domingo, 26 de fevereiro de 2023

A COVID-19 NÃO É UMA “GRIPIZINHA”


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Desde o início da pandemia da Covid-19, em nosso País em março de 2020, surgiram inúmeras variantes do SARS-Cov-2, com graus variados de virulencia e de transmissibilidade. A variante Omicron (B.1.1.529), relatado pela primeira vez na África do Sul em novembro de 2021 e designada, no mesmo mes, como "preocupante" pela Organização Mundial da Saúde em, continua dominando, mediante as suas sub-variantes, as infecções causada pelo referido vírus, na atualidade.

Embora tenha maior poder de transmissão do que suas antecessoras, a Ômicron tem provocado menos hospitalizações e mortes, influenciado, provavelmente, pela efetividade das doses de reforço das vacinas contra o nefasto agente infeccioso. Apesar desta constatação, parcela significativa da população não foi adequadamente imunizada, criando cenário propício para a manutenção do indesejado intruso entre nóis e para o eventual surgimento de novas cepas do novo coronavírus.

Outro vírus, o influenza, causador da tradicional gripe, constitui um atormentador sazonal da população, particularmente os indivíduos mais vulneráveis como os idosos e os imunodeprimidos. Os subtipos H3N2 e H1N do influenza A, têm sido os mais prevalentes nos surtos de Gripe e também são eficazmente combatidos pela vacinação específica.

Existem similaridades entre os quadros clínicos decorrentes das infecções pelo SARS-Cov-2 e pelo influenza, já que os dois vírus atacam, preferencialmente o trato respiratório, causando tosse, coriza, dor de garganta, febre, dor de cabeça e fadiga. Além disso, ambas as viroses podem ser fatais e são facilmente transmitidas por partículas respiratórias.

Porém, as similitudes entre os dois tipos de doenças param por aí já que tem sido reportado um risco duas a tres vezes maior de morte e de internações em unidade de terapia intensiva (UTI) com infecções comunitárias pelo novo coronavírus, comparativamente com as causadas pelo influenza (Doi: 10.2807/1560-7917.ES.2022.27.1.2001848).

Vale ressaltar, todavia, que tais comparações foram feitas, sobretudo, com indivíduos infectados pelas variantes mais agressivas do SARS-Cov-2. Será que, no cenário atual dominado pela Ômicron que parece se associar com desfechos clínicos menos severos, essa diferença persiste?

Com o desidério de responder à esta importante indagação, foi recém publicado no conceituado periódico JAMA (Doi: doi:10.1001/jamanetworkopen.2022.55599) um artigo multicêntrico sueco que comparou os desfechos hospitalares de 3.066 pacientes infectados pela variante Ômicron do novo coronavírus com 2.146 portadores de gripe por influenza A ou B.

Os investigadores concluiram que o risco de admissão em UTI não foi significativamente maior no grupo de portadores de Covid-19, comparativamente com o da gripe. No entanto, os infectados pela cepa Ômicron do SARS-Cov-2 exibiram 1,5 mais chance de morte intra hospitalar, do que os portadores de influenza. Esta diferença foi duas vezes maior, no subgrupo de portadores de Covid-19 que não haviam se vacinado contra a doença.

Portanto, a Covid-19, que ceifou a vida de quase 700 mil brasileiros, seguramente não é uma "gripezinha", merecendo ser adequadamente combatida com vacina, assim como a gripe e as demais viroses importantes que até um passado recente mereciam atenção especial das autoridades competentes.

Finalizo, citando frase de autor desconhecido: “Não reclame da vida, levante a cabeça. Dias ruins são necessários, para os dias bons valerem a pena”.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

LAMPIÃO NA SAPUCAÍ


  

 

José Lima Santana*

 

 

O Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, depois de 22 anos, sagrou-se campeã do Carnaval carioca com o enredo “O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”, baseado nos cordéis de José Pacheco, pernambucano que viveu boa parte da vida em Maceió.

O cordelista Pacheco ganhou notoriedade por suas histórias engraçadas e foi considerado um dos principais poetas satíricos do Brasil. As desventuras do rei do cangaço foram contadas em dois cordéis escritos por José Pacheco: “A Chegada de Lampião no Inferno” e “O grande debate que teve Lampião com São Pedro”.

Em entrevista, o carnavalesco da Imperatriz, Leandro Vieira, disse que o cangaceiro “conseguiu uma coisa que poucos brasileiros conseguiram, que é a eternidade”. E arrematou: “Então, nem bom, nem mau; eterno”.

“Nem bom, nem mau”, disse o carnavalesco. No imaginário dos nordestinos, bom para alguns e mau para outros. Lampião foi, sim, uma figura controvertida. E há de ser.

“Como representante da cultura popular, a Imperatriz foi buscar o que tem de brasilidade na história de Lampião. Não vamos julgar o que ele fez; vamos destacar a cultura sertaneja, através das roupas, da música, da dança e da literatura de cordel. Lampião era uma figura que tinha uma estética própria, exuberante, colorida, nada sombria. E é nesse universo nordestino que a Imperatriz vai mergulhar”, disse Leandro Vieira.

Oficialmente, Lampião pisou os pés em terras sergipanas, em 1929. Numa segunda-feira, 25 de novembro daquele ano, por volta das 14 horas, ele e seu bando entraram em Nossa Senhora das Dores. Dali demandou para Capela. Os cabras foram conduzidos na marinete improvisada de “seu” Joia (Joel Barreto de Souza) e Lampião no automóvel de Otacílio José de Menezes, abastado plantador de algodão e dono de fábrica de descaroçar o produto.

Em Dores, o mais afamado bandoleiro dos sertões nordestinos arrecadou dinheiro. Quem escreveu e/ou pesquisou sobre isso, fala que a arrecadação rendeu entre pouco mais de dois contos de réis e vinte e cinco contos de réis. Vai-se saber. Vera Ferreira, neta de Lampião, e Antônio Amaury afirmam, sem, contudo, citar fontes, que a extorsão em Dores rendera “quatro contos e quinhentos mil réis, num procedimento que alguém chamou de ‘saque elegante’”. Bem. A receita orçamentária da Intendência Municipal de Nossa Senhora das Dores daquele ano, era estimada em pouco mais de 30:000$000 (trinta contos de réis). De todo modo, Lampião levou uma boa grana.

Em outubro de 1930, depois de ser batido em Capela, Lampião demandou para Dores. Sabendo que a Intendência tinha homens armados para a defesa da cidade, e possuindo boa rede de informações, foi à casa de José Elpídio dos Santos, no subúrbio Cruzeiro das Moças, por volta das 20 horas, do dia 15. Elpídio era filho de José Raimundo, que chefiava uma das trincheiras da cidade contra os cangaceiros.

Lampião queria que Elpídio dissesse quantos homens estavam nas trincheiras. Ele não disse. Sequestrou Antônio da Silva Leite, que escapou na bodega de Santo. Saqueou a bodega de Manoel Martins Xavier (Santo) e sequestrou sua mulher, Sergina Maria de Jesus.

Sequestrou Pompílio da Silva, que conseguiu fugir na fazenda Candeal, enquanto o bando dormia. Dormiu com a mulher de Santo (o braço dela amarrado na perna dele; dormiram no mandiocal, enquanto os cabras dormiram na beira da estrada, segundo depoimento da mesma).

Na madrugada do dia 16, matou Elpídio e mandou Sergina voltar para casa. No laudo de exame cadavérico, consta que o corpo estava perfurado a balas, havia um “rendilhado” de punhal, os dedos das mãos, sob as unhas, estavam perfurados e a barba estava queimada. Ou seja, Lampião e seu bando torturaram Elpídio, antes de matá-lo com requintes da maior crueldade e covardia. Dessa morte resultou o único processo criminal contra Lampião, em Sergipe.

Sequestrou o vaqueiro Jason Teixeira de Vasconcelos, no Candeal, para que ele mostrasse a casa de um tal Janjão, no caminho para a Taboca. Saqueou a bodega de José Gomes e a bodega da viúva do finado Cezarino, na Taboca, espancando esta, pois não tinha dinheiro para lhe dar.

Matou um pobre rapaz, que era alienado mental, na saída da Taboca. Castrou Pedro Batatinha, que vinha da Lagoa dos Tamboris, gemendo, a fim de arrancar um dente em Dores. Batatinha foi socorrido pelo Dr. Belmiro Leite, em Aracaju. Escapou e morreu, na década de 1990, em São Paulo. Alguns livros sobre Lampião registram o fato da capação de Batatinha.

Observação: Os dados acima, dos dias 15 e 16 de outubro de 1930, foram retirados do processo que a Justiça de Nossa Senhora das Dores moveu contra Lampião, e que se encontra no Arquivo Judiciário do Tribunal de Justiça de Sergipe.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

NOVA REALIDADE DA COVID-19


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A estrada percorrida, desde o anuncio da Peste, até o momento atual, foi longa, sofrida e insegura. Sem mencionar, as “muitas pedras encontradas no meio deste caminho”, promovidas por uma legião de negacionista que incentivava a não adoção das medidas comprovadamente protetoras, como o uso de máscaras e as vacinas, se valendo das poderosas redes sociais, para disseminar suas Fake News, baseadas em relatos de pseudocientistas.

Por outro lado, a comunidade científica procurava entender o comportamento do ardiloso novo coronavírus, com o intuito de gerar subsídios para a escolha do melhor caminho de combate e de prevenção desse inimigo. A pandemia expôs a necessidade de o aprimoramento do pensamento médico, com treinamento adequado, para evitar heurísticas e vieses. O talento é imprescindível, mas não é suficiente. A carência de pensamento refinado prejudica o julgamento clínico do médico, implicando, consequentemente, em prejuízo na implementação das evidências científicas.

Apesar de os registros diários de pessoas infectadas pelo SARS-Cov-2 e dos eventuais incrementos na sua transmissibilidade, para muitos, a virose tornou-se um inconveniente transitório, que promove alguns dias de sintomas e um curto período de isolamento, o qual nem sempre é respeitado.

Para a maioria da população, a temida doença não assusta como outrora e as máscaras deixaram de ser vistas, mesmo em ambientes fechados, e é provável que também sejam peças raras até nos atuais bailes de carnaval. Segundo interessante reflexão, recém publicada no New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMp2213920), por professores da Universidade Columbia, Nova York, as referidas mudanças, alimentadas por prioridades econômicas e políticas, levaram à suposição geral de que a pandemia ficou para trás e já é hora de baixar a guarda e de retomar a vida pré-pandêmica.  

A realidade, todavia, contradiz a referida crença já que o impiedoso vírus ainda ceifa, aproximadamente, 50 vidas de brasileiros, diariamente. Além disso, muitos ainda apresentam complicações a curto e longo prazo da doença, sobretudo os portadores de comorbidades que prejudicam sua resposta imune às vacinas ou que os tornam especialmente vulneráveis às complicações da Covid-19.

Vale ressaltar, ainda, que a ameaça do surgimento de uma nova variante do vírus que eventualmente possa driblar as nossas defesas e a imunidade induzida pelas vacinas, não pode ser desconsiderada. Estes fatos sinalizam que ainda vamos ter que conviver com o intruso SARS-Cov-2 por um tempo imprevisível.

Os autores do citado artigo ressaltam que estamos navegando em condições mais complexas do ponto de vista social, econômico, político e clínico, além da necessidade de considerarmos as lições aprendidas até o momento, com o enfrentamento da virose. A politização da Covid-19, semeando desconfiança, proporcionando a disseminação de desinformações, causando divisão profunda da população na percepção da doença e na disposição de adotar as medidas protetoras, foi um lamentável erro.

É inegável que a cobertura vacinal e as medidas protetoras têm nos proporcionado uma situação bem mais confortável do que a do início da pandemia. Portanto, essa nova realidade nos obriga a evitar o uso de linguagem alarmista e oferecer soluções válidas e viáveis para trazer as pessoas para a nova fase não emergencial da pandemia.

Finalizo, citando Mohandas Karamchand Gandhi: “A força não provém da capacidade física. Provém de uma vontade indomável.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

DÉ, DEDÉ E O VELHO MANOEL CLARINDO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Dé era Derivaldo. Dedé era Edevaldo. Irmãos. Filhos de “seu” Durval do finado Eronildes do Pau Ferro, povoado quase em extinção. Porém, em tempos idos era povoado de fama. Lugar de bons pastos, de boas roças de milho e algodão, principalmente. Boa festinha de São João. Boa festinha de Natal.

Até alambique por lá tinha. Fabricava uma cachacinha muito apreciada. Pequena produção, que não passava de umas poucas centenas de litros em cada safra. O alambique pertencia a Manoel Clarindo, avô dos irmãos, Dé e Dedé. Avô materno. Além de fabricante de cachaça, o velho era rezador. Contavam no povoado que, em tempos idos, ele expulsara o demônio apossado do corpo de uma moça, metida em atropelos de encruzilhada.

O velho Manoel Clarindo engasgou com um rolete de cana caiana, que lhe tapou os gorgomilos. Numa noite qualquer, ele bateu a caçoleta. Espumou, ficou ofegante e esticou a canela. Era um velho muito bem-quisto nas redondezas. Ao enterro compareceu muita gente.

Os netos Dé e Dedé eram crianças. Carregaram buquês de flores do campo, murchas, à frente do féretro. Dé era chorão. Dedé era do tipo casca grossa. O primeiro abriu o berreiro o tempo todo, no percurso da casa do defunto ao pequeno cemitério. O segundo desdenhava das caretas do irmão, o tempo todo.

O percurso do féretro, da casa do defunto ao arremedo de cemitério, um pedaço de chão sem muro nem cercas, animais pastando o capim viçoso, quando o tempo era fresco, que nascia entre uma cova e outra, durou meia hora. Tinha chovido na noite anterior. O enterro foi às 9 horas.

No caminho de bom massapê, a lama escorregadia exigia cuidado dos transeuntes. Umas duas ou três vezes, um ou outro condutor do esquife barato escorregou, sem maiores consequências. “Segura o pé, Tonho de Chico”! Mas, Clarinha de Pedro Martelo, donzela quarentona, que ainda suspirava por um homem que lhe tirasse do caritó, foi ao chão.

Socorrida, o vestido verde-abacate foi maculado pela lama viscosa do massapê preto. Terra boa era o que se tinha por ali. Uma despeitada, Cilinha de Zé Cartuxo, desandou a rir baixinho, cutucando Maria de João de Zezito, outra despeitada. As duas não iam com as fuças de Clarinha, que, tempos antes, tivera chamegos de namoro com os maridos das duas, antes de ambos se darem em casamento.

O enterro chegou ao cemitério. A cova de sete palmos de fundura estava pronta. A boca da terra engoliria mais um. Ali estava o lugar onde todos se igualavam. Tico Bebinho, um pobre coitado, que morreu de pança grande, mais amarelo do que cravo de defunto, estava enterrado ao lado de Gonçalão de Maria de Dió, o maior proprietário de terras do povoado, ali nascido e criado, ali enterrado. No chão do cemitério todos eram iguais. Mesmo destino, mesmo pó, mesmos morotós, bichos de comer defunto a serem alimentados pela carniça humana.

Mais um escorrego. O caixão pendeu para o lado esquerdo. Um neto de Pixilinga acudiu Henricão de Júlia de Maneca cego. “Não deixe o defunto beijar o chão fora da cova, home de Deus”! Dé continuava chorando. E Dedé rindo do choro do irmão. Uma coruja rasga-mortalha sobrevoou o cortejo em voo rasante, quase tocando a cabeça de Valentim de Alfredo Sabiá. “T’esconjuro, bicho agourento do demo”! Gritou o quase atingido pela ave.

O grito estridente do animal emplumado assustou as pessoas. Mau agouro! Como mau agouro se ali já estava um defunto? A coruja, que fazia morada no telhado da capelinha do povoado, nalgum ponto da cumeeira, sabia-se lá, não estaria a agourar outra morte. Uma em cima de outra, assim no de repente? Não podia ser. Aquela coruja estaria atrapalhada. Por certo. De novo, a coruja sobrevoou o corteja, na entrada do cemitério desamparado de qualquer atenção da autoridade municipal. Quem mais a foice da morte deceparia?

O esquife barato foi colocado no chão lamacento. Antes, duas cordas foram passadas por baixo, para a descida aos sete palmos. De novo, a rasga-mortalha soltou um grito. Era estranho. As corujas eram animais noturnos. Raramente, davam sinais durante o dia, embora aquela fosse uma manhã nublada. Quando o caixão começou a descer, ouviu-se um barulho fraco, depois mais forte, vindo lá de dentro. As pessoas mais próximas assustaram-se. Algumas mulheres correram.

“Parem”!. Era o grito de Durval, genro do defunto. O caixão foi posto de volta ao chão, à beira da cova. Abriram-no. O velho Manoel Clarindo estava se mexendo. Estava vivo. Catalepsia. Retirado do caixão e amparado pelo genro e por um filho, o velho perguntou o que estava acontecendo. “O senhor morreu e não morreu”, disse o filho, Zé Augusto. Manoel Clarindo franziu a testa, esbugalhou os olhos e morreu. De verdade.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

VOCÊ NÃO LEU O LIVRO, VOCÊ ESTUDOU!


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A maior satisfação de um escritor, seguramente é saber que a sua obra foi lida, comentada e quiçá recomendada. Um livro precisa ser lido para “ganhar vida própria” no imaginário dos respectivos leitores. Segundo o filósofo e professor italiano, Nuccio Ordine, “nutrir o espírito pode ser tão importante, quanto alimentar o corpo”, fato que pode ser constatado mediante ressonância magnética funcional dos cérebros antes e depois da leitura de um livro. A “alimentação” do cérebro com uma boa leitura constituiu uma poderosa arma utilizada por muitos para vencer os tempos difíceis da pandemia.

Curiosamente, na semana passada, tive a grata satisfação de receber, espontaneamente, depoimentos elogiosos de três leitores do livro “Entre linhas de minha vida”, manuscrito autobiográfico, com temas familiares e profissionais, publicado em 2018. Na época, o confrade Anderson Nascimento, presidente da Academia Sergipana de Letras se referiu à obra como sendo “um ensaio de trajetória de vida, numa linguagem escorreita e com representações memorialísticas, lembrando a metodologia da ‘história da vida’, criada pela Escola de Chicago, na década de 1920”.

Segundo uma das leitoras, empresária e dona de uma das principais livrarias de nosso estado, o referido opúsculo é o seu favorito “livro de cabeceira”! Imagine o orgulho de ouvir isto de alguém que lida diuturnamente com livros! Todavia, o que mais me impressionou foi o estado em que se encontrava um exemplar do livro, que foi me solicitado autografar, por um conceituado endodontista, professor da Universidade Federal de Sergipe.

Não havia uma página sequer, sem diversas anotações, feitas, provavelmente, em tempos diferentes, a julgar pelas cores das tintas. Após eu ter feito uma generosa dedicatória, o odontólogo, segurando o livro com as duas mãos indagou: “pode perguntar o que quiser?” Claro que não me atrevi, porque ele, verdadeiramente, estudou o livro!

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

O DESPACHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Irreverente, ela adentrou, airosa, ao gabinete, cantarolando: “Preta, preta, pretinha...”. Sobre a mesa, alguns processos aguardando despachos e sentenças. A magistrada estava em sua primeira comarca. Dedicada, braba na aparência, mas um doce de pessoa para quem bem a conhecia. O escrivão entrou com um feixe de processos debaixo de cada sovaco. “Mais, ‘seu’ Antunes”? Ele sorriu, mostrando os dentes amarelados pela ação da nicotina. “Ainda vem muito mais”! Ela suspirou.

A comarca foi encontrada em desalinho. Um ano e tanto sem titular. Precisava botar muita coisa em ordem. A avaliadora judicial morava na capital e não aparecia. O escrivão lhe fazia as vezes. A funcionária só sabia assinar a papelada que o escrivão, quando ia à capital, levava à sua casa. Dos oficiais de justiça, que eram dois, um puxava da perna esquerda e demorava século e meio para cumprir os mandados. Ao menos, o escrivão era diligente. Meio tapado, mas diligente.

A cidade convivia com acentuada violência. Roubos e furtos ocorriam dia sim e o outro também. Dois homicídios nos últimos quinze dias: um numa briga por terras e o outro no meio de uma cachaçada. Um policial espancara um rapaz, que estava de namoro com uma moça, que, há pouco, acabara o relacionamento com o dito policial. Os porcos de um sujeito do povoado Pau D’Arco comeram a macaxeira do vizinho e este dera um chega para lá no outro, que lhe botara no hospital. E a diretoria do hospital procurou a juíza para reclamar do prefeito, que não estava repassando as verbas acertadas no convênio.

Prefeito novo, ensimesmado com o diretor da casa de saúde, filantrópica, porque este votou no opositor. Sem ação judicial, a juíza nada podia fazer. Não poderia se imiscuir nos atos discricionários da Municipalidade. Orientou que procurasse o doutor promotor.

O primeiro processo da espessa pilha à sua esquerda era de uma ação de divórcio. A briga do casal em desunião, como sempre, girava em torno da partilha dos bens e da pensão alimentícia para os quatro filhos. O esposo era auditor fiscal do Estado e a esposa era professora da rede municipal.

Mandara fazer a avaliação judicial dos bens. Aguardava o laudo. Aliás, chamara às falas a avaliadora sempre ausente, que buscara guarida junto a um desembargador, tio do seu sogro. O pistolão ainda estava em voga e, a depender do pimpão que podia ostentar, seria tiro e queda. Mas, com ela, Dra. Léa, a banda tocava de outro modo. A avaliadora teria que dar o expediente normal, ao menos nos quatro dias em que a juíza estava na comarca. E não adiantava reclamar e bufar.

Naquele dia, além da pilha de processos e de duas audiências marcadas para a tarde, receberia o senhor José da Silva Nunes, alcunhado de Pai Zuzé de Oxossi, um pai de santo, há pouco mudado para a Rua do Escorrega. A vizinhança dera parte dele por conta da fuzarca que acontecia nos dias de celebrar os orixás, segundas e sextas-feiras.

Os atabaques infernizavam os vizinhos, embora o oficial de justiça Pedro Curió considerava que havia intolerância religiosa. Católicos e protestantes irritavam-se à toa. O padre Marcolino Guedes não suportava o sincretismo. “Onde já se ouvir dizer que Santa Bárbara é uma tal de Iansã”? Esbravejava o prelado.

Por volta das 11 horas, o pai de santo fora anunciado. A juíza ajeitou-se na cadeira. Mandou entrar. Entrou. Era um preto roliço, alto, de idade avançada, grossas sobrancelhas, barba de alguns meses. Vestia uma calça marrom e uma camisa branca. No pescoço, uns colares de cores diversas. “Bom dia, sinhá doutora”! A magistrada respondeu ao cumprimento e apontou a cadeira à sua frente. O pai de santo tomou assento.

 A conversa tinha tudo para ser breve. Na verdade, era apenas para determinar que os atabaques não incomodassem os vizinhos. Porém, como fazê-lo? Terreiro sem atabaque era como igreja sem sino, como feira sem vozerio, como corrida de cavalos, que eram comuns por ali, sem alarido na chegada. Aliás, uns pangarés, que eram feitos cavalos de corrida, sabia Deus como.

Doutora Léa iniciou a conversa: “Seu José, o senhor sabe que a vizinhança do seu terreiro prestou uma queixa na delegacia sobre os inconvenientes que os seus tambores estão causando, não sabe? Pois bem. O delegado queria furar os seus tambores, mas teve o tino de fazer-me ciente do ocorrido. Por isso, mandei chamar o senhor aqui, para darmos uma solução nesse furdunço”. O velho pai de santo manteve-se imóvel como uma baraúna em dia sem sopro de vento.

Naquele instante, adentrou ao gabinete o tabelião Paulo Mendes. “Com licença, doutora. Eu preciso de um despacho rápido, se não for incômodo”. A juíza, com cara de blague, respondeu: “O despacho é meu ou do pai Zuzé”? O pai de santo arregalou os olhos. E o tabelião não conteve a gargalhada.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

YANOMAMIS: UMA TRAGÉDIA INOMINÁVEL


  

 

José Lima Santana*

 

 

Não me interessa fazer proselitismo político, condenar ou exaltar ninguém. Quero, apenas, demonstrar a minha indignação diante da situação do povo Yanomami. Aliás, espero uma posição firme da Igreja Católica brasileira, através da CNBB, a esse respeito.

Causa dor e revolta a situação exposta na imprensa e nas redes sociais, mostrando o que se poderá chamar de gravíssima questão humanitária, embora se possa também dizer que estamos diante de um genocídio.

Mas, nesse caso, quem propiciou esse genocídio? Quem deixou que essa situação chegasse ao ponto que chegou? Milhares de índios morrendo de fome e por enfermidades. Crianças, jovens e adultos, dentre estes, idosos, esquálidos, tão aparentados, infelizmente, com os judeus do abominável holocausto hitlerista.

Atingimos um ponto de curva o mais reprovável possível. Especialmente, um País como o nosso, que é dos maiores produtores de alimentos do mundo, não poderia jamais permitir que essa situação degradante pudesse acontecer, em parte por falta de comida. É uma questão social muito grave.

Nenhum governo poderia ser isento de cuidar do seu povo. Os nossos povos originários são parte do povo brasileiro e como tal devem ser cuidados. Onde esteve o governo federal? Onde esteve o governo de Roraima? Os parlamentares daquele Estado? O Ministério Público? A Igreja? Todas as denominações religiosas que atuam naquela região? Fazem-no apenas para pregar o Evangelho, para aculturar os índios, arrancando pela raiz a sua cultura nativa e deixando-os depois ao Deus dará?

Ora, o que ali prevaleceu foi a ganância desmedida de quem invade a floresta para garimpar ilegalmente sob “as barbas do governo”, ou, melhor, sob as suas malignas “bênçãos”. E não venham me dizer que estou sendo severo demais. Não estou! O garimpo ilegal vem-se tornando incontrolável nalgumas áreas.

Devastação florestal, crime ambiental e crime continuado contra as populações afetadas pelo maldito mercúrio, utilizado para a extração do ouro. O Estado? Omisso. Conivente. Incentivador, talvez. O que, realmente, pode estar por trás disso? Quem poderá saber! Segundo dados técnicos, “entre as propriedades do mercúrio, está a capacidade da forma orgânica desse elemento se acumular ao longo da cadeia alimentar, causando a contaminação de peixes e o risco de envenenamento de quem deles se alimenta, inclusive seres humanos”.

A intoxicação por mercúrio “pode provocar danos ao sistema neurológico”. As consequências “podem variar desde dores no esófago e diarreia a sintomas de demência”. Depressão, ansiedade, dentes moles por inflamação e falhas de memória também estão entre os sintomas. “Um perigo ofuscado pelo brilho do ouro”.

O brilho sinistro do mercúrio, usado em garimpos para facilitar a separação do ouro, é um risco para plantas, animais e populações humanas. No Brasil, lamentavelmente, houve quem se pronunciasse, de forma macabra, sobre a destinação dos nossos índios, seguindo, por assim dizer, o pensamento do general norte-americano Philip Henry Sheridan, autor da frase "índio bom é índio morto", que teve como pano de fundo o genocídio de milhões de índios, promovido por desbravadores norte-americanos durante a conquista do Oeste. Homens de governo deveriam ter a língua menos solta. Deveriam governar mais e falar menos. Falar menos besteira. Mas, não tem jeito: alguns têm boca de privada.

Recentemente, um jornalista foi condenado por ter publicado um artigo no qual chamou índios Guarani-Kaiowá de incestuosos e no qual repetiu que “índio bom é índio morto”, passando dos limites do humor e gerando prejuízo à imagem e à moral deste povo. Com tal entendimento, a 2ª Vara Federal em Dourados (MS) julgou procedente ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e condenou o jornalista ao pagamento de indenização fixada em R$ 50.000,00 por dano moral coletivo.

A corte considerou que ele extrapolou a liberdade de expressão ao veicular conteúdo ofensivo e pejorativo contra os índios Guarani-Kaiowá em artigo publicado, em 2012, no portal O Tempo, de Minas Gerais.

Quanto aos Yanomamis, espera-se que possam receber o que lhes cabe: cuidado e proteção do governo e da sociedade. Índio bom é índio vivo e com sua cultura preservada.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

 

(*) Publicado No Correio de Sergipe, edição do dia 04/02/2023, p. A-2.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...