segunda-feira, 25 de abril de 2022

O MATADOR


  

 

José Lima Santana*

 

 

Ele foi se chegando lentamente em direção à próxima vítima. Não sabia a conta de quantas dera cabo somente naquele ano. Matava sem dó nem piedade. E arvorava-se em dizer que era o maior matador daquele tipo, existente na região. Devia ser mesmo. Matar para ele tornou-se um hábito. Quando entrava em ação, não tinha descanso. Matava quando era chamado para o serviço ou quando, por iniciativa própria, achava por bem de dar fim a algumas de suas vítimas.

Naquela noite, ele foi-se aproximando com extremo cuidado, para não dar chance à vítima. Olhou-a a certa distância. Assuntou. Não a devia deixar escapar. Aquela nova vítima tinha feito também as suas próprias vítimas. Tinha lá um instinto agressivo, que clamava por sangue. Logo, na visão do matador, deveria morrer. Seria apenas mais uma vítima. Só isso. Bobagem. Quantas vítimas ele fizera? Quantas ainda haveria de fazer? Isso era o que menos contava. Importante mesmo era matar.

O local onde a vítima se encontrava em estado de absoluto repouso estava bem iluminado. Não tinha como errar o golpe certeiro. Mas, era preciso avaliar bem como desferir o golpe. Deixá-la escapar seria um perigo. Talvez tivesse nova chance, talvez não o tivesse mais, naquela noite ou nunca.

Um matador como ele tinha o nome a zelar. Falhar, tinha falhado poucas vezes. Fazia parte do serviço. Às vezes, as vítimas eram ariscas demais. Na hora “h”, pareciam sentir que o golpe fatal estava a caminho e ganhavam o mundo. Ele ficava desapontado, mordendo-se de raiva. “Diacho, perdi. Culpa minha, que fui descuidado”.

Ele avaliava cada situação de perda. Não eram muitas, quando as comparava com as vítimas fatais. Ganhava, de longe, no montante de mortes. Convencia-se de que era mesmo o maior matador conhecido por aquelas bandas. O erro, naquele tipo de serviço, ocorria. Não tinha como. Afinal, era uma atividade contínua. As vítimas se sucediam.

Lá estava a vítima descansando, após o jantar. Passava das dezenove horas, um tiquinho a mais. Ele avançou um passo. Parou. A parede ficaria manchada de sangue. Depois, alguém a limparia. Olhou ao redor. Somente ele e a vítima, ou seja, o alvo, por enquanto. Vítima, logo mais. Logo mais.

A mão ainda não tremia, apesar dos seus sessenta e sete anos de idade. Mão firme. Vontade férrea de matar, de continuar matando até que a mão trêmula, se isso viesse a acontecer, lhe impedisse de desferir golpes certeiros. As falhas, poucas, diga-se bem, não ocorreram porque a mão tremeu no momento de livrar o mundo de mais um ser nojento. Não. Ora precipitava-se ao desferir o golpe, ora a vítima pressentia a chegada do que poderia ser o seu último momento de vida, escapando para o desengano do matador.

Naquela noite, ele estava calmo. A nova vítima estava entregue. Era só chegar mais perto, sorrateiramente. Estender a mão. Acertar o golpe. Haveria de dormir em paz. A não ser que, de repente, aparecessem outras vítimas. Tudo era possível. Ele estava acostumado a matar.

Ouviu vozes vindas de perto. “Puxa! Essa agora”. Qualquer descuido poderia tirar a chance de fazer mais uma vítima. Praguejou de si para si mesmo. Continuou com o olhar firme na vítima. Estava decidido a matar. Ainda que aquela possível vítima pudesse escapar, naquele instante, não haveria de dar-lhe trégua. Iria em seu encalço. Perderia a noite, se preciso fosse. “Essa eu mato de qualquer jeito”, sentenciou.

Ele tinha razão para desejar ardentemente dar fim a mais um ser abjeto, na sua consideração. Tinha sido atormentado por aquela vítima em potencial. Clamava por vingança.

Armou-se para desferir o golpe fatal. Olhar cada vez mais firme, bem direcionado. Preparou o bote, qual cobra enrodilhada. Avançou. Estendeu a mão. O golpe foi desferido com extrema precisão. Morte instantânea.

Ele exultou com o resultado alcançado. A parede ficou ensanguentada. Alguém teria o trabalho de limpar. Parede pintada de novo. Branco pérola. Qualquer mancha, por menor que fosse, destoava.

Naquela noite, o matador de muriçocas deve ter feito a sua milésima e não se sabia quantas vítimas mais. A parede do quarto ficou com a pequena mácula do sangue que a muriçoca devia ter sugado da perna do matador, que ficou com um pequeno calombo, e com o ardor peculiar em decorrência da picada do inseto caseiro. Era a época de infestação dos pernilongos. A cidade estava cheia deles.

Os canais fétidos, outrora riachos, já não tinham mais os peixes que se alimentavam das larvas de muriçocas, mantendo o controle biológico. O meio ambiente era ferido, mais e mais, a cada dia. Matar muriçocas nas paredes, por vezes, era, sim, necessário.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 17 de abril de 2022

APARENTE CALMARIA. A TEMPESTADE PASSOU?


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O provérbio da língua portuguesa “depois da tempestade, vem a bonança”, expressa a ideia de que depois de um período conturbado e agitado, se segue a calmaria. Traçando-se um paralelismo desse ditado popular com o mundo da navegação tem-se a situação em que, no mar, após grandes tempestades, sucedem-se períodos de tranquilidade, quando se pode navegar com maior facilidade. Temos vivenciado tempos difíceis proporcionados pela pandemia da Covid-19, que evoluiu com ondas sucessivas, sufocando a economia e ceifando vidas preciosas Brasil a fora.

A terceira onda da referida virose, chancelada pela disseminação da variante Ômicron do SARS-Cov-2 está em fase de dissipação segundo Boletim recém-divulgado por pesquisadores que integram o Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Segundo o documento, o atual cenário sinaliza para uma redução gradual, mas consistente, do número de casos graves, internações e óbitos, que constituem os principais impactos da doença. A tendência de queda se reflete, também, pela redução significativa dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave causada pelo Novo Coronavírus (nos períodos mais críticos da pandemia, 98% dos internados com a síndrome eram positivos para o SARS-Cov-2, atualmente essa proporção caiu para 50%) e da letalidade (calculada dividindo-se o número de óbitos por determinada doença pelo número de casos da mesma enfermidade) de 3% para 0,8%.

O Boletim ressalta o papel crucial da vacinação para o controle da Covid-19 e alerta para a importância da segunda e da terceira doses do imunizante. Vale assinalar que, da população brasileira vacinável, aproximadamente 20% não tomou as duas doses preconizadas e 50% não completou o ciclo com a 3ª dose da vacina.

Os pesquisadores enfatizam que as doses de reforço (3ª e 4ª), sobretudo em grupos mais vulneráveis, como os idosos, podem reduzir ainda mais os impactos da pandemia sobre a mortalidade e as internações. O documento evidencia, ainda, que a baixa adesão das crianças à imunização tem colaborado para maior vulnerabilidade deste grupo às formas graves e fatais da Covid-19, justificando assim, uma maior contribuição relativa das faixas extremas da pirâmide etária, para a evolução desfavorável da virose.

Todavia, apesar da momentânea calmaria, a pandemia, infelizmente, ainda não acabou e, portanto, uma nova tempestade pode recrudescer, caso surjam variantes mais letais ou que escapem da imunidade produzida pelas vacinas disponíveis contra a enfermidade. Um país com dimensões continentais como o Brasil, e com reconhecidas desigualdades regionais, necessita de atenção especial dos gestores da saúde, visando incrementar a vacinação sobretudo nas áreas de menor cobertura e incentivar o uso de máscaras em ambientes fechados.

Como ocorre anualmente, com a aproximação do inverno, já foi iniciada a campanha nacional de vacinação contra a gripe (influenza), importante tanto para evitar a virose em si, como para minimizar os mal-entendidos entre os sintomas da gripe e os sintomas da Covid-19.

Esses cuidados auxiliarão no sentido de não sobrecarregar as unidades de saúde do país. Para facilitar a adesão da população, o Ministério da Saúde emitiu nota técnica que permite a aplicação simultânea das vacinas contra os vírus da gripe e da Covid-19. Finalizo citando o astrofísico e escritor americano Neil de Grasse Tyson: “Ciência é a vacina contra o charlatanismo do mundo que explora sua ignorância”

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 16 de abril de 2022

CARRO DE BOIS

 

 

José Lima Santana*

 

 

Bois marrentos. Tinhoso e Caprichoso. Melhor junta de coice de qualquer carro de bois das redondezas, num alcance de dez ou mais léguas em quadra. Das três juntas de bois de Manuca Carreiro, a junta traseira, daí dizer-se de coice, Tinhoso e Caprichoso eram os bambambãs. Grandalhões. Cabia-lhes puxar o maior peso.

As duas outras juntas, a dianteira e a do meio, tinham sua serventia, mas o peso mesmo da carroça era dos dois marrunchos. Preço? Tinha não. Compradores não faltavam. Tinha aos montes. Bois cobiçados, Tinhoso e Caprichoso. Valiam um dinheirão. Sem preço, todavia. Avaliava-se em conto de réis para cima. Cada um.

Leozírio de Teté Molambo botou preço. Dois contos e quatrocentos pela junta. Manuca sorriu. Nem resposta deu. Na bodega de Alonso Fanhoso, numa ligeira parada para limpar a goela com uma lapada da branquinha com erva-cidreira, Maneca deu a entender o seu preço pelos bois. “Quanto vale a alegria de um caboclo, seu Alonso? Pois é quanto valem os meus bois”. Bem pensando, alegria não tinha preço. De ninguém. Alegria era um estado de alma, coisa preciosa por demais. Desmedidamente preciosa.

“Vamos Tinhoso! Olhe o prumo, Caprichoso! Força nas canelas, meus bichinhos de Deus. Amarelo... Verde Lírio... Vocês tão dorminhando? Ferrugem... Azougado... Oh, boizinhos de meu Deus! Olhem a ladeira. Vamos, força! Amores da minha vida, endireitem a trilha. Subindo, subindo”.

Maneca desceu do carro, carregado de lenha. Lenha de candeia branca das matas de Oscar Escrivão. Lenha apreciada, boa de fogo para danar. Muito caro, o metro cúbico da boa lenha. E por falar em candeia branca, as folhas eram receitadas pelos médicos para curar os males do fígado. Uma beberagem, com a infusão das folhas em água de moringa, era pau, casca. Um santo remédio. Nenhum remédio de farmácia era igual.

O menino tangedor, Sebinho, neto de Maneca, e quase um rapaz, vara curta ao ombro seguia ao lado da junta dianteira. Vez ou outra, tocando a vara no lombo dos bois. Ladeira comprida, mas não muito íngreme. O sol do fim da manhã ardia na pele, os braços do carreiro e do tangedor tostados.

Vida dura, de todos eles. Dos bois e dos homens. Uns, escravos da canga; outros, escravos do trabalho de parco rendimento. “A vida num tá fácil pra ninguém, seu Antero”, dizia o velho Maneca ao vizinho de sítio. Mas, a vida devia ser tocada. Homens mugindo como bois, esquecidos dos homens de posição no governo, sofriam, no dia a dia, uns mais que outros.

Maneca, por ali, era um sujeito de boa posição. Tinha o seu carro de bois, o seu bom sítio de moradia e plantio, não devia a cabeça a ninguém. Todavia, ao seu derredor, muitos homens e mulheres penavam na foice ou na enxada, e, ainda assim, quando achavam dias de serviços nas fazendas. Os donos destas pagavam uma miséria por um dia de trabalho. Pobres desvalidos. E muitos adolescentes já se empregavam nos eitos, para ajudar os pais a botarem o bocado em casa, o de comer ordinário de pobres.

Egídio Melo parou Maneca na estrada do Pau Ferro. Queria os serviços dele para retirar do matagal da fazenda Limoeiro muitas carradas de lenha de candeia e de pirunga, pois estava desmatando umas cinquenta tarefas de terra para o plantio de algodão. Acertaram o serviço, a começar dois dias depois, quando Maneca concluísse a empreitada do momento.

Preço combinado e tudo, o velho carreiro tocou as suas juntas de bois. “Ô dia lindo, Tinhoso! Sebo nas canelas, Caprichoso. Deixe de preguiça, Verde Lírio. Olhe o passo, Amarelo...”. Sebinho tirou do bolso um bolachão e tacou na boca. Bolachão duro, de dois ou três dias, enfiado, em casa, no saco de farinha de mandioca, para durar. Bolachão da padaria de “seu” Astérico, um mimo. Na mesa, com café e uma lágrima de manteiga, era de lamber os beiços. Adiante, uma cobra papa-pinto almoçando uma jararaca. A papa-pinto limpava os pastos e matagais.

“Dona Joana, ô Dona Joana! Olhe a lenha”! Chegaram. Dona Joana de Artur da Bela Vista, que deu de criar zebu, acorreu ao chamado de Sebinho. Carro encostado ao muro, lenha descarregada. “Essa lenha, sim, é da boa, Maneca. Mas, a que eu comprei a Fernandinho de Zuleica, era uma mistura danada de candeia, pirunga e joão-mole. Uma lástima! O joão-mole só presta para fazer cinzas. Essa não, é pura candeia”.

Hora de parar para pegar a boia. Maneca tomou o rumo de casa. Desencangou os bois para um refrigério. Deixou-os babujando uns molhos de capim sempre-verde, no oitão da casa, no cercado onde pernoitavam. Dali a pouco, os encangaria de novo. Longo ainda seria o dia de trabalho, até as estrelas começarem a pipocar no céu.

Dois dias depois, o serviço de Egídio Melo teve início. Muita lenha para tirar do mato. Maneca levou seis semanas para dar conta da retirada. Lenha muita. O fazendeiro faria um bom dinheiro, vendendo para as padarias a lenha mais grossa, boa para os fornos, e para as donas de casa a lenha fina, de fogão.

Maneca preferiu receber o dinheiro ajustado ao final do serviço. Três contos de reis. Na hora do pagamento, Egídio quis dar para trás. “Maneca, eu sei que o ajustado foi esse. Mas, você não acha que é dinheiro demais por um serviço maneiro? Você não acha que dois e quinhentos está de bom tamanho”?

Não. Maneca não achava de bom tamanho nada que não fosse o valor ajustado. Afinal, homens de palavra não regateavam depois de ajustes feitos. Do seu trabalho com as suas três juntas de bois tirava o sustento da família. Foi assim que criou os sete filhos, com a mulher na lide da casa e do roçado, ali mesmo no sítio amplo e que de tudo dava.

“Seu Egídio, um homem de cabelo no buraco da venta e de tintura nas veias não arreda pé da palavra dada. A gente fez um negócio. Três contos. Nem um vintém a menos. Se o senhor aguenta arrocho, experimente pagar menos. Não a mim, que não recebo nada a menos do que o acertado, mas ao delegado”. Maneca fez uma pausa. E concluiu: “Eu não sou Roberto de Silveirinha, que o senhor botou o seu gado na roça dele, na hora de colher o milho. Eu não sou Mário de Zeferino do Campo Largo, que o senhor deu de rebenque na cara daquele pobre coitado, sem eira nem beira. Sou não! Três contos foi o ajustado e será o recebido”.

O velho carreiro deu as costas e fez menção de ir-se. Egídio arregalou os olhos. Meteu a mão no bolso, cuspiu nos dedos. Contou o dinheiro, tin-tin por tin-tin.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


domingo, 10 de abril de 2022

UMA TAÇA DE VINHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Ao retornar à praça de alimentação do shopping, Marilda encontrou a amiga em absoluta desolação. Antes de sua saída, não conseguiu atinar sobre quem poderia ser o rapagão que não tirava os olhos das duas, ou melhor, de Hortência, a amiga. Os olhos direcionavam-se diretamente para esta.

Solteira há um ano, depois de levar bolo do noivo, cujo casamento estava na ponta do lápis e na ponta do bico de cada colunista social da pequena capital, onde uma fofoca era vendida como verdade, Hortência, bem-nascida, entrou em hibernação social, teve anorexia, ficou deprê. A custo de sessões de análise e medicamentos, começou, enfim, a dar o ar da graça nos lugares onde podia ser vista.

Quem era aquele rapaz? Marilda afirmou à amiga que o conhecia de algum lugar, mas a memória estava nas nuvens. “Meu Deus, não estou atinando! Mas, sei que o conheço de algum lugar”. Hortência não pareceu se incomodar com a angústia momentânea da amiga. O evidente interesse do rapaz não merecia ser olvidado. Então, ela o encarou de volta. Ele levantou a taça na qual sorvia vinho tinto. Ela fez o mesmo com a caipirosca nevada de kiwi. Uma delícia. “Marilda, você sabe que ainda estou em choque por causa daquele salafrário, que me deu o fora, que me trocou por uma zinha pé-de-chinelo, sem classe, só porque é filha do novo dono da rede de farmácias ‘PegueLev’. Você sabe que eu continuo abalada, mas não devo ficar na defensiva. Se um lindão daquele está dando sinal, o que devo fazer? Esperar que ele tome a iniciativa ou devo me jogar”? Disse isso e sorriu, quase gargalhando. Conteve a gargalhada. Não convinha. O que o rapaz poderia pensar? Que ela era uma doidivana? Uma sem classe?

Alguns minutos depois, as duas se separaram. Marilda tinha dentista. Hortência ficou trocando olhares e sorrisos com o rapaz. Mal funcionou o carro, Marilda teve de volta à memória a figura do rapaz da taça de vinho. “Meu Deus! É ele”! Desligou o carro. Pagaria o acréscimo do estacionamento. Quase trotando, retornou ao local onde deixara a amiga. Esbarrou num senhorzinho. “Desculpe”!

Era sexta-feira. Quase cinco da tarde. O fluxo de pessoas era grande. Esbaforida, Marilda viu que Hortência continuava sozinha. “Ufa! Deu tempo”, pensou. Engano.

Ao revê-la, Hortência disse: “Marilda, minha irmã, você não sabe o que aconteceu”! Respirou forte. Quase engasgou. “Imagine você, que por pouco não tive um surto. Estou pasma. Isso não deveria ter acontecido comigo. Não depois do que eu passei”. A amiga avexou-se: “Diga, logo, mulher, ele lhe tratou mal? Disse alguma inconveniência? Quer que eu chame a polícia”? Aí, sim, uma lágrima furtiva desceu de cada olho verde de Hortência, a abandonada pelo noivo, um ano antes. “Deus do céu, amiga. Desembuche. Eu estou ficando nervosa”. Marilda olhou para o lado do rapaz do vinho tinto. Lá estava ele com a taça, agora olhando para o outro lado, na direção do jovem garçom. “Eu sabia! Só não tinha me lembrado, mas eu sabia”, disse Marilda.

Bem. Quando Marilda saiu para ir ao dentista, Hortência chamou o garçom e perguntou se o rapaz tinha chegado sozinho. Afirmativo. Deveria estar esperando alguém? O garçom sorriu com malícia e respondeu: “Há uns três dias, ele vem aqui, nesse mesmo horário. Pede uma taça de vinho tinto seco, demora um pouco e me dá uma gorjeta graúda. Depois, um dá um aperto de mão e vai embora. Sempre sozinho”. Ela ficou aliviada. Mas, logo, o coração deu pulos.

O rapaz levantou-se com a taça na mão esquerda e dirigiu-se a ela. Ela pôde contemplá-lo em toda a sua estatura. Um belo rapaz. Passos suaves. Com a mão direita ajeitou um lado do colarinho. E ei-lo ali à frente dela. “Olá! Posso sentar-me por um instante”? Hortência gaguejou: “Sim, claro...”.

Um ano depois do noivado fracassado por culpa do safado do Ângelo Augusto, advogado em começo de carreira, mas fracassado em quatro concursos públicos, Hortência, depois de amargar dias de desespero, que quase a levaram ao hospício, afinal, tudo estava pronto para o casamento, ali estava um rapaz que lhe agradara em cheio. Quem sabia, se a porta que se fechara para ela, não estava fazendo, naquele instante, abrir-se uma janela alargada?

“Parabéns! Uma moça tão distinta, pode-se ver, com um colar de pérolas verdadeiras e um pingente de esmeraldas, além de ter bom gosto, tem beleza e elegância”. Hortência começou a ficar sem fôlego. Uma coisa foi lhe tomando toda, tapando os gorgomilhos. Os olhos negros do rapaz penetraram no âmago do seu coração, deixando a porta totalmente escancarada. Ele sorveu mais um gole do vinho tinto. Enxugou, sutilmente, os lábios com a ponta da língua, mas com extrema discrição. E disse: “O colar e o pingente são de finíssimo gosto. Eu trabalho com joias. Sei do que estou falando. Mas é uma pena que trilho outros caminhos”. Ele fez um ligeiro aceno com a cabeça e levantou-se. Chamou o garçom, pagou a conta e, mais uma vez, deu uma gorjeta graúda, apertando suavemente a mão do moço.

Marilda, estabanada como sempre, ao ouvir o relato da amiga, gritou: “Eu sou a culpada! Minha memória me deixou na mão. Se não fosse isso, eu teria lhe dito que aquele sujeito foi o namorado do filho do Dr. Ananias Lira, tio da minha amiga Celina Medeiros Lira, de Maceió. O doutor, um usineiro homofóbico miserável, mandou os capangas darem uma coça nele e botou o filho para estudar no Canadá”.

Ao ouvir aquilo, Hortência teve um ligeiro trespasse. Ainda não era a sua vez de ser feliz. “Força, amiga! Nada de cair no atoleiro do desânimo”, disse Hortência. Era o começo do inverno. Lá fora, ia escurecendo. E começou a chover.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana dce Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 3 de abril de 2022

CIRURGIA BARIÁTRICA. OPÇÃO PARA O TRATAMENTO DA OBESIDADE PELO SUS


 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

Rebeca Rocha de Almeida**

 

 

A obesidade é uma condição de difícil controle, caracterizada pelo excesso de tecido adiposo, criando quadro inflamatório sistêmico associado ao aumento de fatores de risco cardiovasculares, como a Diabetes Mellitus (DM2) e a Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), responsáveis pelo desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como as doenças isquêmicas do coração, do cérebro, dos rins e dos membros inferiores.

Este processo decorre da interação de condições ambientais e psicológicas como o sedentarismo, o estresse e o aumento no consumo de alimentos processados e ultra processados, associados a fatores metabólicos e genéticos, responsáveis pelo balanço energético positivo e pela constituição de um ambiente “obesogênico”.

Segundo relato da Organização Mundial da Saúde (2020), a obesidade triplicou em todo o mundo desde 1975, passando a ser considerada uma das principais pandemias do século XXI. No Brasil, dados obtidos pelo sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL) em 2019, revelaram que a frequência de adultos obesos foi de 20,3%, taxa semelhante entre homens e mulheres, sendo a frequência de obesidade superior na faixa etária de 45 a 54 anos, em ambos os sexos.

Nesse aspecto, Aracaju ocupou a 10ª posição entre as capitais brasileiras com maior percentual de pessoas obesas (20,6%), ficando, ainda, no incômodo 6º lugar, com uma taxa de 22%, na população feminina. A Pandemia da Covid-19, seguramente, deve ter agravado este cenário já que tem sido relatado aumento ponderal em vários seguimentos da nossa população.

Vale ressaltar, ainda, que um estudo brasileiro (Nilson et al.; doi.org/10.26633/RPSP.2020.32), revelou que os gastos com usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), para o tratamento da obesidade e de suas doenças associadas no ano de 2018, atingiram um quantitativo de R$ 3,45 bilhões, equivalentes a mais de 890 milhões de dólares.

Deste montante, 59%, 30% e 11%, foram consumidos com terapias para: a HAS, a DM2 e a obesidade, respectivamente. Considerando, separadamente, a obesidade como fator de risco para HAS e DM2, os custos atribuíveis a essa doença chegaram a R$ 1,42 bilhão, ou seja, 41% do total.

O tratamento conservador de obesos portadores de DM2, baseado na dieta hipocalórica, na prática regular de exercício físico e na utilização de medicamentos hipoglicemiantes, está bem estabelecido, como de primeira linha na promoção da perda de peso, na melhoria da capacidade aeróbica, dos parâmetros cardiometabólico e da qualidade de vida. Todavia, a baixa adesão, sobretudo entre grandes os mais obesos, tem causado frustação desta estratégia a longo prazo, levando a recuperação do peso em, aproximadamente, 95% dos casos.

Além disso, alguns fármacos usados no controle da glicemia, podem fomentar o ganho de peso. Por outro lado, a Cirurgia Bariátrica (CB) tem despontado como alternativa terapêutica atraente para o tratamento da obesidade grave, por proporcionar perda ponderal mais sustentável do que a metodologia não invasiva, contribuindo para o melhor controle da DM2, da HAS e de outros distúrbios metabólicos. Vale ressaltar, que os dependentes do SUS, podem, também, usufruir da CB, atendendo às normas regulatórias do Ministério da Saúde.

A Tese de Doutorado da nutricionista Rebeca Rocha de Almeida teve como intuito avaliar a eficácia da CB, comparativamente ao tratamento médico convencional, quanto à remissão da DM2 e do risco cardiovascular, em cinco anos de acompanhamento, de portadores de obesidade (IMC ≥35 kg/m²), com pré-diabetes e/ou DM2, usuários do SUS e atendidos no Hospital Universitário de Sergipe.

O produto da investigação, aceito para publicação no periódico MDPIMedicina (ISSN: 1648-9144) revelou superioridade, a longo prazo, do procedimento cirúrgico, tanto em atingir os objetivos mencionados, como na melhoria das variáveis antropométricas e na redução da quantidade de medicamentos, utilizados tanto para o controle glicêmico como para o tratamento de comorbidades associadas.

Como objetivos secundários da pesquisa, observou-se que a CB promoveu redução da gravidade das comorbidades associadas à obesidade (DM2, HAS e dislipidemia), já no 3º mês após o procedimento e os resultados alcançados se mantiveram até o 5º ano subsequente. Estas constatações foram publicadas, em 2021, na revista MDPIMedicina (doi.org/10.3390/medicina57090995).

Portanto, estes achados podem ser úteis tanto para os profissionais envolvidos no processo de tratamento da obesidade, como para os gestores de saúde, na adoção de medidas que visam reduzir o risco cardiovascular, principal causa de morte da população brasileira. Finalizamos, lembrando que o importante em emagrecer “não é o peso que se perde e sim a saúde que se ganha”.

 

 

*Professor Titular do Departamento de Medicina e do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação. acssousa@terra.com.br

 

**Nutricionista e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Sergipe. Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. rebeca_nut@hotmail.com

FUZILARIA


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Naquele chão, nada era maior do que a miséria e a valentia do sertanejo. Tempos duros, difíceis, assombrando os mofinos, que se contavam nos dedos de uma mão. Estes eram poucos, que bem teriam feito ao bom nome do sertão se tivessem morrido de caganeira, ainda no berço.

No todo, porém, os sertanejos se mostravam destemidos, tanto para o enfrentamento das intempéries do clima azedado desde os princípios dos tempos, quanto para a luta a ferro e sangue, se preciso fosse. E, muitas vezes, era preciso. Terra de homens embrutecidos pelas agruras da própria vida, pela falta de educação escolar.

Escola? E tinha? No sertão do começo da República? “Tinha não, amigo velho”. Para não faltar com a verdade, no Xique-Xique de Riba uma mocinha dava aulas de ABC e bê-a-bá. Coisinha curta, só para não dizer que todo mundo era iletrado, ignorante. Poucos aprendiam alguma coisa. Um soletramento sofrível, um assinar o nome em garranchos, uma conta de somar no lápis, que mais fácil era fazer de cabeça.

As forças volantes espalhavam-se por todo o sertão, para dar cabo do rei do cangaço e de seus príncipes. Famigerados para uns, festejados por outros. O cabo Josino Pai D’Égua teve dois irmãos trucidados pelos cangaceiros, no Alto do Morro do Virgílio. Tiroteio que durou mais de seis horas, começando no início da tarde e alongando-se até a boca da noite.

Os dois eram da força volante do tenente Isaías. Morreram quatro soldados e dois cangaceiros. A vantagem estava quase sempre do lado dos celerados. Josino Pai D’Égua jurou vingança. Não haveria de descansar enquanto não metesse uma bala, ou muitas, no quengo do capitão de bosta. “Capitão... Oxente! Quem deu tal patente ao cangaceiro, que se intitulava o “Rei do Cangaço”?

Capitão... Capitão, que nada! Era um bandoleiro, que matava, roubava, estuprava. O cabo Josino ainda o teria em sua mira. Veria o seu olho cego explodir com o impacto de uma bala de fuzil. Os miolos lambuzando a paisagem.

Noca de Pedro Melo das Aroeiras engraçou-se, na feira do Morro das Faceiras, por um tipo que entrara na vila com um bando de cangaceiros, chefiado por Caninana, um dos lugares-tenentes do tal capitão. Na venda de Domitila de Zé Ceguinho, ele passou o olho nela e ela passou o olho nele.

Fogo e pólvora misturados. Dali mesmo, ela arribou com ele, para desgosto da família. O zun-zun-zun foi tanto que as irmãs de Noca nunca mais pisaram os pés na vila. Vergonha da patifaria que a desmiolada da irmã acabara de fazer. Misturar-se com a laia do cangaço. Era uma desfeita para qualquer família de bem.

Uma moça entregue à sem-vergonhice com aquele tipo de gente. Para quê? Para manchar a honra da família. Família pobre, mas direita. E, mais dia, menos dia, acabar morta por uma força volante, a carcaça exposta aos bicos dos urubus.

Geraldinho de Pedro Melo, irmão de Noca, danou-se para a capital, em busca de encontrar-se com um primo, tenente da Força Pública. Queria assentar praça. Entrar para uma força volante, a fim de dar cabo de alguns cangaceiros e, talvez, da própria irmã, que desgraçou a família, deixando a mãe areada do juízo e o pai ainda mais carrancudo.

A irmã desmiolada estava nas garras sujas dos bandoleiros. Estava mal falada, botando na lama o nome da família. Grande era o sofrimento da mãe. O pai, Pedro Melo, não. Arrenegou a filha. Para ele, morta ela estava. Geraldinho teve sorte. Não só topou com o parente oficial, como este lhe deu guarida e ele assentou praça, sim, na Polícia.

Mandou recado para o pai. Estava na força volante do sargento Belizário, onde servia o cabo Josino Pai D’Égua. Cada volante tinha um espaço no território sertanejo para esquadrinhar em busca dos cangaceiros, que trafegavam de um para outro Estado num piscar de olho.

Tinham lá eles uma vasta rede de informantes, os coiteiros, que lhes davam, além de informações sobre a movimentação das tropas, víveres, armas e munição, tudo comprado com o dinheiro que os cangaceiros extorquiam por onde passavam. Apesar dos malfeitos da bandidagem, havia quem os apoiavam, quem os consideravam heróis, talvez porque havia sobre os bandoleiros a aura de que lutavam contra o sistema.

E o sistema naqueles sertões largados era, deveras, cruel. Fazendeiros, políticos, militares, e até padres, espoliavam o povo sem proteção e sem vintém.

Tarde de sexta-feira, véspera da feira semanal do Timbó Açu. Notícia correu e chegou ao sargento Belizário que o bando do tal capitão estaria de chegada. Eram favas contadas. O sargento arregimentou outros cabras e engrossou suas fileiras. Eram mais de trinta homens bem armados e dispostos.

Josino Pai D’Égua batia os dentes, de ansiedade, como um caititu. Vingaria os dois irmãos caídos. A notícia dava conta de que os cangaceiros viriam da Mata do Osório, pelo caminho de João Lourenço, passando pelo riacho do Meio. Na curva para chegar à solta de Robertão, achava-se um bom lugar para tocaia.

A volante tomou posições. Era manhãzinha quando um atropelo de cavalos em bom galope foi ouvido. Seriam eles, os cangaceiros. E eram mesmo.

Tocaia bem-feita. Fuzilaria das seiscentas. Gritos. Xingamentos. O cabo Josino deu conta de três cangaceiros, mas não do tal capitão. Sentiu-se vingado, em parte. Quanto a Geraldinho, foi ferido por um tiro na perna. Sangria braba. Arrastou-se no meio do mato, buscando valimento. Azar. Topou com um cangaceiro de punhal na mão direita, pronto para sangrá-lo.

Geraldinho viu a cara feia da morte. Quando o celerado ia atingi-lo, outro cangaceiro atirou nele pelas costas. Não era um cangaceiro. Era Noca, a irmã. “Salvei a sua vida, mano. Diga ao pai e à mãe que essa, agora, é a minha vida. Adeus”. Embrenhou-se no mato, rastejando como cobra.

Geraldinho viu a irmã sumir de suas vistas e de sua vida. Quis gritar, chorar. Gritar, atrairia outros cangaceiros. Chorar não era papel para um homem, não ali no sertão. Porém, toda a sua macheza não foi suficiente para reter duas lágrimas nos olhos. Duas gotas de orvalho, retidas na amplidão daquele espaço sangrento. A irmã salvou-lhe a vida.

Era março. Quaresma. Dali saindo, Geraldinho iria dobrar os joelhos na igreja do padre Amarante. Agradecer a Deus pela vida poupada e orar pela irmã cangaceira.

 

 

*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

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