sábado, 30 de janeiro de 2021

ENFIM, A VACINA CHEGOU


  

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

Finalmente, após aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foi iniciada, em todos os estados brasileiros, a tão esperada vacinação contra a Covid-19. Todavia, o quantitativo de imunizantes disponibilizados nesta 1ª etapa, tanto da CoronaVac (Sinovac/Butantan) como da Covishield (Serum Institute of India/AstraZeneca/Oxford/Fiocruz) irão beneficiar menos de 5% da nossa gigantesca população.

Considerando as dificuldades na importação de insumos para a fabricação de mais vacinas e o surgimento de cepas do SARS-Cov-2, mais eficazes em sua transmissão, como a recém-detectada no Amazonas, os especialistas têm projetado um cenário preocupante para os próximos meses.

Não bastasse isso, logo entraram em cena, envenenando as redes sociais, aqueles que torcem para o insucesso da vacina porque apostam na terapia precoce, sem nenhuma comprovação científica, à base de anticoagulantes, Azitromicina, Cloroquina e Ivermectina. Este último produto tem sido utilizado, abusivamente, até como preventivo da Covid-19.

Vale ressaltar que a contenção da circulação de um vírus, determinando o sucesso de vacinação, acontece quando se atinge a imunidade coletiva ou de rebanho, quando um percentual da população, que varia com a eficácia da vacina, está imunizado. Quando foi divulgado que o resultado da eficácia global da CoronaVac, no estudo realizado pelo Instituto Butantan, foi pouco mais de 50%, os negacionistas de plantão, que politizaram a doença, não perderam tempo na tentativa de influenciar a população de que o resultado era frustrante, já que as pesquisas dos produtos da Pfizer/BioNTech e da Moderna exibiram eficácia de 95%. Baseado no viés cognitivo do fenômeno da ancoragem, muito utilizado em economia comportamental, quando a primeira informação ancora a percepção daquelas subsequentes. Então, ficaria a impressão de que a vacina chinesa só reduziria a probabilidade de se contrair a doença em insignificantes 50%.

Todavia, esta interpretação deve ser feita por outro prisma, ou seja, está sendo cortada, pela metade, a chance de pegar a Covid-19, proteção semelhante à proporcionada pela vacina contra a Influenza, utilizada anualmente, como importante medida de saúde pública.

Então, se toda a população fosse vacinada com a CoronaVac, estaria sendo feita a prevenção de 50% da virose, numericamente, um efeito expressivo. Por outro lado, a logística de distribuição desta vacina é muito mais factível em nosso país, já que requer armazenamento mediante refrigeração padrão, ao contrário dos mais eficazes produtos da Pfizer/BioNTech e da Moderna, que necessitam de serem acondicionadas a -70ºC (setenta graus centígrados negativos) e -20ºC (vinte graus centígrados negativos), respectivamente.

Portanto, para que a almejada imunidade coletiva seja atingida, vai ser preciso a compreensão da população da necessidade de vacinação em massa, seguindo as normas e o cronograma de prioridades estabelecidos e consciente da segurança deste ato. Por outro lado, urge que os governantes se mobilizem para enfrentar esse grande desafio, viabilizando a produção das vacinas de que dispomos e a chegada de outras, preferencialmente, mais eficazes para que sejamos exitosos na luta contra este poderoso inimigo.

A Ciência e Política não devem ser incompatíveis, cabendo aos homens de boa vontade, de ambos os interesses, procurar um denominador comum que possa dirimir as dúvidas e aparar as divergências, ficando, assim, como beneficiária toda a sociedade brasileira.

Finalizo, ressaltando que todos, mesmo os já vacinados, devem continuar mantendo as comprovadas medidas de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos.

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A CORINGA-VAC


  

 

José Lima Santana*

 

 

– Ô ruma de povo besta, meu Deus! Adonde já se viu dizer que um bicho vindo da China vai dar de botar todo mundo pra bater a caçoleta? Só mermo na cacunda de Belmiro de Chico de Maria, sujeitinho loroteiro que nem franga de primeira postura, que desembesta a gritar assustando até cobra que é mouca das duas oiças.

Pois foi assim que Tunico de Zé Gamela de Tonho de Francisquinho danou-se a desdizer o que o guarda sanitário Belmiro Alarico de Ferreira Fontes andava a alardear pelos bares e mais lugares de Cancela do Rio Comprido, cidadezinha modorrenta no encostado da Mata Grande, terra de moça bonita e homens descarreirados, tantos que eram os afamados pistoleiros ali gerados, a despeito dos muitos também tombados, podendo-se contar um magote infeliz de cruzes nas curvas de muitos caminhos. Tocaias em tocaiadores. E assim aquele mundo perdido girava e desgirava pela força do fogo expelido das armas.

Um bicho da China metendo medo até no padre Marcão Guedes, das gentes lá dos Guedes do Morro dos Macacos, lugar onde a bem dizer macaco nunca devera de ter botado os pés. Pois então, o padre Marcão num chegou até a fechar a igreja de Santa Luzia, protetora das vistas alheias, temendo que a desgraça do homenzinho de olhos miúdos matasse as beatas e ele próprio?

Padre sem fé. Desnaturado. Mais temeroso do que cavalo feridento no lombo, quando lhe vão botar sela ou cangalha. Padre destemente a Deus. Descrente que nem um herege que arrenegou a água da pia batismal. Um padre daquele nem padre devera ser. E olhe que era uma toleba de homem de quase dois metros de altura, parecendo um tronco de jequitibá lavrado. Cabra mal parido! Mal-empregado ser padre.

Belmiro era um quase doutor. Ele e Eduardo Rabelo de João de Tonca do finado Pedrinho Bertioga, dono do arremedo de farmácia do lugar. Não havia médico que desse batente na cidade, desde que o Dr. Lourival Pacheco por ali andejou há mais de vinte anos, levado pelo sogro, que desta já se fora.

O guarda sanitário receitava medicamentos do mato e de farmácia, competindo no aviamento com Eduardo de João de Tonca. Eram amigos e compadres, mas falavam mal um do outro, pelas costas. Na cidade apareceu, coisa de dois ou três meses, um sujeitinho amarelado, de pouca tintura nas veias, olhinhos repuxados, miúdos e rasos como uma poça de pouca água.

Arranchara-se na casa de Dona Doninha, mãe de Fulgêncio sapateiro, cujo marido tinha sido um temido matador, até ser tocaiado no caminho do Grotão, na curva da Mão da Onça. Pois bem. Ali arranchado, o homenzinho de longo cavanhaque como uma tripinha de fios mais negros do que as asas de um urubu, danou-se a tirar retratos de quem podia pagar. Foi uma festa. Embolsou uma papelama em notas sebentas.

Na falta de pensão na cidade, a casa de Dona Doninha fazia a serventia. Dá daqui e dá dali, dá dali e dá dacolá o tal sujeito, que se dizia chinês, numa linguazinha estranha, trocando os “erres” pelos “eles”, fez uma pequena fortuna na tiragem de retratos. Todo mundo que tinha uns trocados na gaveta, no bolso ou no colchão, não deixou de ser fotografado. Até Dona Doninha teve que pagar pelo retrato. Nada demais, todavia. Então ela não cobrou pela estadia do retratista? Cobrou de um lado, pagou do outro.

Foi-se o chinês e o bicho ficou. Um bicho que entrava pelos gorgomilhos das pessoas, estourando os foles da caixa dos peitos. Só podia ter sido herança do retratista de olhos apertados. Afinal, ele tinha um puxá danado, resfolegando como motor de fubica em dias de desmaio. Tossia uma tosse intermitente. Escarrava uma mistura de catarro e sangue. Sim, sem dúvida dele o bicho escapou.

Bicho que não se podia ver a olho nu. Uma bactéria, dizia o farmacêutico. Um vírus, rebatia o guarda sanitário. Da discrepância de pensamento originou-se uma contenda. Cada qual arrastou consigo um magote de seguidores. Belmiro receitava aos contaminados uma infusão de folhas de sabugueiro com cloreto de sódio em pedra, vulgo sal grosso. Ao passo que Eduardo Rabelo de João de Tonca aviava um vermífugo com mastruz e mijo de vaca.

Cada um, ou cada uma, ingeria o que achava da sua conveniência. O primeiro a morrer foi o velho Sabino sacristão, para o desespero do padre. Depois dele, a mulher de João das Porteiras, apelidada de Boca-de-autofalante. Falava mais do que Valtinho de Gonçalo quando estava bêbado e dava para fazer discurso político, fora do tempo de eleição.

Dali para frente, as pessoas foram caindo. O coveiro não dava conta. A Prefeitura contratou mais dois coveiros. E mais dois. Muita gente recolheu-se em casa. Mas, havia os que não davam fiança ao bichinho chinês. Estavam nos aglomerados, imprevidentes. O presidente da Associação Bolso Raso, uma entidade de defensores das armas de fogo, esbravejou contra a China, disse cobras e lagartas. O povo, no dizer dele, deveria sair à cata do retratista de língua estranha para dar-lhe uma sova bem dada. Tirar o couro, isto é, a pele. Fazer dele um pingo de carne e osso. Pense num cabra brabo, o tal presidente! O mal do chinês, como ficou conhecida a esquisita doença, escapou de Cancela do Rio Comprido. Afetou a redondeza. As autoridades cochilaram. Fizeram pouco caso.

Após duzentas e sessenta e duas mortes contadas, eis que a salvação apareceu. Não veio do guarda sanitário nem do farmacêutico. Veio não. Na verdade, a providência divina guiou Dona Margarida de Sá Doroteia do finado Murilo Amazonas. Ela leu num exemplar antigo do Almanaque “Bayer”, almanaque de farmácia, que num país distante, lá para as bandas das Índias, um caso aparentado com aquele de Cancela do Rio Comprido foi curado com uma injeção de Coringa-vac.

Pronto. Era só arranjar a dita cuja. Arranjou-se. Em meio a confusões, mas arranjou-se. Foi cura certa. Não morreu mais ninguém. Razão tinha Tunico de Zé Gamela de Tonho de Francisquinho. Um bichinho da China não tinha tutano para matar toda uma comunidade. Porém, matou muitos. E cada vida perdida não tinha, nem tem preço.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

IRRESPONSABILIDADE


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O Ano Novo chegou, trazendo para a humanidade a esperança de dias melhores. Afinal, algumas vacinas começaram a ser administradas, de forma emergencial, em vários países. Como já é de conhecimento geral, a maneira mais segura de conter a circulação de um vírus acontece quando se atinge a imunidade coletiva ou de rebanho, decorrente da imunização de percentual significativo da população. A maneira mais rápida e eficaz para se atingir a este objetivo é mediante a vacinação em massa da população.

Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA, aprovou, também, a utilização emergencial das vacinas CoronaVac (Sinovac/Butantan) e Covishield (Serum Institute of India,/AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fiocruz), sendo que a última ainda não está disponível em nosso meio, devido a entraves burocráticos.

Finalmente, na semana passada, cidadãos de todos os estados brasileiros, pertencentes aos grupos prioritários, passaram a receber, com indisfarçável alegria, a 1ª dose da vacina chinesa. Todavia, devido a produção limitada do imunizante, o número de privilegiados, nesta etapa, será desprezível.

A geração de mais unidades, depende da importação de insumos que ainda não deixaram o território chinês. Enquanto isso, o poderoso SARS-Cov-2, não para de se propagar em todas as regiões do país, deixando pacientes e familiares angustiados com a sua agressividade.

Não bastasse esse descaso, as vacinas disponíveis requerem mais de uma dose, implicando na quantidade dobrada de seringas e agulhas, bem como um número considerável de profissionais para executar a referida missão. 

Como era esperado, foram registradas, em todas as regiões do país, comemorações alusivas ao Natal e à virada do ano, eivadas de desrespeito às regras básicas de distanciamento social, de higiene das mãos e de uso de máscara. Este último importante acessório, quando, eventualmente, flagrado, geralmente adornava o queixo ou a testa do descuidado usuário. Como analogia, seria o caso do motorista que, na tentativa de enganar o guarda de trânsito, trespassa pelo ombro e tórax o cinto de segurança, mas não fixa a extremidade no local adequado.

Muitas festas só foram interrompidas mediante ação policial e foi possível ouvir, em reportagem veiculada pela televisão, o deboche que alguns participantes faziam da Pandemia. O mais assustador é que já foi detectado, em nosso meio, cepa do Coronavírus com uma capacidade de transmissão maior do que a anterior.

Isto porque a mutação sofrida por este nefasto agente infeccioso o tornou mais eficiente no processo de invasão das células do hospedeiro. Portanto, a segunda onda, que ora vivenciamos, pode ser mais “sufocante” do que a primeira.

O evidente aumento do número de infectados, demandando internamentos hospitalares, acontece em uma época desfavorável face às desativações, tanto dos hospitais de campanha, como dos esquemas de enfrentamento da virose, da maioria das instituições hospitalares públicas e privadas. Além disso, férias de fim de ano e infecção de profissionais podem comprometer as escalas de plantão.

Finalizo, ressaltando que o cidadão precisa se respeitar para poder exigir de seus governantes o merecido respeito.

 

 

* Prof. Titular da Universidade Federal de Sergipe - UFS e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

UMA SEMANA, DOIS FATOS

                                               Joe Biden

 

 

José Lima Santana*

 

 

A semana que finda e que teve início no último domingo, dia 17, deixa-nos algumas reflexões. Neste artigo, cuidarei de falar sobre os dois fatos que mais me chamaram a atenção: o início da vacinação contra a Covid-19, no Brasil, e a posse de Joe Biden, como 46º presidente dos Estados Unidos da América.

É uma pena que haja um embate ridículo, de cunho absurdamente eleitoreiro, entre o presidente da República e o governador de São Paulo. Para nós, brasileiros em São Paulo ou em qualquer outro Estado-membro, o que importa é que a vacinação seja realizada até alcançar o percentual da população que possa consignar o que sanitariamente se denomina “imunização de rebanho”.

As querelas politiqueiras abjetas entre o “senhor do Palácio do Planalto” e o “senhor do Palácio dos Bandeirantes” não dizem, ou não deveriam dizer respeito aos brasileiros que não se sentem confortados com tais brigas. Quero crer que isso toca à maioria da população brasileira, que tem a cabeça no lugar.

Todo mundo pode ter as suas preferências político-eleitorais, mas a ninguém é dado o direito de destilar ódio, seja lá em qual lado possa estar. Ora, a estratégia que se viu dos dois lados, ou seja, do “senhor do Planalto” e do “senhor dos Bandeirantes”, foi faturar de forma vergonhosa em cima do início da vacinação, cada um tentando jogar na lona o seu adversário.

A quem interessa a proclamação de um ganhador, nessa luta insana? A quem interessa, por exemplo, um chamar o outro de “moleque”? Em tese, a quem interessa saber se o SUS pagou pelas vacinas saídas do Butantã? A quem interessa saber se o governo de São Paulo foi quem pagou?

Em tese. De um ou de outro jeito, o dinheiro é público, dos brasileiros em geral ou apenas dos paulistas. Todavia, importa, sim, a verdade, quando refletimos que homens públicos precisam falar a verdade. O ministro da Saúde mentiu, ao dizer que o SUS pagou pelas vacinas vindas da China, que, antes, foram duramente criticadas pelo “senhor do Planalto” e seus defensores? Pouco se me dá. O foco não é esse.

Quando, no fim do ano, o “senhor dos Bandeirantes” anunciou que iria começar a vacinar no dia 25 de janeiro, disse que todo brasileiro que fosse a São Paulo seria vacinado. Um absurdo. Então, São Paulo se diferenciaria dos demais Estados, deixaria todos os outros para trás e, ainda, atrairia as pessoas que pudessem se deslocar ao mais rico Estado da Federação, em detrimento da maioria que não teria tal condição de deslocamento.

Egoísmo. Exibicionismo político. Então, em meio ao sono e às trapalhadas, o Ministério da Saúde, sem outro recurso, e precisando fazer frente a São Paulo, deu para implementar a requisição administrativa das vacinas do Butantã (ou da China) e, assim, tentou salvar a “lavoura” do governo federal.

No meio de tudo que se refere às vacinas, loas à ANVISA, cuja diretoria, unanimemente, aprovou o uso emergencial das vacinas do Butantã e da FIOCRUZ, estas ainda por vir da Índia. E a Agência Nacional de Vigilância Sanitária contradisse o que vinha proclamando as autoridades federais, ao afirmar que não existe tratamento preventivo contra o novo corona-vírus.

Mas, é possível que os negacionistas continuem a berrar que a cloroquina e outros remédios próprios para matar vermes são eficazes contra a pandemia. Tudo é possível. A esse propósito, o médico francês Didier Raoult, cuja defesa da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 o tornou mundialmente conhecido, voltou atrás no que antes tinha afirmado. Quem tem razão?

Que o governo federal possa assumir suas responsabilidades na condução efetiva e eficaz da política de saúde pública no país, lembrando que, por definição legal (Lei nº 8.080/1990), o Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição Federal, preconiza a gestão tripartite do SUS, isto é, a cargo das três esferas federativas, cada uma com as suas funções.

O Ministério da Saúde deve respostas ao povo. Deve desdobrar-se para que o povo brasileiro tenha as vacinas que precisa o mais breve possível. Para tanto, será preciso lutar contra o tempo perdido. Em junho do ano passado, o “senhor dos Bandeirantes” fechou contrato com o laboratório Sinovac, para a aquisição da vacina Coronavac, que até agora é a única vacina aplicada no país.

Goste-se ou não, se não fosse essa ação do “senhor dos Bandeirantes”, ainda não teríamos dado início à tímida vacinação. O Ministério da Saúde vacilou. Negligenciou. Dormiu no ponto. Errou feio. Precisa recuperar o tempo perdido, repito. Ficou, na gestão do atual ministro, tentando defender a ideia do tratamento precoce, agora chamado de “atendimento precoce”, depois das pancadas recebidas. Urge envidar esforços e tomar medidas firmes para a imprescindível mudança de rumo, na aquisição das vacinas. É o que devemos esperar.

Por fim, destaco a posse do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos. Isso interessa ao Brasil? Interessa ao mundo inteiro, sobretudo porque Biden põe fim, se é que se pode dizer assim, a um dos momentos mais drásticos da história do federalismo norte-americano, a era da “porra-louquice” de um supremacista egocêntrico chamado Donald Trump, que levou o país a uma nova guerra de secessão, embora sem o embate direto pelas armas entre o Norte e o Sul, como a verdadeira Guerra de Secessão, que se deu de 12 de abril de 1861 a 9 de maio de 1865, começando com a batalha de Bull Run, travada perto de Manassas, na Virgínia, e terminando após a batalha de Palmito Ranch, também conhecida como Palmito Hill, ocorrida em Cameron County, no Texas, quando a presidência dos EUA era ocupada por Abraham Lincoln e quando os escravos negros foram libertados, daí a deflagração da guerra.

Trump perdeu a reeleição. Temeroso de que isso pudesse acontecer, dadas algumas situações que o desacreditavam, como a inconsistência no combate à pandemia e as crises econômica e fiscal, ele antecipou uma frente de batalha contra supostas fraudes que jamais existiriam, como, deveras, comprovou-se, depois, não existiram.

Foi uma jogada velhaca, bandoleira, mas que levou apoiadores do presidente a erguer essa falsa bandeira das fraudes, chegando ao absurdo de promoverem a invasão do Capitólio, duas semanas atrás, inclusive com a incitação do próprio Trump, situação vexatória jamais imaginada na terra do Tio Sam. Uma mancha negra na democracia que é considerada a maior do mundo. Sabe-se lá!

O discurso de Joe Biden pode ser resumido numa frase por ele cunhada: “A democracia prevaleceu”. Que prevaleça a democracia em todas as partes do mundo. Que caiam os muros das restantes ditaduras, explícitas, como a da China, dentre outras, ou “disfarçadas”, como a da Rússia e outras mais.

E que a democracia, às vezes ameaçada por vozes soturnas de aves agourentas, como ocorre no Brasil, seja defendida por quem nela acredita e que por ela jamais deixará de lutar.

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
 

sábado, 16 de janeiro de 2021

A POSSE E A MORTE


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

A cidade amanheceu em rebuliço. Primeiro dia do ano. Não, o rebuliço não era o rescaldo pelos festejos da virada do ano, que, aliás, não ocorreram em face da pandemia. Era o dia da posse do novo prefeito, ou melhor, prefeita, do vice-prefeito e dos vereadores. Depois de trinta e dois anos no poder, o grupo de Aristides Fonseca Matos da Colina dos Afonsos tombou diante de uma menina, a Dra. Mônica Lima de Tonho de Malaquias.

Jovem, bem apessoada, formada em medicina, começando a vida com sucesso profissional. Filha do lugar, escolheu a sua cidade como local preferencial para o exercício da profissão.

Por trinta e dois anos, todos os candidatos que disputaram o comando da Prefeitura contra Aristides ou os seus candidatos, foram derrotados. Aristides conseguiu estruturar um poderio jamais visto na cidade. Ele, apaniguados seus ou parentes foram se revezando à frente dos destinos do município.

Mesmo com a redemocratização de 1988, mesmo com uma nova Constituição, e, portanto, com ares novos soprando sobre o país, ainda permaneciam certos grotões em que velhos coronéis davam as cartas, ou populistas de primeira, de segunda e até de terceira categoria foram assumindo posições municipais e estaduais. Federais? Também.

A vida política arrastava-se, como no passado, em vários dos mais de cinco mil municípios brasileiros. Os novos ventos não sopravam em todos os lugares, nem em todas as cabeças. Em cabeças ocas, ventos nenhuns ou velhos ventos.

Mônica Lima, aos vinte e oito anos, aceitou a candidatura a prefeita. Mobilizou a juventude, saiu às ruas e povoados, bateu pernas de casa em casa, ouviu o povo, não fez promessas, mas falou com firmeza, adquirindo a confiança dos eleitores. Aristides, do alto dos seus oitenta anos, ele mesmo o candidato à reeleição, esperneou, gastou uma dinheirama na penumbra, comprando votos.

Muita gente pegou o dinheiro do prefeito e votou em Mônica. Resultado: 2.247 votos de frente, a maior diferença registrada numa eleição para prefeito em Chapadão do Gentio. De onze vereadores, o lado da prefeita eleita conseguiu fazer nove. Uma vitória e tanto!

A pandemia impediu que a posse fosse festiva, como a ocasião merecia. Apenas os eleitos e uns poucos familiares compareceram à Câmara Municipal, na Rua de Cima. Na missa, às dez horas, o mesmo efetivo. A prefeita eleita fez circular dois carros de som, conclamando o povo a não comparecer às solenidades.

O povo obedeceu. Afinal, no município já se contavam vinte e cinco mortes pela Covid-19, um número alto para o lugar. A Prefeitura Municipal pouco ou nada fez para combater a propagação do vírus. O negacionismo tomara conta da administração anterior. “Só morre quem tem que morrer”, dizia o ex-prefeito. Afinal, para ele, tratava-se apenas de uma gripezinha.

Na campanha eleitoral, Aristides apelidou a jovem médica de “Curandeira”. Até um jingle sem-vergonha foi produzido, cujo refrão dizia assim: “Se você estiver de caganeira / Chame a curandeira / Chame a curandeira”. Como não falava no nome da candidata oposicionista, a Justiça Eleitoral nada pôde fazer, embora devidamente acionada.

A nova prefeita convidou uma jovem médica, sua colega de turma, para secretariar a Saúde municipal. Infectologista, ciosa das necessidades da população, já traçara, antes da posse, estratégias para impedir o aumento da propagação do vírus, através de medidas educativas em massa, dos aparatos necessários para dotar a Clínica de Saúde local, que a deixaria em boas condições para atendimentos iniciais, e do acompanhamento da população, realizado de casa a casa, inclusive com a aplicação de testes.

As esperanças do povo eram cada vez maiores na prefeita eleita, embora deu trabalho para Aristides largar o osso. O velho político chegou a alegar fraude na eleição. As urnas eletrônicas passaram a não ser da sua confiança. Alardeou que seria preciso imprimir uma comprovação dos votos.

Tomara um banho de votos e falava em fraudes, como se ainda vivesse no tempo em que ele e tantos outros fraudaram eleições, trocando “chapas”, alterando mapas de apuração, contando votos em branco como válidos etc. Na noite do dia 27 de dezembro, uma equipe de destruição foi detida quando estava prestes a incinerar uma pilha de documentos, nos fundos da Prefeitura.

A polícia foi acionada. Inquérito instaurado. Quinze pessoas ouvidas. Tudo levava ao ex-prefeito, o mandante. Dali até a posse, o rebuliço esteve por toda a cidade. Aristides seria indiciado.

As preocupações maiores da nova prefeita estavam, deveras, na saúde. Além do bate-boca infeliz entre os defensores das medidas científicas para impedir a propagação do novo corona-vírus e os defensores do negacionismo, estes formando um bando de tolos que contavam até com o respaldo insensato de alguns profissionais da saúde, havia, ainda, o péssimo exemplo de certas autoridades, desde as mais altas, que, de maneira estúpida, através de suas posturas não convencionais para a situação vivenciada, desdenhavam das quase duas centenas de mortes causadas pelo vírus devastador, espalhadas pelo país até o fim do ano.

A partir do dia 2, a secretária da Saúde começou o planejado trabalho de conscientização da população, para a tomada de medidas preventivas. Tão logo pudesse fazer compras dentro dos processos legais, distribuiria álcool em gel e máscaras de casa em casa, junto à população mais carente, a depender dos levantamentos que já estavam sendo feitos pelos agentes municipais de saúde.

Os dois vereadores da oposição, embora a Câmara Municipal estivesse em recesso parlamentar, berravam em bares e bodegas que a nova prefeita estava criando moda, fazendo besteira. Uns idiotas.

Na manhã do dia 5 de janeiro, eis que a Clínica de Saúde recebeu um paciente em estado mais ou menos grave. Naquele instante, ali se encontrava a prefeita, que, imediatamente, o socorrera, dando-lhe, de forma precisa, os primeiros atendimentos. O paciente foi encaminhado à capital, para o devido tratamento. Covid-19.

Mais um caso, dentre tantos que já tinham levado à morte vinte e cinco munícipes. Aquele paciente seria, seis dias depois, a vigésima sexta vítima local. Era Aristides, o ex-prefeito, o que tanto desdenhara da doença, chamando-a de uma gripezinha. Lamentável. Qualquer morte é para se lamentar.

Como bem disse o poeta inglês John Donne (1572-1631), em Meditações VII: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 10 de janeiro de 2021

DESRESPEITO


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O Ano Novo chegou, trazendo para a humanidade a esperança de dias melhores. Afinal, algumas vacinas com propostas promissoras já passaram pelo crivo das rigorosas agências reguladoras dos Estados Unidos e da Europa e começaram a ser administradas, sobretudo, de forma emergencial, em mais de 40 países, inclusive da América Latina.

Como já é de conhecimento geral, a maneira mais segura de conter a circulação de um vírus acontece quando se atinge a imunidade coletiva ou de rebanho, quando um percentual significativo da população está imunizado. A maneira mais rápida e eficaz para se atingir a este objetivo é mediante a vacinação em massa da população.

Pelo que se tem conhecimento, até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, ainda não autorizou a vacinação contra o poderoso SARS-Cov-2, que não para de se propagar em todas as regiões do país, deixando pacientes e familiares angustiados com a forma agressiva, que compromete os órgãos nobres daqueles que evoluem desfavoravelmente, afirmando, assim, a gravidade da Covid-19.

Não bastasse esse descaso, ainda não temos uma estratégia transparente para a imunização da nossa gigantesca população, muito menos estão disponibilizados os insumos necessários para tal. Para complicar mais a caótica situação, algumas vacinas disponíveis requerem mais de uma dose, implicando na quantidade dobrada de seringas e agulhas, bem como um número considerável de profissionais para executar a referida missão. 

Como era esperado, foram registradas, em todas as regiões do país, comemorações alusivas ao Natal e à virada do ano, eivadas de desrespeito às regras básicas de distanciamento social, de higiene das mãos e de uso de máscara. Este último importante acessório, quando, eventualmente, flagrado, geralmente adornava o queixo ou a testa do descuidado usuário.

Como analogia, seria o caso do motorista que, na tentativa de enganar o guarda de trânsito, trespassa pelo ombro e tórax o cinto de segurança, mas não fixa a extremidade no local adequado. Muitas festas só foram interrompidas mediante ação policial e foi possível ouvir, em reportagem veiculada pela televisão, o deboche que alguns participantes faziam da Pandemia.

O mais assustador é que já foi detectado, em nosso meio, cepa do Coronavírus semelhante à que foi registrada, recentemente, no Reino Unido, com uma capacidade de transmissão maior do que a anterior. Isto porque a mutação sofrida por este nefasto agente infeccioso o tornou mais eficiente no processo de invasão das células do hospedeiro. Portanto, a segunda onda, que ora vivenciamos, pode ser mais “sufocante” do que a primeira onda.

Conforme já ressaltado, o evidente aumento do número de infectados, demandando internamentos hospitalares, sobretudo em unidades de terapias intensivas, UTIs, acontece em uma época desfavorável face às desativações, tanto dos hospitais de campanha, como dos esquemas de enfrentamento da virose, da maioria das instituições hospitalares públicas e privadas.

Além disso, muitos profissionais de saúde programam as férias para essa época do ano, deixando as escalas de plantão no limite, sobretudo, quando se considera a possibilidade de infecção dos seus integrantes, como foi verificado no decurso da primeira onda!

Finalizo, ressaltando que o cidadão precisa se respeitar para poder exigir de seus dirigentes o merecido respeito. Não são somente os governos que têm que agir, também as comunidades para que a dor e o sofrimento sejam minimizados. “É parte da cura o desejo de ser curado” (Sêneca).

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 9 de janeiro de 2021

O LOBISOMEM MANCO


  

 JOSÉ LIMA SANTANA*  

 

O tempo certo, eu não sei. Foi por volta de 1958, 1959... Porém, o lugar era uma cidadezinha onde a iluminação pública, advinda de uma termoelétrica da década de 1920, era apagada às 23 horas, para a Prefeitura conter os gastos. Escuridão até o romper da aurora.

O padre Malaquias, passando dos setenta, não tinha sossego com as beatas em busca de água benta, para aspergir as casas, a fim de afastar o lobisomem. Uma dúzia de pessoas já o tinha encontrado. A fera soltava-se a cada quaresma.

Corria trechos, batia sete Freguesias, assombrando homens e mulheres, matando bichos para beber o sangue. Tonho de Alípio de Sá Francisquinha quase deu cabo do bicho. Travou luta corporal. Teve duas costelas quebradas, mas deu de cabo de rebenque na cabeça do excomungado.

As conversas rolavam soltas. Cada um tinha o que dizer. E inventar. Andar pelas ruas e becos ficou perigoso depois que as luzes se apagavam. O lobisomem tornou-se atrevido por demais. Corria e uivava pelas ruas mais afastadas, pelos becos de Zozimina, de Antero e de Robertina.

Galinhas espantadas, roupas rasgadas nos varais, cães uivando de forma medonha, saindo em desabaladas carreiras, eram os sinais incontestes de que o seboso andejava em maldita penitência. As pessoas de juízo recolhiam-se cedo. Quem não atinava para o perigo, podia sofrer graves reveses.

Numa casa de farinha, no subúrbio do Mané Patacão, umas farinheiras largaram a prensa e o forno e debandaram com o tinhoso atrás delas, pega, mas não pega. Foram socorridas por Zeca de Maninho, soldado do destacamento policial local, que ainda atirou a esmo, sem fazer pontaria, pois o lobisomem era mais veloz do que o carro de praça de Marcolino.

Corria a mais de 80 por hora. Era esse o cálculo que fazia Zeferino de Zé Biguá. Este pescador, escondido numa moita, o viu passar lá pras beiras do açude. Parecia um raio, riscando e sumindo no céu, ele disse. Começaram as suspeitas sobre quem seria o lobisomem, quem teria a sina pavorosa do encantamento.

Homem e lobo. Uma besta-fera, um monstro a carregar nas costas a maldição antiga, vinda das Europas no tempo da colonização. A maldição passava de geração em geração. Diziam pessoas mais velhas que na Serra da Queda d’Água, nos sertões da Caatinga Cinzenta, uns vaqueiros deram cabo de um desses bichos.

Mataram-no com uma bala de prata que um deles carregava na algibeira, pois o seu pai tinha sido morto por um lobisomem, nas Alagoas. O moço prometeu ao pai agonizante que, um dia, vingaria a sua morte, fosse com qual lobisomem fosse. Promessa cumprida. Abatido o lobisomem, ao raiar do dia o encantamento se desfez.

Era o filho do fazendeiro, patrão daqueles vaqueiros. O rapaz tinha herdado a sina do avô. O fazendeiro, que fugira de Pernambuco, procurando afastar-se da maldição que pesava sobre a família desde os tempos dos holandeses, morreu de desgosto diante da morte do filho único. Era o que diziam. E era no que se acreditava.

Alguns homens, liderados por Ezequias do finado Vavá do Brejão de Cima, marchante destemido, bom de briga e de fazer zoada, tomaram a empreitada de emparedar o lobisomem. Custasse o que custasse, eles acabariam com o malvado. Era o trato a ser cumprido.

O tenente Valdomiro Olho de Sola conseguiu com o prefeito uma recompensa em dinheiro vivo, pois a palavra do alcaide não era suficiente, posto que, ladino, não era macho suficiente para a cumprir, recompensa a ser dividida entre os tais sujeitos, se fossem eles os abatedores do bicho.

O próprio tenente, o sargento Belisário, que, jovem soldado, esteve na Volante do tenente Firmino Carniceiro, e o soldado Zeca de Maninho formariam outro grupo para dar caça ao lobisomem. Quarta-feira à noite. Os dois grupos de caçadores eventuais de lobisomem puseram-se em ação.

O tenente e os demais militares tomaram o rumo do beco do açude, onde o bicho fora visto duas ou três vezes. E o grupo do marchante Ezequias rumou para a estrada da Fazendinha, da qual o lobisomem era vezeiro frequentador, correndo trecho e cometendo diabruras.

Era noite de lua cheia. Noite propícia para lobisonagens. Noite de pios assustadores de corujas rasga-mortalha, de silvos de cobras vadias, de cães em completo desvario. Dizia-se até ser noite de almas penadas vagando em lamuriosas penitências e negras assombrações.

A lua cresceu no céu. Subiu o máximo que pôde. Derramou um bordado de prata sobre o mundo. As horas da noite deixaram-se vencer pela meia-noite e esta pelas horas da madrugada. Nas duas sentinelas, a do tenente e a do marchante, nada aconteceu.

O lobisomem parecia estar de folga ou traquinando noutras paragens. Àquela altura, o grupo de Ezequias já tinha dado cabo de seis garrafas de cachaça. Estavam todos truviluscos. De chofre, um rebuliço na margem da estrada, na matinha de Geraldinho de Tuca do Baixó.

Espingardas, facões e porretes de prontidão, Ezequias e seus companheiros avançaram para a borda da matinha, menos Zito de Maria Gorda, que, tremendo como vara verde, molhou-se todo e ficou petrificado na estrada, espingarda emperrada nas mãos. Cabra frouxo da gota!

Eis ali o virador de lobisomem. Roupa esfarrapada, sujo de sangue, um tatu pendurado pelo rabo. Os lobisomens bebiam sangue de animais. Ali estava a prova de que Antônio Amarelo, como muita gente suspeitava, era o lobisomem. Agarraram o sujeito e o levaram, em algazarra, ao quartel da polícia.

Alguém foi chamar o tenente. “Pegamos o labisome, tenente”. Passava das três da madrugada. No quartel, o tenente deu conta de Antônio Amarelo, mais sem sangue do que nunca, uma perna mais curta do que a outra. A camisa rota, manchada de sangue. O tatu, no chão, morto, botando sangue pela boca.

O grupo de Ezequias em alvoroço. O labisone, enfim, estava descoberto. O povo tinha razão em suspeitar do Amarelo, sujeitinho esquisito, cortador de caminho, que vivia no esconde-esconde e coisa e tal.

O tenente balançou a cabeça. Esboçou um sorriso de zombaria. E disse: “Ô bando de incompetentes, onde já se viu um lobisomem manco? Lobisomem corre trecho, mais rápido do que cavalo desembestado. Este amarelo é manco. Nem anda direito, quanto mais correr como a peste. Vocês beberam além da conta”. Um lobisomem manco?

Era mesmo para rir. Naquela mesma madrugada, uivos medonhos foram ouvidos para as bandas do açude, onde o tenente e seus companheiros estiveram de tocaia. Por ali, cinco galinhas do quintal de Zefinha Cabeça de Balaio amanheceram mortas, destroçadas. Outro era o lobisomem, e não o pobre manco Antônio Amarelo, caçador de tatus.

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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