quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

FEMINICÍDIO: UM MAL QUE ATORMENTA A SOCIEDADE


  

 

José Lima Santana*

 

 

Como eu deveria perguntar? Quem é o homem? Ou, o que é o homem? Quero referir-me ao homem, enquanto sujeito masculino, o macho. Quem ou o que? Talvez os dois pronomes sejam apropriados, a depender de uns ou de outros. Quero falar do macho, mas não do machista, do imbecil que se arvora a ser superior à mulher.

Quero falar sobre os dois gêneros, que, na vida em comum, quando assim ocorre, se unem, em tese, por laços de desejos e outros sentimentos ou interesses recíprocos. Desde que saíram das cavernas, homens e mulheres deveriam ter assumido posições de igualdade no decorrer da vida. Cada qual com os seus atributos, os seus deveres e os seus direitos. Todavia, em condições de igualdade.

A força do macho, lamentavelmente, acabaria prevalecendo para se impor à mulher e esta, por uma condição estúpida de convencionalismo social, que lhe impôs a submissão forçada, até mesmo por conduto de várias denominações religiosas, cristãs ou não, acabaria sucumbindo.

Nisso, é preciso reconhecer, as religiões erraram. E, muitas delas, para não dizer todas (vai-se saber!), continuam errando. De forma feia, antiquada, vergonhosa. O macho tornou-se o senhor da razão. O macho é o esteio. O macho, por assim dizer, é um semideus. De araque, é bem verdade.

Os séculos foram se passando e a supremacia do macho foi-se acentuando até esmagar os direitos da mulher à igualdade que deve ser inerente à condição de ser humano que ela é, tanto quanto o homem. A desgraça é que o machismo foi “abençoado” (não fica bem dizer assim!), ou melhor, foi consagrado pela sociedade, ou pela parte que dela é constituída pelos homens, nas assembleias, nas convenções, enfim, nas normas, costumeiras ou escritas

O macho tornou-se o símbolo do poder. E também da desgraça. Na sua sanha miserável de afirmação e de dominação, o macho achou-se “dono” da mulher, propriedade “adquirida” de papel passado ou não. Maldita ilusão, que se tornou, em muitos casos, triste realidade.

Vamos ao cerne da questão. A imprensa nacional noticiou que no Natal mais cinco mulheres foram vítimas de feminicídio. Em pleno Natal! Cinco machos, cinco demônios, para usar uma linguagem dura, mas, talvez, bem apropriada, já que, pelos Evangelhos, Jesus, cujo nascimento celebramos, expulsou muitos deles, lograram tirar as vidas de suas companheiras ou ex-companheiras.

Eles não sabem perder. São tão fracos, ridículos, vermes, que não sabem perder aquelas que deveriam ter conquistado com ternura, compreensão, respeito etc. Chega o dia em que elas não suportam mais. Nem devem suportar. E eles não suportam perder o que não souberam ter, sem o sentido de posse e de propriedade.

Estamos entrando no início da terceira década do século XXI. E os machos ainda andam à solta, cometendo suas diabruras. Continuam se reproduzindo como se saídos de ovos de serpentes. Malditos sejam! O que fazer? Como fazer? Endurecer as leis, como propõem algumas pessoas e entidades, pode ser um caminho.

Mas, só isso não basta. É pouco, é muito pouco. A ação deve ser muito mais ampla e muito mais eficaz. Ao editar-se a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), pensava-se que os casos de violência contra as mulheres haveriam de diminuir. Ledo engano. Os machos se multiplicam como ervas daninhas. E deveras o são.

Há pouco mais de cinco anos, entrou em vigor a Lei do feminicídio (Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015), tratando do assassinato de mulheres por serem mulheres. Essa lei considera feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.

A nova legislação alterou o já decrépito Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Também modificou a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990), para incluir o feminicídio na lista.

Então, o crime de homicídio simples (art. 121, do CP) tem pena de 6 a 20 anos de prisão, e o de feminicídio, igualado ao homicídio qualificado, pena de 12 a 30 anos de prisão. Mas, apesar da legislação, o número de feminicídios tem seguido o caminho contrário de homicídios dolosos e roubos seguidos de morte, que diminuíram no ano passado.

Um levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo mostrou que, em 2019, houve 1.310 assassinatos decorrentes de violência doméstica ou motivados pela condição de gênero, características do feminicídio. Foi uma alta de 7,2 % em relação a 2018 (Fonte: Agência Câmara de Notícias, 09/03/2020). Cerca de duas mil crianças, adolescentes e jovens ficaram órfãos.

Em 2020, a situação não melhorou. A legislação vem, claro, se aprimorando, em defesa da mulher, mas é preciso fazer muito mais. Deve entrar em cena o processo educativo desde a mais tenra idade das pessoas, especialmente dos meninos. Faz-se necessário formar uma nova geração de homens conscientes da sua posição como HOMENS, e não como machos endiabrados.

Não se trata de “efeminizar” os meninos, como podem pensar alguns “educadores”, políticos e líderes religiosos malucos, mas, de dar-lhes a devida consciência do valor da mulher, igual ao valor do homem em todos os aspectos, enquanto seres humanos. Ela ao lado dele, e não atrás, acabando com aquela máxima velhaca e ultrapassada, que apregoa que “atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”.

Não! Atrás, não, mas, sim, ao lado. E somente assim poderemos construir uma nova sociedade, na qual a mulher nunca mais possa ser tida como objeto, “propriedade” do homem. Mulher e homem são sujeitos, jamais objetos. Faz-se preciso também dotar a sociedade de aparelhamentos policiais e judiciais eficientes e eficazes, incluindo mudança de mentalidade de certas autoridades desses dois setores, para cuidarem de forma mais firme da proteção à mulher, que, muitas vezes, além de se verem acuadas em casa, perseguidas nas ruas e noutros ambientes pelos companheiros ou ex-companheiros, ainda têm de enfrentar o descaso ou a humilhação em delegacias e fóruns, que é o que se tem visto, inclusive recentemente, como ocorreu em São Paulo, quando um magistrado despreparado, numa audiência em segredo de justiça, que, contudo, vazou, disse: “Se tem lei Maria da Penha, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

Bem. Não se trata de um magistrado, na essência da palavra. Infelizmente, trata-se de um idiota com todo respeito. Ou sem respeito. Que um dia, não tardio, todos possam compreender que o homem que, verdadeiramente, é HOMEM, não precisa nem deve ser “machão”. Deve, tão somente, ser HOMEM. Na essência da palavra.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sábado, 26 de dezembro de 2020

2021


  

 

José Lima Santana*

 

 

Aí vem 2021. O início da terceira década do século XXI. O ano novo começará com as mesmas ansiedades e angústias que marcaram 2020, em face da pandemia da covid-19, que ainda poderá se alastrar de forma avassaladora, caso a mutação “inglesa” do novo Coronavírus tenha força suficiente para se disseminar e tenha letalidade igual ou superior à cepa inicial?

Não se sabe. Caso se verifique a disseminação e a letalidade incisivas da nova cepa, de pronto uma pergunta se faz: as vacinas ora em andamento serão eficazes contra essa mutação? Eis, pois, um problema a ser enfrentado. Algumas vacinas já estão sendo testadas contra a nova cepa. Aguardemos os resultados.

O ano que se finda, 2020, começou sem que tivéssemos ideia do que poderia ocorrer. Somente a partir de março a “luz vermelha” se acendeu de forma vigorosa. Terrível. Fomos apanhados de surpresa. Não pudemos ou não soubemos lidar com a situação de forma adequada, no Brasil.

Não soubemos conviver com o novo cenário. Não tomamos, no conjunto da população, as precauções necessárias em termos de utilização de máscaras, de higienização das mãos, de distanciamentos etc. Por outro lado, além da falta de processos educativos/sanitários maciços, bem elucidativos, através de todos os meios de comunicação social, a cargo dos governos federal, estaduais e municipais, ainda tivemos que assistir à deplorável queda de braços entre governantes.

Uma situação insana e ridícula para um país que pretende ser democrático, não apenas na retórica constitucional. Porém, não tem conseguido se afirmar como tal, sobretudo, nos últimos anos, por conta dos desvarios de determinados agentes políticos, que não se dão ao respeito de olhar para o povo e suas necessidades prementes, mas, sim, volvendo o torto olhar para os embates eleitorais futuros, ou seja, de 2022.

Que pena! E que vergonha! O ano novo está batendo à nossa porta. Que venha. Mas, que saibamos lutar contra as dificuldades que ainda enfrentaremos. E não serão poucas. A economia destroçada. Os empregos faltantes. A renda das famílias minguando. A saúde pública cada vez mais periclitante. A educação de crianças, adolescentes e jovens seriamente abalada, prejudicada, com aulas on-line, às vezes com certa qualidade, mas, em muitos casos, especialmente, na educação pública básica, com muitas deficiências, que prejudicam sensivelmente os corpos discentes.

As vacinas estão por vir. Quando? Como? O Ministério da Saúde ainda titubeia. Alguns governantes estaduais anunciam medidas à frente das medidas do Ministério. Jogadas políticas, ou melhor, politiqueiras? Ou medidas que se fazem necessárias, embora localizadas, à falta de uma política de vacinação especial por parte do governo federal? Não estamos diante de uma política de vacinação nacional comum.

Não estamos enfrentando surtos da poliomielite ou sarampo, por exemplo. Nem da gripe. Não se trata de uma “gripezinha”. Não! Longe disso. Enfrentamos a pior crise sanitária das últimas décadas. A pior desde a “gripe espanhola”, que de 1918 a 1920 infectou cerca de 500 milhões de pessoas, um quarto da população mundial de então, e matou cerca de 50 milhões de pessoas.

Diferentemente de 1918, nós, agora, temos condições muito melhores, econômicas e tecnológicas, de vencer a pandemia. Contudo, é preciso a conjugação de esforços de todos, dos governos e do povo. Se os governos se digladiam, quando deveriam se unir em favor do país e do povo, cabe a cada um de nós velar pelos cuidados que devemos ter. Que não continuemos a afrouxar esses cuidados.

Todo ano novo é sinal de esperança. Que não a percamos. Que continuemos a confiar em Deus, se somos crentes n’Ele, ou, se não cremos, que façamos a nossa parte, no mínimo. Crentes ou não, somos membros da mesma Humanidade. O mundo tornou-se, há muito, uma aldeia global.

Que a globalização nos possa trazer o que houver de melhor, numa socialização do que a civilização humana tem produzido de mais salutar no chamado “mundo cultural” ou “mundo construído”, que edificamos sobre as bases do “mundo natural”. Que a globalização não nos traga apenas os grilhões do sistema financeiro internacional selvagem, que faz o homem ser explorado pelo homem e que propicia a afirmação cada vez maior das injustiças sociais.

Não percamos a esperança. Todavia, lutemos para que ela se trone realidade palpável. A esperança nos leva a agir; nos impele a crer; nos move no sentido de assumir as responsabilidades que nos competem, enquanto seres sociais que vivemos na polis. Nós vivemos e convivemos.

Nós somos seres da polis, que agimos e interagimos, para a consecução dos nossos objetivos, individuais e coletivos. Enfim, devemos buscar o alcance do bem comum, que, como bem o disse Miguel Reale, “é a conjugação harmônica do bem de cada um com o bem de todos”.

As vacinas estão vindo. Que venham o mais rápido possível. Que as brigas eleitoreiras de determinados governantes fiquem circunscritas a eles mesmos, sem que o povo seja atingido. Que não nos faltem as efetivas práticas governamentais pelas quais pagamos os nossos tributos.

Precisamos de políticas de saúde, e não de política na saúde, como afirmou um infectologista e professor da UFRJ. Aí vem 2021. Que venha! E que possamos e saibamos enfrentá-lo, vencendo os novos desafios. Por fim, desejo a todos um ANO NOVO com muitas vitórias.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

A COVID-19 E O QUEIJO SUIÇO

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A Suíça se destaca, também, pela variada produção de deliciosos queijos, consumidos, sobretudo, nesta época de festividades. Todavia, o mais conhecido no Brasil é o Emmental, aquele cheio de furinhos (olhadura) e massa semidura. Seu nome deriva do local onde começou a ser fabricado, desde o Século XIII, no vale de Emme, na região de Berna.

Vale ressaltar que tais buracos são gerados por bactérias específicas, responsáveis pela formação do ácido láctico. Durante esse processo, algumas delas consomem o referido ácido, liberando dióxido de carbono, que formam bolhas dentro do queijo, configurando, assim, a sua famosa característica.

Afinal, qual é a relação entre uma iguaria como o queijo suíço e uma doença nefasta como a Covid-19 que tem assolado, impiedosamente, todo o território nacional, causando estragos na economia e ceifando vidas preciosas? Na verdade, trata-se de uma metáfora que visa a reforçar a importância de se utilizar múltiplas proteções para dificultar a propagação do SARS-CoV-2, vírus altamente contagioso.

Nenhuma camada, por si só, é 100% segura, contendo, portanto, imperfeições, representadas pelos orifícios. Quando eles se alinham, aumenta o risco de contaminação. Contudo, a sobreposição de várias camadas: distanciamento social; uso adequado de máscaras; higienizar as mãos; etiqueta ao tossir ou espirrar; evitar tocar a face; limitar o tempo em locais aglomerados; preferir locais ventilados; mais testagem e rastreamento; isolamento e quarentena para os infectados e contactantes, respectivamente, e apoio das autoridades de saúde, criam uma barreira praticamente impenetrável, reduzindo, significativamente, o risco geral da população. A vacinação, quando disponível, adicionará mais uma camada protetora.

O modelo do queijo suíço foi originalmente proposto pelo Professor Emérito da Universidade de Manchester, Inglaterra, James Reason, em 1990, no livro “Erros Humanos”. Os furos nas fatias de queijo representariam erros que se acumulariam, levando a eventos adversos.

Todavia, a engenhosa metáfora acima descrita, foi adaptada pelo Professor Ian Mackay, virologista da Universidade de Queensland, em Brisbane, Austrália. Vale ressaltar que o sucesso do modelo depende do rigor da adoção de cada conduta, como ressalta o profissional, “Cada fatia tem orifícios ou falhas, e esses orifícios podem mudar em número, tamanho e localização, dependendo de como nos comportamos em resposta a cada intervenção”.

As máscaras servem como um bom exemplo de camada. Elas reduzem o risco de o indivíduo contaminar ou de ser contaminado, todavia a sua eficácia na proteção se reduz ou desaparece se não cobrir, adequadamente nariz e boca, se estiver no queixo, se não for trocada periodicamente, se não for lavada, se não for descartada corretamente, se as mãos não forem higienizadas ao tocá-las. Cada uma destas falhas constitui um buraco, em uma única camada.

Por enquanto a nossa principal vacina é usar o maior número de camadas de proteção possíveis, para evitar o alinhamento de orifícios, permitindo a passagem do arisco vírus, comprometendo a sua saúde e a dos seus.

Finalmente, recomendo que, nestas festas, degustemos o queijo suíço em família, sem aglomerações, com a esperança de que, no próximo ano, possamos confraternizar, também, com parentes e amigos.

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
 

domingo, 20 de dezembro de 2020

QUE NATAL É ESTE?

                                              José Lima Santana

 

 

José Lima Santana*

 

 

Um ano para esquecer, esse 2020, que vai findando? Talvez sim, para muita gente. Todavia, um ano em que a humanidade teve tudo para aprender e reaprender, embora com sofrimentos. Um ano de perdas. Um ano em que a vida passou por terríveis sobressaltos. Uma pandemia é algo grave a considerar em qualquer tempo e lugar.

A pandemia vivida em 2020 se alastrou por todo o mundo. Parecia que tínhamos voltado à Idade Média com suas pestes. Ou ao início do século XX com a influenza. Agora, um vírus de altíssima letalidade e de uma profunda ligeireza na propagação. Um vírus “chinês”. Houve quem suspeitasse que o novo corona-vírus fora criado em laboratório, para a China dominar a economia mundial. Delírio. Dominar a economia mundial...

A pandemia não foi tratada como deveria ser em certos lugares. No Brasil, não foi. Deu-se uma “luta” tremenda e vergonhosa, politicamente, com diversos agentes públicos de olhos postos nas eleições de 2022. Insanos. Medíocres. Pensaram em si próprios e não no povo, que os elegeu.

Caso o SUS – Sistema Único de Saúde –, na sua tripla composição, tivesse ficado com a gestão da pandemia, não teríamos assistido aos desmantelos que vimos e ainda estamos vendo na condução de tudo que diz respeito às diretrizes, metas e ações para combatê-la. Em suma, seria possível que, hoje, estivéssemos contabilizando um número muito menor de mortes e de contaminações. Mas, alguns agentes públicos preferem o confronto e as fanfarronices. As bestialidades. A insensatez.

Até no momento em que o mundo está prestes a encontrar um refrigério, através da aplicação de vacinas contra a covid-19, por aqui as querelas políticas continuam. O senhor do Planalto contra senhores da Planície. Políticos insensatos contra cientistas responsáveis.

Os políticos insensatos ainda gozam do apoio de técnicos e, talvez, de “cientistas” politizados, ideólogos de teses jamais comprovadas cientificamente. Uma pena que “cientistas” se prestem para tanto. Aliás, não é de estranhar. Afinal, em outros momentos gravíssimos da vida humana isso também ocorreu. Como esquecer os “cientistas” que deram guarida aos terríveis experimentos nazistas, por exemplo?

Aí vem o Natal. Um Natal destroçado em face do que antes eram as comemorações natalinas, ruidosas, aglomeradas, as famílias reunidas sem medo, muitas vezes sem terem nada a ver com o sentido religioso da celebração, já que se trata de comemorar o Nascimento do Menino Jesus, como aludem os cristãos à vinda ao mundo do Emanuel, o Deus conosco, o Messias, Salvador de todos os homens. Todavia, uma festa sem par pelo mundo afora, onde quer que se encontrem cristãos.

Festa do amor, da reconciliação, da paz, da fé, da esperança, da misericórdia. Para alguns, assim é o Natal. Para outros, mera festa de cunho comercial, de comes e bebes, e nada mais. Um feriado.

Que Natal é este? Ou que Natal será este de 2020? Um arremedo de Natal? Se pensarmos em festa, é possível que sim, um arremedo. Porém, poderíamos pensar além da festa tradicional. Se o Natal é uma festa cristã, instituída para esmagar uma festa pagã romana, dedicada ao deus Saturno, que ganhou corpo e se espalhou por todo o mundo, não custa pensarmos com maior profundidade.

Embora para certas pessoas, possa soar de forma piegas, está mais do que na hora de o Natal ser pensado como o momento de reverenciar Jesus Cristo, já que se trata do seu Nascimento, embora, claro, numa data fictícia, mas que não tira o brilho e o mérito da dedicação que a Ele se faz.

Pensar em Jesus não olhando para a imagem d’Ele nos crucifixos, nas telas ou nas esculturas que o representam. Olhar para o Jesus que vive nas faces de todos os homens e mulheres, especialmente de quem nem sempre – ou nunca – pôde ou pode celebrar e compreender o significado do Natal. Ou sequer o pôde ou pode vivê-lo como é comum, ou seja, sob os arroubos do materialismo mercantilista, cuja figura representativa jamais foi, nem é, o Cristo, mas, sim, o Papai Noel. Nada contra o “bom velhinho”, em cuja ação muitas crianças ainda acreditam. E nisso não há mal algum.

Que Natal nós teremos, no geral? Um Natal de ansiedade pela chegada das vacinas, venham de onde vierem? Também poderá ser assim. De qualquer forma, será um Natal muito diferente. Nos memes difundidos nas redes sociais, até os perus estão dançando, alegres, porque serão muito menos consumidos. Será?

Não sei como será o Natal dos leitores. Não sei como cada um haverá de celebrar este Natal. No mínimo, o que se espera é que os cuidados contra a pandemia não sejam afrouxados, embora muita gente já os afrouxou, insensivelmente, até porque alguns agentes públicos, nos quais muitas pessoas se inspiram, ideológica e miticamente, não se dignam a dar o exemplo. Vão na contracorrente, arrastando os seus adeptos fanáticos e, igualmente, insensíveis.

Que se possa celebrar o Natal, mas, com todas as cautelas sanitárias necessárias. Que seja este o Natal da esperança. Que seja o Natal de repensar o modo de vida de cada pessoa.

Enfim, haja o que houver, celebre-se seja lá como for, daqui vão os meus votos de FELIZ NATAL!

Que JESUS seja recebido em cada coração, transformado em nova e aconchegante manjedoura. Mas, que cada pessoa possa ver no outro a face do ANIVERSARIANTE.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 
 

sábado, 12 de dezembro de 2020

ONDA À VISTA


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Passadas as eleições quando milhares de brasileiros exerceram o direito cidadão de escolher, mediante votação livre, embora nem sempre esclarecida, os dirigentes e os legítimos representantes do povo, de inúmeras cidades brasileiras. Em várias delas, foi necessário um segundo turno, para que se conhecessem os seus prefeitos.

Será que as regras básicas de prevenção do novo coronavírus foram seguidas? Se existem dúvidas quanto ao seu cumprimento nos locais de votação, as campanhas de muitos candidatos e, sobretudo, as comemorações dos vitoriosos, nas urnas, foram eivadas de desrespeito às regras básicas de distanciamento social, higiene das mãos e uso de máscara. Este último importante acessório, quando, eventualmente, flagrado, geralmente não estava adequadamente colocado.

Vale ressaltar que, na nossa história republicana, foi a primeira vez que um processo eleitoral desta representatividade ocorreu durante uma pandemia. O mais assustador é que ainda estamos contabilizando o estrago causado pela primeira onda da Covid-19, que ainda não se dissipou totalmente, e já se visualiza, no outro lado do Atlântico e nos Estados Unidos, mais uma ameaçadora onda, provocando novo lockdown em várias cidades importantes.

Seguramente, em nosso meio, ainda não foi atingida a propagada imunidade coletiva ou de rebanho, quando, a quantidade de pessoas contaminadas e curadas, impedem a circulação de um determinado vírus, por falta de hospedeiro suscetível. Por outro lado, apesar do hercúleo esforço desprendido pela indústria farmacêutica muitas das quais, em parceria com universidades e outras instituições de saúde, poucas vacinas contra o SARS-Cov-2 conseguiram finalizar a importante fase três da pesquisa, que visa a testar a segurança e, sobretudo, a eficácia do fármaco.

Somando-se a isso, as vacinas, mesmo quando aprovadas pelos órgãos regulatórios de saúde, não estarão disponíveis, imediatamente para a população, uma vez que vai ser preciso montar uma gigantesca logística envolvendo insumos e profissionais para imunizar a população de um país com dimensões continentais, como o nosso.

Independentemente da terminologia empregada, segunda onda para uns e repique da primeira onda, para outros, tem sido registrado, em todas as regiões, aumento significativo no número de infectados e de internamento hospitalares, sobretudo em unidades de terapias intensivas.

Essa constatação é preocupante, face às desativações, tanto dos hospitais de campanha, como dos esquemas de enfrentamento da virose, da maioria das instituições hospitalares públicas e privadas. Portanto, como a maioria dos hospitais já registra aumento, consistente, dos internamentos pelas patologias habituais além da demanda reprimida de procedimentos cirúrgicos eletivos, uma nova inundação trarão consequências desastrosas ao já nefasto cenário da Covid-19, em nosso País.

A aproximação do ano novo, traz a esperança de que as vacinas nos permitam voltar ao “velho normal”, todavia, traz, também, o temor das aglomerações nas várias comemorações que, certamente, acontecerão, apesar dos inúmeros alertas desencorajadores das autoridades de saúde.

Finalizo, ressaltando que, não infringir as regras básicas de segurança, constitui dever de todos.

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

BESTA FERA


  

 

José Lima Santana*

 

 

O município, recentemente emancipado, a custo de confusões e até mortes, enfrentaria a sua primeira eleição municipal. Os chefes políticos do município maior do qual Brejão das Almas tinha se separado, ainda detinham poderio de mando sobre a cidadezinha e os povoados agrupados no novel município.

A disputa, então, para os cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador, este com nove vagas, ficava por conta dos apaniguados de Doquinha do Tanque Limpo e de João Pedro da Barra Funda, vulgo Besta Fera, na voz dos seus opositores. Besta Fera tinha nas mãos a Prefeitura da sua cidade, Nossa Senhora do Pilar, e contava com o governo estadual, da UDN.

O PSD estava debaixo, no Estado, há duas eleições. O candidato apoiado por Besta Fera em Brejão das Almas era o seu genro, Chicão de Zé Maria, sujeito endinheirado, mas muito mofino, que, por certo, não teria nascido para a política, mas para ela sendo empurrado pelo sogro casca grossa.

Do outro lado, o candidato a prefeito era Joca Mulatinho, vereador há três mandatos no Pilar. Este, sim, político até as tripas. Dizia-se que com ele até as lombrigas dos eleitores buchudos votavam. Sujeito sagaz, capaz de dar nó em pingo d’água para arranjar votos. Era um pé ligeiro nas estripulias eleitorais. Nisso, ele sabia onde o cão dormia. Um populista de primeira hora, batedor de pernas por bodegas e cacetes-armados onde quer que se situassem, bom de lábia e de copo, misturado ao povinho raia-miúda daqui, dali e dacolá.

Joca era apoiado pelo Dr. Fulgêncio Marques de Brito e Melo Alencar, médico cearense há mais de trinta anos radicado no Pilar e deputado estadual pela segunda vez. E claro, apoiado por Doquinha. Os embates políticos prometiam escaramuças naquela primeira eleição de Brejão das Almas.

Os dois lados prometiam queimar enxofre, torrar castanhas de caju sem azeite. Aproximando-se o dia da eleição, os comícios pegavam fogo. Homens armados protegiam os candidatos dos dois lados. Besta Fera arranjara uns cabras das Alagoas. Já o deputado Fulgêncio e Doquinha arregimentaram uns protetores para Joca Mulatinho dali de perto, da Cruz de Ferro, povoado de gente acostumada a tocaiar, e do Riacho Sangrento, outro povoado de homens desassombrados. Para quê buscar pistoleiros de fora? Por ali tinha dos bons e dos melhores. Uma carnificina parecia estar armada, prestes a explodir.

Os dois lados arrotavam vitória e vomitavam ameaças. Pelo jeito, o cemitério local seria pequeno para conter tantos corpos, tal era a assustadora carnificina que se avizinhava. No domingo anterior à eleição, Maria do Socorro de Pedrão de Chico Batoré acordou cedo, mais do que de costume, para cuidar na casa e poder sair para votar dentre os primeiros eleitores.

Não gostava do fuzuê do dia da eleição, gente para lá e para cá, zanzando como baratas tontas, as bocas de urna esquentadas e tudo o mais fora da conta. Preparava o café quando ouviu um pipocar de tiros. Era uma saravaida de balas que parecia uma guerra de verdade. A guerra de Brejão das Almas como certamente haveria de ficar conhecida. Gritos, palavrões e mais pipocar de balas.

Correu para a varanda, abriu devagarinho uma janela e lá estava a carnificina. A praça onde se situava a sua casa encontrava-se coalhada de corpos, o sangue escorrendo como um riacho. Uma bala arrancou um tampo na janela vizinha. Mais que depressa, ela fechou a janela onde estava, caiu de joelhos e pôs-se a rezar. Se continuasse daquele jeito, não sobraria ninguém na nova cidade. Para que foram emancipar Brejão das Almas? Para aquilo? Para fazer da sua primeira eleição municipal uma guerra despropositada? Que Deus abrandasse os corações carregados de ódio, de ganância pelo poder. Mas que poder? Numa cidade que de cidade mesmo só tinha o nome.

O tiroteio continuou por horas a fio. A gritaria e os palavrões foram, pouco a pouco, diminuindo. O pipocar dos tiros também foi cessando. Novamente, Maria do Socorro entreabriu a janela, cautelosa. Medo de uma bala perdida. O que ela viu era ainda mais assustador do que antes.

Montes de corpos caídos, destroçados. Nas valetas o riacho de sangue já era caudaloso. Os dois candidatos a prefeito estavam caídos na calçada da igrejinha, um ao lado do outro, como se tivessem se matado. Na porta da igreja, o corpo do padre Filomeno Cardoso jazia com as mãos trançadas sobre o peito.

Àquela altura, imperava o silêncio. Até parecia que ela era a única sobrevivente daquela carnificina. Mas, outras pessoas também deveriam ter sobrevivido. Do contrário, seria uma lástima. De chofre, um menino ensanguentado chegou-se para ela, que se assustou. Era Mundinho, seu afilhado. Ela abriu a porta para acolhê-lo. Ele caiu em seus braços, arquejando. Morreu logo.

Maria do Socorro entrou em desespero. Abriu um berreiro desmedido. Mundinho era seu afilhado favorito, dentre alguns que ela tinha levado à pia batismal. Era como se fosse um filho. Do seu corpinho de seis anos, o sangue fluía por um sem número de furos. Tiros em profusão.

Na visão perturbadora de Maria do Socorro, o sangue de Mundinho inundaria a sua casa, a cidade, o mundo. Jorrava sem parar. Dona Janaína gritou na porta do quarto de Maria do Socorro: “Socorro, levante para se ajeitar. Hora do café. Daqui a pouco, começa a votação”.

Maria do Socorro, professora municipal, provinda do Pilar e, agora, na rede municipal da nova cidade, Brejão das Almas, acordou do pesadelo. Uma coisa horrorosa que lhe invadiu o sonho, ganhando força de pesadelo. Que Nossa Senhora do Desterro desterrasse as maledicências dos dois lados. Que a eleição não se desse suja de sangue.

Café tomado, foram as duas, mãe e filha cumprir o dever cívico. Tudo parecia tranquilo, apesar de muitas caras mal encaradas espalhadas pelos cantos. Seriam os pistoleiros, prontos para dar início ao banho de sangue do seu pesadelo? Que nada!

A eleição transcorreu sem sobressaltos. O genro do Besta Fera contava com a vitória. Afinal, gastara uma fortuna, comprando votos. Joca Mulatinho, pelo seu lado, já tinha comprado o terno para a posse. Confiava no seu jeito de lidar com as pessoas, misturando-se à raia-miúda.

Afinal, venceu Joca Mulatinho. Desbancou o Besta Fera e o seu genro endinheirado. Nove votos de diferença. No dia seguinte, um tiro certeiro derrubou o primeiro prefeito eleito de Brejão das Almas. Um pistoleiro postado por detrás do muro da casa de Severino Três Pernas, cabo eleitoral do Besta Fera, foi quem desferiu o tiro.

Joca Mulatinho foi levado, more-não-morre, para o acanhado hospital do Pilar. Resistiu. Escapou. Tomou posse no dia certo. Maria do Socorro tornou-se secretária municipal de educação. Quanto ao pistoleiro atirador, escafedeu-se. Mas, disseram depois que ele foi morto a mando do próprio Besta Fera. Tendo errado o alvo, passou a ser, então, o novo alvo.

Sertão de fogo. Meses depois, Besta Fera seria picado por uma cobra venenosa. Veneno poderoso. Sem antídoto.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

ZÉ BOSTINHA


  

 

José Lima Santana*

 

 

Manhã do fim de setembro. Manhãzinha de vento ainda fresco, quase frio, para o gosto dos sertanejos. Um galo cantou daqui; outro galo cantou dali; outro mais cantou dacolá. A aurora tingia o mundo com as cores de um alvorecer primaveril. Primavera só no nome, porque dali a pouco daria lugar ao verão antecipado de todos os anos. Verão antecipado que começaria a queimar tudo, pastos e caatinga, o sol bebendo toda a água das cacimbas, dos poucos riachos que mal mourejavam e dos açudes.

José Ferreira Barbosa de Aleixo, ou Zé de Ferreirinha do finado João do Mulungu, passou pela casa do Dr. Alcides Mamede, único advogado num raio de quinze ou mais léguas, metido na política local e, diziam as más línguas, na criminalidade de mortes matadas. Não era advogado de formatura, mas rábula provisionado. No entanto, doutor de nome e renome. Pai de dois filhos e de uma filha, todos adolescentes.

Zé de Ferreirinha olhou para dentro da casa de porta aberta. O olhar do rapazola pareceu entristecer-se por não ter visto o que esperava ver: a filha do doutor. E, assim, seguiu de rota batida para a pequena venda do pai, uma bodega num fim de rua. A filha do doutor vinha enfeitiçando o rapaz.

Tudo começou quando dançaram a quadrilha junina, na escola, sem, contudo, formarem um par. Num momento, os olhos de jaboticaba dela projetaram-se no fundo dos olhos dele. Foi o quanto bastou. Depois, conversaram algumas vezes furtivas. Engraçaram-se. Prometeram-se.

Línguas frívolas deram conta ao doutor de nome e renome que sua filha Maristela estava de conversê com o moço Zé de Ferreirinha, cujo pai era eleitor do lado de Jerônimo da Sapucaia, eterno adversário do lado no qual o tal doutor estava metido. Aí a garapa azedou para a mocinha, que foi chamada às falas. Uma surra de cinturão, que deixou marcas nas pernas. Proibição de voltar a falar com o rapaz.

E, pouco satisfeito, o doutor botou-se para o dito cujo. Um celerado acoitado pelo doutor botou tocaia naquele de coração derretido e o conduziu agarrado pela gola à casa do doutor. O que lá se passou, Zé de Ferreirinha nunca disse ao pai, nem a ninguém. Engoliu um sapo, que ficou atravessado entre a goela e o bucho.

Porém, espalhou-se na cidade que o doutor prometera dar cabo da vida do filho do bodegueiro, caso este insistisse em dirigir uma palavra à sua filha, ou lhe mandasse recado ou bilhete. E também se espalhou que o doutor chamou o rapaz de Zé Bostinha, apelido que ficaria na boca suja da escória. O apelido desgraçado ecoou pela cidade. Tornou-se praga.

Embora homem de paz, Ferreirinha, o pai, tinha um magote de parentes que se espalhavam por várias cidades e povoados do sertão. Um tio-avô, Zeca Ferreira, negociante de algodão, era afamado em causar rebuliço quando se metiam com os seus.

Desceu para Mata de Dentro onde morava o sobrinho-neto com uma cabroeira volumosa. Era um exército de mais de cem homens armados dos pés à cabeça. Dois caminhões Dodge entupidos. A cabroeira desceu na rua, em frente à casa do rábula provisionado. Teve gente que se borrou de medo diante de tamanho aparato. Zeca Ferreira, então, dirigiu-se ao rábula sem meias-conversas, nesse tom, curto e grosso: “Vim de longe para lhe dizer na taba de suas ventas que se tocar um dedo em gente minha, num Ferreira, nem o satanás vai lhe querer nas profundas do inferno, porque eu vou fazer de você e de sua gente um mingau de carne, osso e sangue misturados com terra. Eu sou Zeca Ferreira e esses são apenas uma terça parte do que eu tenho ao meu serviço. Já toquei fogo em povoado inteiro. Já fiz tremer prefeito e deputado. Já fiz coronel cagar nas calças para mais de quilo e meio. Não tenho sobrosso de nada nesta terra. Tocou no meu sangue, o inferno vem até você com enxofre e danação”.

Oh, dia abençoado!

Alcides Mamede encolheu-se como cobra sem peçonha. Enfim, encontrou uma baraúna prestes a lhe cair sobre a cabeça. Acalmou-se. Meteu o rabo entre as pernas. Na verdade, amofinou-se. Mas, também, vingou-se de Zé Bostinha. Maristela foi mandada para um internato na capital de outro estado.

Desgostoso, por não poder ter a única mocinha que lhe cativara o coração e desassossegara o quengo, meses depois o rapaz tomou o rumo de São Paulo, onde já estavam dois irmãos mais velhos. Lá ajeitou-se na vida, casou e constituiu família. Tornou-se próspero comerciante, no ramo de panificações. Comendador de duas Ordens oficiais. Tentou sepultar o passado. Havia coisas que facilmente se esqueciam. Outras, nem tanto.

Cinquenta e cinco anos depois, já setentão, viúvo, Zé Bostinha retornou a Mata de Dentro, onde só ficara uma irmã que também se encontrava em estado de viuvez. Margarida, a irmã, não cabia em si de tão contente com a volta do irmão. Tratou-lhe com mesuras só reservadas a um rei.

Dela, Zé Bostinha ouviu uma notícia desesperadora: Maristela maluquecera ainda no internato. Andava pelas ruas envergando um vestido de noiva, que de tempos em tempos ela mudava, cantarolando e dizendo coisas sem nexo. Zé Bostinha sentiu um aperreio no coração.

Ainda guardava na lembrança o rosto moreno daquela que lhe desassossegara, que chegou a pensar que com ela se casaria. Sentado numa rede, suspirou fundo. “Vida malvada, vida cruel”, pensou. Era um homem rico, viúvo. Voltara a sua terra depois de tantos anos para – quem sabia? – penitenciar-se da falta de coragem em não ter raptado a sua amada. Quem sabia, ela estaria viúva como ele, ou teria virado solteirona. Quem sabia, não poderiam se ajeitar, no fim dos seus dias? Esperanças perdidas. Ela tinha maluquecido.

Uns dias depois de sua chegada à cidade, caminhando no início da manhã, numa manhãzinha de vento fresco, quase frio, a primavera sertaneja soltando seus botões de flores de sucupira, paus-d’arco, marias-pretas, muricis, e outros tantos, dobrando a esquina da Rua do Xaxado com a Rua do Alvoroço, que, agora, se chamavam Dr. Fulano de Tal e Dr. Sicrano, eis que Zé Bostinha deparou-se com a maluquecida. Vestida de noiva. Um vestido branco, mas escurecido pelo tempo. Cantarolava. Dizia coisas sem nexo. Ele a avistara de longe. Parou. As pernas cambalearam. Quase tropeçara em si mesmo. O coração quase saiu pela boca. Após alguns instantes, avançou em sua direção.

Ao aproximar-se, ela o reconheceu. Parou a cantoria e as palavras sem nexo. Deixou cair um buquê de flores murchas. Tombou. Ele correu para socorrê-la. Tomou-a em seus braços. Ela chorou e soluçou. Um pranto mais do que sentido. Enlaçou-se nele. Proferiu o seu nome: “Zé!”. Estremeceu. Estava morta.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

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