostas imunes humorais e celulares, provavelmente, controlam a replicação viral após a infecção e previnem a progressão para doença grave, hospitalização e morte. Uma revisão aprofundada sobre o tema pode ser apreciada no tradicional periódico New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMra2206573).

Tem sido motivo de preocupação, na atual Pandemia, a curta duração da imunidade adaptativa, tanto a promovida pela infecção viral em si, como a induzida pela vacinação, fato que tem se exacerbado, após o surgimento da cepa Ômicron e suas subvariantes, que exibem alto grau de escape imunológico.

Todavia, já foi constatado que, aqueles que foram vacinados após terem sofrido a infecção pelo SARS-CoV-2 (imunidade híbrida), desenvolvem respostas imunes mais robustas, trazendo, portanto, a esperança de que a imunidade da população contra o nefasto vírus continuará a crescer, mediante a combinação de vacinação generalizada e infecção.

Algumas complicações como trombose e miocardite (a maioria de grau leve) têm sido relatadas após a vacinação, todavia com uma frequência incomparavelmente inferior às decorrentes da infecção pela Covid-19. Portanto, reafirmo que “perigoso é vírus e não a vacina”!

Finalizo, citando o físico alemão, Max Planck: “A ciência é a aproximação, progressiva, do homem com o mundo real”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

FILHO DE PUTA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Deu briga. Briga feia. Morro dos Gatos amanheceu em polvorosa. Zé Maninho, cabo do destacamento local, botou de prontidão os dois soldados com os quais contava no quartel em pedaços. Nem a grade do xadrez tinha serventia. Estava sem cadeado, amarrada com um arame há mais de dois anos. A missanga de cima estava roída pela ferrugem. Não dava para guardar um preso, sem vigia de dia e de noite.

O governo estava às moscas. O governador vivia de viagem em viagem, curtindo a vida de safado com raparigas. A esposa, diziam, na capital, uma santa, tinha acabado de se mudar para a casa dos pais, com os três filhos, no Estado vizinho. Botaram no governo um “meninote” de trinta e poucos anos, de família abastada, raparigueiro desde sempre. Coisas da vida política nordestina.

As estradas encontravam-se em petição de miséria, após chuvas alarmantes, dantes nunca vistas por ali. Os poucos hospitais públicos viviam superlotados. Médicos e enfermeiras abandonavam seus postos por não ter como cuidar dos doentes. Salários atrasados. A segurança pública estava quase entregue a dois grupos de justiceiros, pagos por fazendeiros e comerciantes das principais cidades. Um horror!

Em Morro dos Gatos até que tudo vinha saindo a contento. Lugarzinho pacato, vila há pouco constituída, separada de Tição Aceso, até que Fernandinho Ferreira, filho do intendente, deu com a língua nos dentes, no bar Risca Faca, de João Joelho de Porco, dando conta que Bernardes de Engrácia era filho de puta, trazido para ser criado pelo pai, Marcão de Sá Toinha, porque a mulher, Dona Engrácia, não podia ter filhos. O útero dela era destrambelhado.

Mas, na vila todo mundo pensava que o rapaz era mesmo filho do casal. Era não. O segredo de Marcão e sua esposa acabou sendo descoberto por Marilda de Zezito Pinto, lavadeira da família desde que o menino nasceu, na fazenda dos pais de Dona Engrácia, segundo o casal apregoava.

Marilda sabia de tudo, tin-tin por tin-tin. A lavadeira soltou o que não devia a Dona Hortência, mãe de Fernandinho Ferreira e esposa de Pedro Ferreira, o intendente. Ora, saber que Bernardes era ou não filho do casal parecia coisa de menor importância. Porém, alardear que era filho de puta, já criava um calo no fundo do coração do rapaz, que estava de noivado acertado com Cristina Maria de Paulo Tinteiro, fazendeirão da terra dos Tinteiro, que se estendia pelo Lagamar, Brejão das Nêgas e Fulô da Inocência, lugarejos onde bois pareciam nascer em cada rama de capim-sempre-verde. Aliás, gente de finura de salão e de enfrentar revoluções, como as que aconteceram em 1906 e 1922.

Sabendo-se, pois, que a filha se casaria com um filho de puta, podia ser o desfazimento do noivado, por determinação dos pais de Cristina Maria, caidinha dos quatro pneus pelo novel filho de puta. A paz em Morro dos Gatos estava quebrada. Marcão e o filho Bernardes, ao tomarem conhecimento da falação de Fernandinho Ferreira, a despeito de ser ele filho do intendente local, tomaram de armas de grosso e de fino calibre.

Dariam conta do falador, custasse o que custasse. Não deixariam por menos. Peixoto Cabaré, jagunço das antigas e sempre a serviço de Marcão, para o que desse e viesse, amolou uma faca luminosa, para capar Fernandinho. Cortaria os quibas do rapaz e os daria para o cachorro comer.

Para Bernardes, só a morte de Fernandinho lavaria a sua honra, daquele jeito maculada. Dizer que ele era filho de puta! “Então, mãinha é puta? Só um tiro no meio do quengo daquele cachorro gué do rabo fino pode reparar a minha honra e de mãinha”. Fervura nas alturas.

Marcão ajuntou mais uns seis ou sete capangas. A guerra estava prestes a começar. Sim, porque, do outro lado, o intendente, ao ser informado dos acontecimentos, ou do que estava para acontecer, chamou Fernandinho às falas. “É verdade o que você disse, que o filho de Marcão é filho de puta”? Pois não era?

A lavadeira Miralda dera todo o serviço, deitando falação sobre o que sabia, tin-tin por tin-tin. Era verdade, sim. Dona Engrácia não podia ter filhos. Então, Marcão botou-se para Pata da Onça e arranjou um menino, recém-nascido, saído do bucho de Purezinha Boca de Mel, rapariga de porta aberta, que tinha acabado de parir, sabia Deus de quem. Marcão fez-lhe o favor de tomar a si o zelo pelo bebê e, ainda por cima, gratificou Purezinha com uma nota de cem mil réis. Registrou o menino como sendo seu filho e de Dona Engrácia.

Era a mais pura verdade. Tudo apurado, o intendente Pedro Ferreira não se fez de rogado: juntou uma cabroeira que lhe servia nas três fazendas de gado e na fábrica de descaroçar algodão, uns dez homens, e esperou a hora da carnificina. “Se o rapaz é mesmo filho de puta, Dona Engrácia o criou como seu filho, ele foi registrado como filho dela e de Marcão, e é isso que importa. O mais importante é criar, e não parir”, disse Pedro Ferreira aos seus apaniguados. Porém, se Marcão e Bernardes queriam guerra, guerra eles teriam.

Foi assim que o cabo Zé Maninho ficou sabendo de tudo, naquela manhã. O que ele e os dois soldados poderiam fazer, no meio daquela gente toda em desalinho, em pé de guerra? Só uma providência do céu poderia atalhar a mortandade que se anunciava.

Num átimo, o cabo teve uma ideia. Mandou, a toda, que o soldado Faísca rumasse para Pata da Onça e desse cobro de Purezinha, se viva fosse. Trouxesse-a o mais depressa possível. A distância era pequena. Cavalo ligeiro, chispou o soldado Faísca. O chão duro de verão faiscou sob as patas do cavalo do soldado.

Por volta do meio-dia, o soldado Faísca aportou ao quartel com Purezinha numa carroça de burro, alquebrada, moribunda, uma tosse seca a sacudir-lhe os bofes. Enquanto isso, nenhum morto no embate entre as duas famílias, mas alguns feridos a bala. A vila estava em fervura de café na chaleira.

Purezinha confirmou ser a mãe de Bernardes. E propôs: “Se eu morrer, ele deixa de ser filho de puta, porque deixa de ter a mãe natural”. Disse isso e, logo depois, bateu a caçoleta. Tuberculose em alta. Pronto. Bernardes era, agora, filho somente de Dona Engrácia.

O cabo levou aos dois lados a notícia da morte de Purezinha. Trégua “assinada” na ponta da palavra. O cabo Zé Maninho foi saudado como um verdadeiro diplomata. Toda a vila o reverenciou. Pedro Ferreira e Marcão deram as mãos. Fernandinho e Bernardes mal se olharam. Sempre foram como cão e gato. Jovens ricos a disputarem o mesmo quadrado.

No dia seguinte, em conversa com um amigo, Fernandinho disse: “Mesmo Purezinha morta, Bernardes continua sendo filho de puta”. Nova confusão à vista...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 11 de setembro de 2022

EFEITO PROTETOR DA ESPIRITUALIDADE NA COVID-19


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A Covid-19, protagonizada pelo ardiloso SARS-Cov-2 abalou o nosso país por sucessivas “ondas”, causadas por variantes do vírus original, as quais iam se sucedendo e se tornando mais transmissíveis e com maior capacidade de escape aos anticorpos desenvolvidos. Estes tsunamis promoveram grande devastação, sobretudo nas famílias dos quase 700.000 brasileiros que tiveram as suas vidas ceifadas pelo impiedoso vírus.

No momento, a pandemia de Covid-19 parece estar em transição de uma fase hiperaguda para uma fase endêmica. As vacinas atuais contra a Covid-19 são menos eficazes em impedir a infecção com a variante Ômicron do que com variantes anteriores, mas a proteção contra a doença grave permanece em grande parte preservada. Vale lembrar que o principal objetivo das vacinas contra o novo coronavírus é o de fornecer proteção a longo prazo contra a doença grave, hospitalização e morte.

Os profissionais de saúde, sobretudo os que participaram da linha de frente, tiveram papel preponderante, no enfrentamento do poderoso vírus. Durante as fases mais críticas da doença, os sintomas de ansiedade ficaram exacerbados, sobretudo naqueles profissionais que trabalhavam em terapias intensivas, em enfermarias e nos serviços de urgências, abarrotados de doentes graves.

O receio de contrair a doença e de transmitir para parentes e amigos, aliado ao sofrimento dos enfermos, vivenciados nos ambientes de trabalho e sujeitos aos efeitos tóxicos do estado pandêmico, abalaram, significativamente, a saúde mental de muitos.

A espiritualidade, que não deve ser confundida com religiosidade, consiste nos valores morais, mentais e emocionais que guiam os pensamentos e comportamentos em contextos intra e interpessoais. Já o conceito de religiosidade se refere a quanto o indivíduo pratica, acredita e segue de alguma forma, uma determinada religião.

Tem sido demonstrado que os aspectos cognitivos e emocionais positivos decorrentes da espiritualidade, tanto se associam à menor intensidade do estado de ansiedade como, talvez seja o principal protetor quanto ao surgimento da mesma na população geral.

Foi recentemente publicado no periódico PLOS ONE (doi.org/10.1371/journal. pone.0267556) um estudo brasileiro realizado no primeiro semestre de 2020, em um hospital terciário para o tratamento da Covid-19 no Rio de Janeiro, com o objetivo de avaliar os efeitos protetores da espiritualidade sobre a ansiedade aguda e crônica de 118 trabalhadores, de ambos os sexos, da referida unidade hospitalar.

Foi encontrada alta frequência tanto de ansiedade crônica, como de aguda (54,3%), nos profissionais de saúde, durante a pandemia, seguramente refletindo o impacto psicológico causado pela doença. Os autores concluíram que a espiritualidade pode ser considerada um fator protetor contra a ansiedade em profissionais de saúde, independentemente de os sintomas terem começado antes ou durante a peste.

Esses achados, também encontrados em pesquisas semelhantes, sugerem que aqueles com alto bem-estar espiritual tendem a desenvolver mecanismos internos que os ajudam a lidar com o estresse psicológico.

Finalizo, citando Santa Teresa de Calcutá: “Muitas pessoas no mundo morrem por falta de um pedaço de pão, mas há muito mais gente morrendo por falta de um pouco de Amor”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

IGREJA CATÓLICA E POLÍTICA


  

 

José Lima Santana*

 

 

A partir de maio de 1925, em vista da reforma constitucional proposta pelo presidente Artur Bernardes, Dom Leme, então arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, e o sergipano Jackson de Figueiredo — fundadores do Centro Dom Vital, na época o principal centro intelectual do catolicismo conservador no país — iniciaram intensa campanha em prol da implementação de “emendas religiosas” à Constituição de 1891.

Essas emendas referiam-se à obrigatoriedade da instrução religiosa nas escolas públicas e ao reconhecimento do catolicismo como religião oficial do país. Essa última pretensão era, deveras, absurda. Não havia mais lugar para regressar ao que ocorrera na fase imperial. Nem pensar.

Entretanto, após a Revolução de 1930 o Estado passou a conceder um reconhecimento quase oficial à Igreja. Necessitando de seu apoio para legitimar o novo governo, Vargas não hesitou em fortalecê-la. A permissão para que fosse ministrada instrução religiosa nos cursos primário, secundário e normal, bem como a licença para que se organizassem sindicatos católicos — ambas concedidas durante o ano de 1931 — constituíram indícios dessa aproximação.

Enfim, em 1932, no Rio de Janeiro, foi criada a Liga Eleitoral Católica - LEC, pelo agora segundo cardeal brasileiro, Dom Sebastião Leme da Silveira, que contou com o auxílio de Alceu Amoroso Lima. O objetivo era mobilizar o eleitorado católico para que este apoiasse os candidatos comprometidos com a Doutrina Social da Igreja, nas eleições de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte, que promulgaria a Constituição de 1934, e de 1934 para as assembleias constituintes estaduais.

A partir da segunda metade de 1932, a propaganda da LEC intensificou-se através da publicação na imprensa de artigos contra o divórcio e a favor da instrução religiosa. Começaram a ser divulgados igualmente os nomes dos partidos e candidatos apoiados pela organização. Em Sergipe, para a constituinte estadual de 1935, a Igreja conseguiu eleger deputado o Cônego Miguel Monteiro Barbosa, que já era ativo na política.

A LEC teve, inclusive, entre nós, como seu diretor espiritual, o padre Avelar Brandão Vilela, que seria arcebispo primaz do Brasil, em Salvador. Em 1935, foi formada a Ação Católica Brasileira (ACB), nova organização religiosa cujo objetivo era coordenar todas as forças católicas do país para difundir os princípios da Igreja.

De início, houve dificuldade para se definir a relação dessa organização com a LEC. Pouco depois, a LEC foi considerada órgão paralelo à ACB e diretamente subordinado aos princípios gerais da Igreja.

Em 10 de novembro de 1937, ao mesmo tempo em que instituiu o Estado Novo, Getúlio Vargas outorgou nova Constituição ao país, revogando a Carta de 1934. Pouco depois, todos os partidos políticos foram extintos. A LEC passou à inatividade, tendo seu funcionamento impedido.

No entanto, embora a nova Constituição não especificasse as questões referentes à Igreja, Vargas continuou a solicitar o apoio desta, concedendo-lhe as mesmas “garantias e liberdades” de antes.

A LEC atuou ainda nas eleições presidenciais de 1945, nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1946 e nas eleições presidenciais de 1950. Para a Constituinte estadual de 1947, os católicos sergipanos elegeram como deputado o cônego Edgar Brito.

Em 1962, em meio a certo rebuliço, a LEC passou a denominar-se Aliança Eleitoral pela Família (ALEF). Começou a sua decadência, que se acentuou após o golpe militar de 1964. Extinguiu-se. A partir dali a Igreja Católica, ausente da política partidária, não deixou de atuar em duas frentes, não como instituição, mas pela ação deliberada de seus membros clericais – bispos e padres –, que se dividiram, uns apoiando o golpe e outros combatendo-o. Passou-se, então, a dizer que havia o clero de direita e de esquerda.

Politicamente, a Igreja Católica perdeu terreno para as denominações protestantes, especialmente as de orientação neopentecostal. Aliás, dizem alguns estudiosos da ação pastoral católica que a ascensão do protestantismo neopentecostal deveu-se, em grande parte, ao abandono pela Igreja Católica das ações que se voltavam, a partir do Concílio Vaticano II e, notadamente, das opções estabelecidas durante a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Medellín, na Colômbia, em 1968, e a Terceira Conferência, realizada em Puebla, no México, em 1979: opções preferenciais pelo jovens e pelos pobres.

No caso dos pobres, acusam alguns prelados e outras pessoas ligadas aos estudos sobre a Igreja Católica que as lideranças desta deixaram de lado os pobres das periferias e de comunidades cujos habitantes são excluídos das benesses da sociedade e das políticas públicas, que não atendem as suas necessidades, marginalizando-as, pois.

A derrocada, no Brasil, das comunidades eclesiais de base – CEBs –, dizem, é prova disso, ou seja, do abandono pela Igreja, favorecendo, assim, o surgimento e o aumento das denominações protestantes neopentecostais, que vão cada vez mais se afirmando no contexto político nacional.

A Igreja Católica dormiu, na ação política. Parece viver enclausurada nas quatro paredes dos templos e, ainda assim, o clero não consegue se unir, sequer, para levar adiante, e a bom termo, a DSI - Doutrina Social da Igreja. Uma pena! Esclareço que “ação política” significa a luta em prol do povo, que deve ser assistido, espiritualmente, mas, também, naquilo que, socialmente, lhe seja favorável para a afirmação da dignidade da pessoa humana.

As atuais divisões intestinas na Igreja só servem para diminuí-la como instituição. Às vezes, alguns dos membros de sua hierarquia – “alto” e “baixo” clero – lutam por posições ou para desestabilizar uns aos outros. As vaidades e as mediocridades estão à solta e estão em alta, nalguns momentos e nalguns lugares. Alguns não rezam a Oração de São Francisco: “Onde houver ódio, que eu leve o amor”. E “onde houver ofensa, que eu leve o perdão”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...