domingo, 29 de agosto de 2021

A MORTE DA DEMOCRACIA


  

 

José Anselmo de Oliveira*

 

 

Os ataques contra a democracia nascem com o discurso falso de que é o exercício do direito à liberdade de expressão.

Aqui não importa se os ataques partem de qualquer pessoa, e isto já seria muito grave e merece total reprovação. E gravíssimo é quando o ataque parte do mandatário do país, o próprio chefe de estado e de governo, o presidente da república, que de forma irresponsável vem incentivando a população se armar em resposta ao que ele chama de “intromissão dos outros poderes” que estariam impedindo o exercício de governar. Nada mais falso e enganoso.

O discurso dirigido a fanáticos, religiosos e políticos, disfarça o tom autoritário e a vontade manifesta de ser um tirano no poder, dotado do poder absoluto, capaz de decidir pelas maiores atrocidades de acordo com a sua visão de mundo.

A liberdade de expressão é um direito fundamental para uma sociedade democrática, porém não pode ser absoluta, pois assim estaria legitimado todas as formas de preconceito, discriminação e de violência.

As normas da constituição brasileira de 1988 tem como princípio implícito, a ponderação. No conflito entre princípios, regras e direitos devem prevalecer o que tiver mais relevância.

Tão somente para exemplificar, entre o direito à liberdade de expressão e o estado democrático de direito, por óbvio deve preponderar o estado democrático de direito, pois sem ele, não há liberdade alguma. Daí, não se pode usar a liberdade de expressão para destruir o estado democrático de direito, os demais poderes ou as conquistas de direitos fundamentais ainda que contrariem a visão de mundo de um grupo.

O Brasil vive um momento grave de sua jovem experiência democrática, pois está sob o ataque de pessoas que sem nenhuma responsabilidade pretendem impor uma ideia de conservadorismo que se constitui em ideias atrasadas e que já fizeram parte em passado recente de momentos autoritários na Alemanha nazista e na Itália fascista.

A ignorância das pessoas quanto à história política mundial facilita a divulgação de forma falseada de ideias já conhecidas e rejeitadas pelo mundo, de tal forma que uniram ideologias antagônicas como o capitalismo e o comunismo, Estados Unidos e a antiga União Soviética, juntamente com a Europa ocidental, na vitória na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas, falsos moralistas e conservadores, genocidas e autoritários, que espalharam morte, dor e sofrimento.

Estão tentando transmudar a data histórica do 7 de setembro que marca a independência do Brasil de Portugal, como se fosse a data dos que desejam instalar uma ditadura típica do passado da América Latina com generais e capitães a se autoproclamarem salvadores da pátria.

No passado, e ainda no presente, generais e capitães na pobre América Latina, aproveitaram da ignorância política, do analfabetismo funcional e do uso da mentira, para se tornarem ditadores, senhores da vida e da morte de muitas pessoas que lutaram pela democracia.

O que eles têm em comum? O uso do discurso contra o comunismo e contra a imoralidade. Comunismo aonde? Imoralidade aonde?

Eles criam os mesmos inimigos que povoam o inconsciente coletivo, como o medo do fim do direito à propriedade, o que é uma mentira, pois um dos pilares da nossa constituição é o direito à propriedade. Assim, não há espaço para doutrinas que neguem o direito à propriedade individual como o comunismo.

O discurso moralista é outra mentira, pois basta observarmos a vida dos que o defendem são pessoas violentas, algumas ligadas às milícias que matam e exploram as pessoas mais pobres, inclusive vivem da exploração sexual em algumas áreas. Pessoas que o normal de seus discursos é preencher a ênfase com palavras de baixo calão, ou “palavrões” no popular.

O 7 de setembro poderá ser maculado para sempre e a história registrará esse grave atentado à memória histórica da luta pela independência e o ataque contra o estado democrático de direito incentivado pelo próprio presidente da república em reiteradas manifestações em lives, entrevistas e discursos em frente a sede do poder executivo e em igrejas evangélicas que o apoiam.

O comportamento do presidente é crime contra a Constituição e contra o Estado Democrático de Direito e a omissão dos que devem por razão de ofício denunciar e não o fazem também é crime.

Pagaremos um preço muito alto pela omissão e prevaricação de alguns e pela absoluta falta de compromisso com a democracia de outros.

 

 

* Membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Educação e da Academia Capelense de Letras e Artes.

VIDA PERDIDA?


  

 

José Lima Santana*

 

 

Correr, não corro. Corro não, meu amo. Barbaridades eu vi. Onça comendo menino de descuidosa mãe, a lavar roupa no córrego. Vi. Índio velho, bugre em gruta entocado, botando demônios para correr. Bugre velho sabido nas coisas sem compreensão de homens brutos como eu. Sabedoria dos espíritos. Vi.

Boi marrento, metendo medo em peões, desafiando meio mundo da peonada. Também vi. Padre Firmino, batina preta, surrada, curando doença muita da caboclada ribeirinha, nos Morrões do Antero, eu vi. Homens malvados a mando de coronéis poderosos e sanguinários, vi aos montes. Lutei contra eles. Ferido fui. Perdi as contas de vezes quantas. Rios de sangue. Carcaças humanas em decomposta fedentina. Vi.

Andar por mundos virados e revidados, andei. Fome muita passei. Mão cheia de farinha para semana de fome. Até cobra comi. Um naco de palmo cabeça abaixo e outro de rabo acima, retira-se. O resto, tirada a pele, é como peixe. Cuidado só para não ferir mão e boca com espinhas. Veneno. Mata não. Deixa só engangrujado, Mão ou cara. Pior de todas, urutu cruzeiro. Bicha desalmada. Criação de Nosso Senhor pode ser não. Coisa do demo.

Pois, então, amo meu, corri estradas e veredas. Tempo passei escondido nos sertões. Noutros sertões. Morte causei. Sujeito rico. Desgraçador de donzelas. Sumiu com a honra de prima minha, Zelinha da tia Maria Romana. Sem pai e sem irmão que lhe valessem, fiz-me no mundo e nas armas. Rico também morre.

Deitei punhal lubrificado com veneno de sapo-ponta-de-flecha. Mortal. Bucho rasguei em cruz. Vinte ou mais homens no meu encalço. Caí nos sertões. Matei dois ou três. Matar para não morrer será pecado, meu amo? Acho que não. Lá sei! Nosso Senhor misericórdia tem. Esperança minha.

Fui a júri. Sorte minha, sargento primo falecida mãe minha me prendeu. Se jagunçada fosse, eu morto estaria. Doutor Rábula fez caprichosa defesa. 4 a 3 favor meu. O outro homem de saia preta recorreu. Ganhei. Disseram que foi primeira vez que homem rico foi morto e matador se livrou. Sei não. Tempos mudando?

Ruim de todo sou não. Misérias fiz. Bondades também. Entre abismos e retidões, a meio caminho eu tô. Madurando. Se não tô em falseado erro, fiz trinta janeiros, mês passado, mês Senhora Santana, santinha devoção mãe querida minha, que Nosso Senhor a tenha. Sem mãe, já morta, e sem pai conhecido. Irmãos tive. Morreram de doenças. Meninos ainda.

Estou só. Família necessito formar. Mas, como? Vida minha desgraçada. Terei jeito? Amo meu, de sabedoria livresca, me diga. Terei jeito nessa vida? Querer, eu quero. Mudança de vida é coisa das vontades. Não sou desprovido de tino. Escola nunca tive. Nunca. Nunca. Desalfabetizado sou. Como tronco de pau, de baraúna sou. Bruto, rijo, nem medo de raio eu tenho. Tenho não. Do mundo sei buscar defesa. Tô vivo.

Amo meu, brigas nunca criei. Muitas enfrentei por precisas precisões. Se posso, passo ao largo. Se não posso, não corro. Enfrento. Abençoada hora que amo meu me botou contrato pra guia. De tudo conheço nestes sertões. De tudo. Se amo quiser, pode anotar nos cadernos aí, virações triste vida minha. Se prestar pra alguma coisa. Talvez preste não. Vida doida. Perdida.

Ali adiante, bifurcação dos Ferreiros. Tempos do imperador, dizem antigos, um capitão e cinco soldados deram conta de muitos bugres. Homens maus. Matar índio é perversidade. Índios donos antigos, primeiros, de tudo isso. Bons sentimentos merecem. Eu mesmo nunca pelejei contra bugres. Respeito por eles tenho em grande conta.

Para adiante da bifurcação, seis léguas adentro, fica arraial da Aparecida. Não se trata da santa dos paulistas. Era uma velha benzedeira. Dizem que se evaporou numa luta com o diabo. Histórias são muitas nestes sertões. Tem até uma da moça que virou flor d’água. Perdeu moço bonito pra cobra grande, sucuri. Chorou na beirada do rio. Um ano inteirinho de choro. Enchente a engoliu. Virou flor. Uns acreditam, outros não. De nada desacredito. Melhor assim. Corre-se menos riscos.

Olhe o céu, amo meu. Sol turvando, perdendo cor. Nuvens fortes estão por vir. Aguaceiro, na certa. Bifurcação dos Ferreiros tem abrigo. Casa de pouso. Comida e bebida lá têm. “Seu” Alonso é dono. Preto velho, filho de antigos escravos do Barão do Alto da Cascata. Barão não quis libertar escravos na Lei da Alforria. Escravos deram cabo dele.

Carnificina autoridade mandou fazer. Morreram pra mais de trinta negros. Bugres e negros sofreram da banda podre da peste, meu amo. Com licença da palavra ruim. ‘Seu” Alonso feliz com gente passando. Ele faz boa bebida de milho e frutas do mato. Gosto bom. Quem não tem costume, dizendo besteiras fica. Visões tem. Acostumei.

Comida é de terreiro, galinha e pato. E do mato. Boas caças. Podemos pernoitar ali. Deixar chuva passar. Olhe o céu. Vai ser da grossa. Tempo de aguaceiro é. Rios vão botar cheia. Renovação da vida.

Amo meu, de pouco conversar. Vejo riscar cadernos. Anota o que pode. E quer. Nomes de bichos e plantas. Causos. Páginas muitas. Já se vão seis meses nesse batido. Contrato bom. Só na palavra. Pagamento certo. Por estes sertões de agora, sobrosso não tenho. Por aqui andei em paz, faz tempo. Porém, se imprevistas tempestades vierem, não vou correr. Corro não.

Preciso criar raiz. Como pé-de-pau. Como baraúna. Uma mulher. Família. Terá jeito vida minha? Vida doida, perdida. D’eu, Nosso Senhor misericórdia tenha.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de /direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

DIETA COM QUALIDADE OU COM QUANTIDADE?


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Vivemos uma pandemia de obesidade e a alimentação adequada constitui um dos pilares de saúde pública. O consumo regular de carboidratos, oriundos de grãos integrais, vegetais e frutas in natura, além da substituição de gordura saturada por insaturada, tem se associado a um menor risco de doenças cardiovasculares.

Na maioria das pessoas, o carboidrato é a principal fonte calórica, fornecendo 50% ou mais de energia diária, com menor participação de gorduras e proteínas. As dietas com baixo teor de carboidratos (< 26%) conhecidas como low carb, tornaram-se uma estratégia popular para redução de peso, todavia, a longo prazo, o seu real benefício para a saúde daqueles que a praticam tem sido controverso.

O que traria mais benefício para a saúde, a quantidade ou a qualidade dos macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras) da dieta? Para responder a este intrigante questionamento, foi conduzido um estudo de coorte prospectivo, envolvendo 37.233 voluntários, com idade média de 49,7 anos, por um período de 15 anos e publicado no prestigiado periódico JAMA Internal Medicine.

Por meio de recordatórios alimentares de 24h, as dietas pobres em carboidratos foram pontuadas em saudáveis e não saudáveis, de acordo com as referidas composições. Os autores concluíram que a redução de mortalidade, proporcionada pela dieta low carb, associa-se ao aumento do escore de componentes saudáveis.

Portanto, os achados do referido estudo demonstram, claramente, que a saúde é influenciada pela qualidade e não pela quantidade de macronutrientes. Concluindo, não existe fórmula mágica para o emagrecimento. Mais importante do que o tipo de dieta a ser seguida, é a escolha da qualidade e das fontes de alimentos.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

domingo, 22 de agosto de 2021

TRAVESSIAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Rio grande, rio largo, rio cheio. Dificultosa travessia. Naçãozinha de peixes de afiados dentes, como lâmina minha, dos dois lados vazada. Piranhas. Jogar boi n’água para se desviar da sanha assassina. Bois manhosos, sinhô meu. Pressentem a quietude dos peixes. Refugam água.

Quietude passageira. Tudo na tocaia, rebuliço espreitando. “João, ô João Valdivino, cê bote esse boi velho de canga no aprumado do val deste rio”. Boi de piranha tem de ser velho, de serventia pouca. Salva a boiada. Dez anos beirando e vadeando essa ribeirama, nas enchentes ou nas vazantes. Desde menino.

Rios de monta. Grandes, largos, assustadores. Ou riozinhos de pouco caprichamento, travessia em miúdas caneladas. Por aqui aprendi a viver. Largo não. Onde ter afortunada liberdade? Na cidade? Na Vila dos Martins, antro de velhacos e ladrões? Gostei não. Patrão meu levou-me, um dia. Dia só. Desmiolei.

Lugar de atoleimada perdição. Filho de patrão meu deu-me endereçamento do mulherio. Bocas pintadas, carnes em desavergonhado mostramento. Dinheirão paguei. Bebi dois tragos. Conta quase maior que salário. Azucrinei. Filho patrão meu, “seu” Tulho dó ele teve. Molhou mão minha. Dinheiro de retorno em festejado acolhimento.

Mãe precisada de coisas. Melhor presentear mãe minha que suspirar a quase morrer em louco desvario. Homem sou em tudo provado. Mas, tenho cá de meu certo sentimento. Comedido sou. Nisso mal não há de haver. E tem a Maria Júlia. Ela merece não, namorado cachorro.

Lugar meu é aqui. Varando rios. Vento solto, tangendo galhadas em voz de penadas almas. Sol rasgando véus da madrugada, acordando onças e bois, aves e bichos de outras tantas nações. Dias acalorados antes dos aguaceiros. Pastos secam. Rios engolidos, peixes e jacarés morrendo. Festa de urubus.

Nosso Senhor apieda-se de nós. Demora por vezes. Pai meu dizia que Deus zangava dos homens impenitentes. Impenitentes. Não sei o que vem a ser. Perguntar não pergunto. Sou assim. Fico remoendo palavras. Impenitentes... Sei não. Coisa boa não há de ser. Castigo de seca, Deus manda. Castigo de água além da fartura, também manda.

Dos pecados tudo depende. Na cidade, pecados de monta eu vi. Caí. Boca pintada entortou caminhar meu. Dia só. Guentei não. Patrão meu viu desassossego em minha cara. Por “seu” Tulho, ele mandou botar-me de volta. Alívio. Maria Júlia nunca que possa saber do meu desatino na casa da perdição.

Ruim de todo não foi. Sem-vergonhice demasiada. Urrei feito boi cavando formigueiro. Vinte anos sem conhecer tremor do corpo meu em cima de corpo outro. Destemperado desfalecimento. Gostei e desgostei. Maria Júlia não me perdoava, se soubesse. Saberá não. Dinheiro gasto “seu” Tulho compensou. Sorte minha.

“Seu” Tulho tem pouco mais da minha idade. Gosta dessa vida descarada com mulheres de bocas pintadas. Patrão meu parece ter orgulho de “seu” Tulho ser assim como galo em sortido terreiro.

Eh, rio grande, rio cheio! Travessia terceira deste ano. Duas em baixa. Essa, não. Água fazendo barulho, assustando. Piranhas na espreita. Boi velho na água. Sem força para vencer o rio. Desanda. Muge alto. Muge ainda mais alto e triste. Lamento dolorido. Água avermelhada fica.

Boiada passando adiante. Piranhas tributo cobram. Essa é a vida. Dos bois e nossa. Travessando. “Ô Rodolfo, tu hoje tá com a pá desvirada, meu filho? Tu tá cego? Aprume aquela rês, senão piranhas terão gordo repasto”. Capataz nosso, duro como pedra. Amigueiro, porém.

É padrinho meu. Grandioso respeito tenho. Tomo bênção. De paparicos não ando. Quero não ver olhos atravessados companheiros meus. Iguais temos que ser. Sem preferências. Pai meu ensinou-me viver assim. Rezo por ele. Pouco rezar eu sei. Rezo de coração, silencioso. Enchente engoliu pai meu. Salvou filho de Rosa de Artur, mas desceu em águas turvas e desapareceu. Nunca que achamos. Travessias. Tudo são travessias.

Vinte anos. Mãe minha diz que hora é d’eu ter mulher e filhos. Casa já tenho. Maria Júlia tenho. Ela me tem. Um peão. Pouco posso oferecer. Ela tem mais. Tem estudo. Lê bem e conta bem. Teve oito anos de escola. Tive só dois. Nunca completos. Soletro quase ruim. Contar eu sei. De cabeça.

Pouca conversa nossa, d’eu e Maria Júlia. Namoro mais de olhos. E de silêncios. Risos encabulados. Sinto coração dela bater igual ao meu. Mãe minha diz que há bem-querer nela e n’eu. Dona Celina, mãe dela, não desdiz. “Seu” Antero faz alarde: “Tu é como um filho”. Disso eu faço gosto.

Maria Júlia tem vestido de casamento aprontado por ela mesma. Costura bem. “Seu” Antero comprou máquina novinha em folha. Moderna, diz ele. Filha única merece. Quero muitos filhos. Cinco ou seis. Rico não sou. Morrer de fome ninguém vai. Trabalho duro. Tenho tino.

Seis rezes tenho, nelores. Roçado tenho. Patrão meu, d’eu não desgosta. Um dia, serei capataz. Padrinho meu para isso me prepara, eu sei. Ele nada diz, mas sinto. Logo, ele vai armar a rede no alpendre. Dos setenta, passou já. Pode descansar sem que nada lhe falte. Bom pé de meia tem.

Travessamos. Nenhuma rês perdida. Piranhas satisfeitas. Boi velho em seus dentes. Maria Júlia espera nossa passagem. Minha passagem. Casa dela ali perto. Cinco semanas sem me ver. Boiada tocada sem pressa. Paro o cavalo. Peço um copo d’água. “Boas tardes, Dona Celina”, digo levantando o chapéu.

“Maria Júlia sonhou contigo, noite dessa”. Ela teme que eu desgoste da filha? Precipitar precisa não. “Eu também sonhei”, digo, todo mentiroso. Não faz mal. Assossega o coração da mãe. Bebo a água fria. Reclino-me no arção da sela para tocar cabelos amada minha.

Ela toca-me a mão. Segura. Aperta. Olhos minando água. Olhos negros como a noite mais escura. Lindos. Miúdos como dos índios bugres. Parecem em minha alma penetrar. Sorrimos acanhados. Não sei se é isso que de amor se chama. Deve ser. Arara-azul voa e revoa sobre nós. Bom sinal. Sinto redemoinho no peito. Deve ser amor. Bem-querer. Eu sou só um peão. É preciso mais para ser feliz?

Travessias. Tudo no mundo são travessias...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 15 de agosto de 2021

DIETA LOW CARB REDUZ MORTALIDADE?


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Vivemos uma pandemia de obesidade e a alimentação adequada constitui um dos pilares de saúde pública. O consumo regular de carboidratos, oriundos de grãos integrais, vegetais e frutas in natura, além da substituição de gordura saturada por insaturada, tem se associado a um menor risco de doenças cardiovasculares.

Na maioria das pessoas, o carboidrato é a principal fonte calórica, fornecendo 50% ou mais de energia diária, com menor participação de gorduras e proteínas. As dietas com baixo teor de carboidratos (< 26%) conhecidas como low carb, tornaram-se uma estratégia popular para redução de peso, todavia, a longo prazo, o seu real benefício para a saúde daqueles que a praticam tem sido controverso.

O que traria mais benefício para a saúde, a quantidade ou a qualidade dos macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras) da dieta? Para responder a este intrigante questionamento, foi conduzido um estudo de coorte prospectivo, envolvendo 37.233 voluntários, com idade média de 49,7 anos, por um período de 15 anos e publicado no prestigiado periódico JAMA Internal Medicine.

Por meio de recordatórios alimentares de 24h, as dietas pobres em carboidratos foram pontuadas em saudáveis e não saudáveis, de acordo com as referidas composições. Os autores concluíram que a redução de mortalidade, proporcionada pela dieta low carb, associa-se ao aumento do escore de componentes saudáveis.

Portanto, os achados do referido estudo demonstram, claramente, que a saúde é influenciada pela qualidade e não pela quantidade de macronutrientes. Concluindo, não existe fórmula mágica para o emagrecimento. Mais importante do que o tipo de dieta a ser seguida, é a escolha da qualidade e das fontes de alimentos.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

ASSOBIO DE JEGUE


  

 

José Lima Santana*

 

 

Janjão de Totoin Peidão era useiro e vezeiro em botar apelidos nas pessoas. Um era Boca de Lata; outro, Sapo Morto; uma era Chica Rabo de Cotia; outra, Ciça Mula Sem Cabeça... E por aí iam os apelidos. Ali, em Borda dos Angicos, todo mundo tinha um apelido. Até Janjão. Chamavam-no Assobio de Jegue, porque, de acordo com a avaliação abalizada de Rute Coceirinha, o tal vivia relinchando como jumento, nos seus dizeres mal ditos.

Pensem os leitores num sujeitinho enxerido, dando conta de tudo que se passava, ou não se passava, naquele arremedo de cidade, que mais parecia um povoadozinho xexelento de pé de grota, como tantos que havia nos sertões do Barro Preto, terras ásperas, onde achar um veio d’água era um milagre como aqueles dos tempos do Filho do Criador.

Assobio de Jegue deu de inventar “cornuras” nas pessoas da cidade vizinha, a mais próxima. Sim, apontar chifres enfeitando testas de homens e mulheres em Capim Alto, era o seu “esporte” favorito. Para ele, todo mundo era corno ou corna. Corna, na boca do povo, bem sabido. Porque a palavra corno não flexiona, serve para os dois gêneros.

Corna, na verdade, é buzina em italiano, língua na qual Assobio de Jegue era doutor. Oxente! Doutor em italiano, Janjão de Totoin Peidão? Sì e perché no? Então, ele não arribou para São Paulo, num dos anos mais secos que canela de defunto, da cova tirada três ou quatro anos depois do sepultamento?

Pois foi. E por lá meteu-se de trabalhar como ajudante de padeiro na padaria de uma italianada do Bexiga, bairro paulistano dessa gringada das Europas. Na volta, depois de seis meses por lá passados, falava italiano melhor do que os nativos da terra onde o Santo Padre tem assento.

Foi um botar de banca infeliz! Era um tal de boun giorno (que ele dizia “bondjurnu”), um tal de grazie mille (ou “grassmili”, na boca dele) e o escambau. Voltou mais falante do que Ariosto, Petrarca, Boccaccio, Dante Alighieri, Umberto Eco, Italo Calvino, Elena Ferrante, Alberto Moravia e o menos maquiavélico de todos os gênios dos tratados políticos, ele, sim, Nicolau Maquiavel.

E, claro, de tantos outros filhos da Calabria, da Toscana, do Lazio, do Veneto, da Umbria, da Lombardia (para os milaneses, essa é a verdadeira Itália) ou de qualquer outra região da famosa “Bota Europeia”.

De tanto entortar o bico para parlare italiano, Assobio de Jegue, batizado como João e registrado como João dos Santos Casado, caiu nas graças da filha de Desidério Pinto, tropeiro das antigas, que viu rachar muitos cascos de mulas pelos sertões afora. Lucinha achava uma graça o namorado falante em língua das estranjas.

Aliás, um homem de futuro, podia-se ver. Na corporação da Briosa. Pois deu Assobio de Jegue, muito bem apadrinhado, de assentar praça na Polícia Militar, façanha de um primo de sua mãe, que era metido a trocar pernas ao lado de políticos. Envergando a farda cáqui, Assobio de Jegue passou a ser o soldado João de Totoin. Uma autoridade a merecer o respeito de todos.

Quem não lembra da autoridade do Soldado Amarelo, diante de Fabiano, de Vidas Secas, estando aquele perdido na caatinga e o vaqueiro de Graciliano Ramos com ganas de descer o facão no quengo do tal sujeito, que lhe dera uma surra num jogo de cartas, no qual o marido de Sinhá Vitória entrou por absoluta pressão do soldado sem sangue? Fez aquilo não. Não lhe rachou o quengo. Ali estava a autoridade, representada pelo soldadinho amarelo. Melhor respeitar.

Mal completou oito meses de farda cáqui, Assobio de Jegue, quer dizer, o soldado João de Totoin viu-se diante do altar da igrejinha de Nossa Senhora do Pilar, olho no olho de Lucinha, que passaria a chamar-se Maria Lúcia Pinto Casado. O parente distante, que lhe apadrinhara na entrada para a vida militar, viera de longe com a esposa, uma matrona cheia de vontades e de cara amuada.

O primo já chegou falando em votos para o deputado Fulano, de quem era cabo eleitoral. A eleição ainda seria dali a dois anos. Não custava, porém, prevenir. Em política, naqueles tempos, devia-se ter passo ligeiro e bolso fundo. “Passarinho madrugador é sempre o primeiro cantor”, dizia o cabo eleitoral.

Festança em ordem de pobre. Casamento mais do que promissor. No bucho, Lucinha de Desidério já levava, sem saber, dois filhos. Um era a conta de que ela tinha certeza, mas eram dois. O soldado Assobio de Jegue, ou seja, João de Totoin, não era de bater fofo.

Passado um ano e pouco, João de Totoin foi mudado de cidade. Mandado a destacar em Capim Alto, a cidade, onde, segundo ele, todo mundo botava e levava chifres. Imaginem os leitores que, nos confins dos sertões, as falas boas ou más, estas mais ainda, circulavam como moscas varejeiras. Pois, então?

Em Capim Alto, muita gente já sabia que Assobio de Jegue, frequentador daquela localidade, especialmente no dia de feira, o sábado, pois fora feirante, antes de tornar-se um homem da Briosa, andara difamando as pessoas dali. Num dos dias de feira, um caboclo sem papas na língua perguntou-lhe se confirmava o que dele se dizia, qual seja, a má fama que, segundo os boatos, ele botara nas pessoas de bem, pois de bem eram todas, no entendimento do caboclo.

Assobio de Jegue, pois assim ainda o era, desconversou, ficou da cor de burro quando foge, maneou o quengo e falou meio-gago: “Que é isso, amigo? Aqui é lugar de gente da maior finura”. O interpelador deu-se por satisfeito e tirou a mão da cintura, onde já se esperneava um três-oitão canela seca.

Águas passadas. Agora, ali estava o soldado João de Totoin, destacando em Capim Alto. No seu primeiro dia de serviço, no quartel quase a desabar de tão velho e maltratado como se encontrava, o outrora Assobio de Jegue indagou ao cabo Pedro Pessoa: “Ô seu cabo, é verdade que todas as mulheres daqui de Capim Alto gostam de enfeitar a testa dos maridos?” Sério, o cabo Pessoa respondeu: “Sim. Todas, menos uma”. A curiosidade do soldado foi aguçada ao patamar mais alto que podia: “Só uma não bota ponta, seu cabo? E se pode saber qual é?”. Resposta sem titubear do cabo: “A sua, porque chegou hoje”.

Era uma tarde calorenta e sem vento. Assobio de Jegue murchou a crina. Tirou o quepe. Abanou-se. Nem sei se assobiou.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

OUTRA XÍCARA DE CAFÉ SEM ARRITMIAS, POR FAVOR!


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O café, antes de se tornar a bebida mais popular do Brasil, percorreu uma lendária e polêmica trajetória mundo a fora. Os frutos do cafeeiro, planta nativa da Etiópia, passaram a ser consumidos pelos etíopes, por volta de 575 d.C. após uma inusitada descoberta por um pastor etíope denominado Kaldi.

Todavia, foi na Arábia que a planta passou a ser cultivada, recebendo o nome de Kaweh e a bebida produzida a partir do seu fruto, de cor amarelo-avermelhado foi chamada de Kahwah ou Cahue, que significa força. Segundo relatos, foram os turcos, durante o império Otomano, os responsáveis pela difusão da bebida, com a fundação em 1475, em Constantinopla, atual Istambul, da primeira cafeteria, o Kiva Han.

Os vienenses, por volta de 1615, introduziram a iguaria na Europa, com a fundação da Botteghe del Caffè, popularizando o hábito de torrar, moer, coar e adoçar. A nova bebida do oriente, todavia, desagradou a influente classe religiosa europeia, causando questionamentos que serviram de inspiração para que ela fosse romantizada, mediante a Cantata do Café, composta pelo renomado músico alemão Johann Sebastian Bach, em 1732.

Coube aos holandeses, no século XVI, detentores do controle do comércio europeu, disseminar o “ouro negro” pelo mundo. A primeira muda da planta chegou ao Brasil, por volta de 1727, oriunda da Guiana Francesa, trazida pelo Bandeirante, a serviço da coroa portuguesa, Francisco de Melo Palhete.

Porém, somente no século XIX, na região Sudeste, a cultura do café ganhou mais representatividade, impulsionada pela escassez do ouro e pela alta concorrência do açúcar, constituindo alternativa necessária para manutenção da opulenta classe aristocrática.

Os tipos de café, atualmente produzidos em solo brasileiro, são, principalmente, o arábica e o robusta (ou conilon), beneficiando inúmeros municípios e nos projetando como um dos maiores produtores e exportadores do mundo. Rico em cafeína, que tem ação estimulante sobre o sistema nervoso, o café tem sido muito utilizado para aumentar o estado de alerta e mitigar a sonolência e a fadiga comuns em situações de labor ou de estudos excessivos e, também, em práticas esportivas.

A quantidade de cafeína, por xícara de café, varia com o tipo do produto, o expresso (90mg a 200mg) e o instantâneo ou coado (150mg a 300mg). Este efeito, tem gerado preocupação de que a cafeína possa aumentar o risco de arritmias cardíacas, particularmente a Fibrilação Atrial (FA), a forma mais comum de arritmia sustentada, acometendo, aproximadamente, 2% da população.

Vários estudos têm demonstrado que doses moderadas de cafeína são bem toleradas por portadores de arritmias e que, surpreendentemente, ela possa oferecer proteção contra a incidência de FA. Vale lembrar que o "gene do café" (CYP1A2) auxilia o metabolismo da cafeína e pode ser afetado por hábitos como o de fumar.

Pessoas com o referido gene, em pleno funcionamento, metabolizam, normalmente o café, que pode ser ingerido sem provocar efeitos desagradáveis. Por outro lado, quando este gene sofre mutações, a metabolização da substância pode ser desacelerada e seus efeitos serem mais intensos e duradouros.

Para responder ao questionamento se a ingestão habitual de café está associada ao risco de arritmias cardíacas (FA ou Flutter, Taquicardia Supraventricular ou Ventricular e Extrassístole Supraventricular ou Ventricular), e se tal associação é modificada por variantes genéticas que afetam o metabolismo da cafeína, foi recém-publicado, no JAMA Internal Medicine (Doi:10.1001/jamainternmed.2021.3616), um grande estudo populacional.

Foram analisados, prospectivamente, por um período de três anos, 386.258 indivíduos com idade média de 56 anos, sendo 52% do sexo feminino, recrutados do Biobanco do Reino Unido. Após ajustar para dados demográficos, hábitos de vida e condições que poderiam afetar os batimentos cardíacos, cada xícara adicional de café, consumida habitualmente, foi associada a uma redução, significativa, de 3% do risco de incidência de arritmias.

Quando analisadas isoladamente, resultados semelhantes foram, também, observados, tanto para a FA e/ou Flutter como para a Taquicardia Supraventricular. Os autores não encontram evidências de que o metabolismo da cafeína, mediado geneticamente, afetasse essa associação.

A randomização mendeliana, usando sete polimorfismos genéticos, também, falhou em fornecer evidências de que o consumo de cafeína estava associado a arritmias. As propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias, catecolaminérgicas, bloqueadora de receptores da adenosina, dentre outras, do café, têm sido responsabilizadas por essas ações protetoras contra algumas arritmias.

Em conclusão, o consumo moderado de café é, provavelmente, mais benéfico do que prejudicial à saúde, não sendo a cafeína, droga arritmogênica. Todavia, as evidências não devem ser tomadas como prova de que o café deve ser prescrito como “medicamento” antiarrítmico.

Finalizo, parafraseando o escritor alemão Johann Goethe: “É da moderação que nasce a maior das virtudes.”

 

 

*Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

INFARTO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Sinto fugir de mim as forças do meu ser. As que restam. Escuridão à minha volta. Onde está Margarida? Os meus filhos, onde estão? Vou morrer sozinho, nesta casa de paria, comprada há uma semana. Aqui, sem ninguém e sem vela. Velas ninguém acende mais, para iluminar o caminho da alma liberta da matéria carcomida pelo tempo ou por alguma desgraça momentânea.

Agora, só se morre em hospitais, quase nunca em casa, no último aconchego dos seus. O Dr. Milton me aconselhou a nunca estar sozinho, depois de dois infartos. Órgão traiçoeiro é o coração. Dá de perder energia vital a qualquer momento. Não consigo pegar o remédio sublingual.

Tateio nesse escuro que me envolve. Olho em volta, nada vejo. Margarida não vem. Não também os meninos. Andrezinho e Rachel. Meus amores, que sinto deixar, se minha hora chegou. E Margarida, a esposa que encheu os meus dias de afeto. Corajosa. Paciente. Misericordiosa. Soube esperar que os meus dias de traição fossem consumidos e eu retornasse à minha consciência de homem casado.

Fraquejei. Fui um pulha. Aquela morena entortou o meu caráter. Ou eu me entortei por causa dela. Por meu próprio desejo. Margarida e os meninos só vêm à tarde, depois das aulas. Eu vim antes, para algumas providências. Estou só. Nem gritar eu consigo. Tento, mas o pedido de socorro não sai. Garganta travada.

O coração parece não querer que eu continue por aqui. Dores nos braços, tomando-me por inteiro. O peito também dói. O sangue parece não estar sendo bombeado como devia. Vou morrer. Vou morrer. Deixar este mundo aos 49 anos. É tão cedo... Andrezinho e Raquel sem pai. Mal começando a faculdade. Meus gêmeos. Meus amores.

Ambos futuros médicos. Não vão ter tempo de acudir o pai. O fôlego está indo embora. Nó apertado no meu pescoço. Vi muitos filmes de faroeste. Homens enforcados, corda quebrando nervos, pés estremecendo, corpos inertes, enfim. Sinto-me como num processo de enforcamento.

Aquela morena, Anne Louise, fez-me endoidecer. Mal entrado nos 40, cai no precipício dos amantes cegos. Fiz Margarida sofrer. E os meninos. A mãe soube acalmá-los. Nunca saí de casa, nem quando Margarida descobriu o meu descaminho. Fui acolhido. Fui perdoado.

Tornei-me um homem triste. A cada vez que olhava para Margarida, o meu coração, fraco por natureza, parecia perder pulsos. Passei quase um ano sem coragem para tocá-la. Eu me tornei quase um zumbi. Caído em mim, arrependido, chorei muitas vezes. Toda vez que os meninos me abraçavam, lágrimas desciam, lentas, dos meus olhos.

Fui censurado por dois colegas de trabalho, que tinham sido meus padrinhos de casamento. Dois amigos-irmãos. Quase briguei com eles. Um dia, quase perdi um prazo processual. Estive desatinado. O fogo da morena, Anne Louise, dominou-me todo, durante seis meses.

Separação à vista. Margarida foi aconselhada por amigas, até pela minha irmã, Maria Rita, que talvez goste mais dela do que de mim, desde que papai morreu e eu impedi que ela se apossasse de bens cabíveis a mamãe, na partilha. Coisas de herança, que, muitas vezes, dividem as famílias. E para quê? Para as vaidades deste mundo, que se acabam com um infarto, um câncer, um desastre, uma bala perdida ou de premeditado acerto.

Nunca fui santo. Mantive as rédeas do casamento sem escândalos. Saí com algumas mulheres, sem, porém, me fixar em nenhuma. Situações do machismo desenfreado que ainda existe dentro de muitos homens, alguns até se tornando imbecis, violentos repugnantes e reprováveis.

Nenhuma mulher merece passar por violência física, moral ou psicológica. Eu fiz Margarida passar. Pela psicológica, não. Pela física, jamais. Pela moral, acho que sim. Expor a mulher à traição é uma violência moral. Por nove anos tenho amargado os efeitos da minha desventura. Deus me tirou do atoleiro. Renasci como homem casado, mas com uma mancha impregnada em minha alma.

O suor frio aumenta. Sinto-me gelado, como se fosse um pedaço de carne num freezer. Aumenta a pressão no meu peito. Margarida não está aqui. Nem os meninos. Minha compreensiva esposa. Meus filhos amados, meus gêmeos queridos. Meus futuros médicos, que não terão tempo de cuidar do coração do pai.

Margarida terá mesmo me perdoado? Ou nela terá ficado um ranço da minha traição? Eu nunca saberei. Ela foi forte e firme. Soube desvencilhar-se da raiva e da vergonha por ser traída. Quanta dignidade! Dignidade que eu não tive. Traí a mulher dos meus sonhos. Namoramos desde adolescentes, no Colégio Arquidiocesano, sob o olhar vigilante do padre Carvalho.

O ARQUI... Que Colégio! E que educador, o padre Carvalho! Tudo se acaba. No desfile de 7 de setembro, ela desfilava de baliza. Lembro bem. Essa dor no peito e essa tontura ainda não me embotaram a mente, por completo. A baliza à frente da banda. Eu tocava bumbo, na primeira fileira da formação.

Vendo os movimentos de Margarida, a minha calça inchava, quase explodia. E agora, eu estou tão precisado dela. Não a tenho. A vida se vinga da minha traição, como Margarida não quis se vingar. Ela pensou nos nossos filhos. Talvez tenha pensado também nos 8 anos de namoro e noivado.

Éramos um casal feliz. Sempre juntos. No casamento, apesar das minhas furtivas escapadas, tudo ia bem, até aparecer aquela morena. Um céu ilusório que se tornou o inferno da minha vida. Margarida, professora querida pelos alunos. Respeitada pelos colegas da Universidade. Com doutorado e pós-doutorado. Livros referenciados até no estrangeiro. Uma cabeça brilhante. Mas, eu a traí. Fui um vilão. Um crápula.

Agora, essa dor na boca do estômago... Com ela, aumenta a dor no meu peito. Margarida, me perdoe. Me perdoe... Cuide dos nossos filhos. Andrezinho e Rachel... Meus doutores. Não estarei na formatura para chorar de emoção. Não viajarei para visitá-los durante a Residência, provavelmente, em São Paulo, como eles desejam. Não os beijarei nunca mais. Estou fraco. Uma tosse seca me ataca, rapidamente. Estou sufocado. O ar está faltando. A escuridão aumenta. A minha vida se vai. Margarida... Os meninos...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...