domingo, 25 de abril de 2021
SOBRE O TAMANHO DAS ESCULTURAS
José
Fernandes de Lima*
Quem
visita Aracaju e tem a oportunidade de ir até o Largo da Gente Sergipana pode apreciar
as esculturas que representam personagens do folclore sergipano. Defronte ao
Museu da Gente Sergipana, em uma estrutura que avança sobre o Rio Sergipe, o
visitante encontra oito esculturas que chamam a atenção pelo acabamento, pela proporcionalidade
e pela história que representam.
As
estátuas medem 7 metros de altura, guardam as mesmas proporções das pessoas comuns
e são fixadas sobre uma base resistente, feita de metal e concreto. Elas contam
sobre a vida e sobre a cultura do povo sergipano. Lá, o visitante encontra
imagens que representam as principais manifestações culturais como o Lambe
Sujo, a Chegança, o Cacumbi, a Taieira, o Bacamarteiro, o Reisado, o São
Gonçalo e o Parafuso.
Depois
de apreciar a paisagem do Rio Sergipe e de aprender um pouco sobre a cultura
sergipana, o visitante pode ainda refletir sobre o efeito do aumento da escala.
A preservação das formas e das feições de uma estátua, como fizeram os artistas
e engenheiros daquela obra, traz à tona o problema da escala.
Toda
vez que você aumenta significativamente o tamanho de um objeto, mantendo a
escala e o material, você corre o risco de perder a estabilidade e necessita reforçar
a fundação, porque o peso aumenta mais depressa do que a resistência da base. Isso
ocorre porque a resistência de uma coluna, por exemplo, é proporcional à área
transversal da mesma, enquanto o peso é proporcional ao volume.
Se
nós esticarmos as arestas de um cubo de modo que elas fiquem com o dobro do
tamanho original, verificamos que a área da base ficará 4 vezes maior e o
volume do cubo ficará 8 vezem maior do que o original. Se aumentarmos a aresta 4
vezes, a resistência será multiplicada por 16 e o volume será multiplicado por
64 e assim por diante. A área cresce com o quadrado do fator de aumento e o
volume cresce com o cubo do mesmo fator.
A
pressão é uma grandeza que mede a força por unidade de área. Cada material tem
uma resistência máxima a pressão, de modo que, acima desse valor, ele deforma
ou quebra. As esculturas referidas acima estão montadas em bases de metal e
concreto que suportam grandes pressões, grandes pesos por área e, por isso,
estão totalmente seguras.
Se,
no entanto, as estátuas fossem seres humanos aumentados, a densidade dos seus
corpos continuaria a mesma e os seus pesos seriam proporcionais aos seus
volumes. Já foi dito que as estátuas do Largo da Gente Sergipano têm 7 metros
de altura. Isso corresponde a quatro vezes a altura de um homem de 1,75m, que
pode ser tomado como padrão.
Se
considerarmos que o homem padrão adotado no nosso exemplo tem uma massa de
80kg, o homem correspondente a estátua de 7 metros teria uma massa 64 vezes
maior, ou seja, teria uma massa de 5.120 kg. Nesse caso, ele teria problema de
sustentação e seus pés poderiam ser esmagados pelo próprio peso.
Isso
não acontece com aquelas estátuas porque elas são ocas e suas bases foram
propositadamente feitas de metal e concreto, que são materiais resistentes a
pressão.
Devidamente
motivado, depois de pensar sobre o problema da escala, o visitante pode
continuar viajando nos seus pensamentos, lembrar que a literatura está povoada
de personagens que aumentam e diminuem de tamanho com facilidade e pode refletir
sobre as dificuldades que esses personagens teriam para manter os seus corpos
feitos do mesmo material e com as mesmas proporções. Muito provavelmente,
lembrará do livro As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, de filmes como Terra
de Gigantes e de outros que tanto estimulam a imaginação.
Há
muito para ser visto e imaginado no Largo da Gente Sergipana.
* Professor
Emérito da UFS, Presidente da Associação Sergipana de Ciência (ASCi) e membro
da Academia Sergipana de Educação.
sábado, 24 de abril de 2021
VITAMINA D E COVID-19
Antônio Carlos Sobral Sousa*
A segunda onda da Covid-19
continua atormentando a rotina da maioria dos hospitais, que tiveram que se
estruturar para atender à demanda crescente de pacientes graves. O receio de
contrair a doença, aliada à inexistência de tratamento específico, tem levado à
procura de medicamentos ou suplementos que aumentem a imunidade.
Um dos produtos mais propagados em mídias sociais, na atualidade,
é a Vitamina D, cujo fascínio pelo uso, com a pretensa esperança de proteção
contra infecção respiratória, já ocorre há quase cem anos. Tem sido postulado
que os níveis séricos ideais de 25-hidroxivitamina D podem conferir
propriedades imunomoduladores e anti-inflamatórios e, possivelmente, beneficiar
os infectados pelo novo coronavírus.
Esta suposição é verdadeira? Enquanto existem evidências de
benefícios da função da Vitamina D, no sistema esquelético, a ação protetora no
trato respiratório continua controversa.
Estudo recentemente publicado na conceituada revista científica
JAMA, demonstrou em 4.368 voluntários com níveis baixos de Vitamina D (<
40mg/dL), que a suplementação não protege contra a virose, sugerindo, todavia,
que pode prevenir formas mais graves da doença.
Por outro lado, foi publicado, no mesmo periódico, um estudo
brasileiro e, também, não evidenciou benefícios na utilização de superdosagem
da referida vitamina, no tratamento de pacientes internados, com formas
moderadas e graves da Covid-19.
Dessa forma, é manter o nível sanguíneo de Vitamina D acima de
30mg/dL, ingerindo, adequadamente, carnes, leguminosas, leite e derivados
e frutos do mar e procurar manter exposição solar periódica. Por outro lado, a
suplementação quando indicada deve ter orientação médica.
* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
GEORGE FLOYD NUNCA ESTARÁ SÓ
José Lima Santana*
Desde quando vidas negras importam?
Ora, desde que importam vidas brancas ou quaisquer outras vidas humanas. Muito
antes do assassinato de George “Perry” Floyd Jr., em Minneapolis, Estado de
Minnesota, no dia 25 de maio do ano passado, a luta dos negros norte-americanos
sempre teve lances memoráveis, decorrentes da condição sub-humana com que os
negros dos Estados Unidos da América sempre foram tratados.
O racismo estrutural é algo abjeto,
mas que está presente em muitas sociedades ditas civilizadas. Mas, no país do
Tio Sam ele se mostra sob formas estúpidas em fatos isolados ou não. Os
supremacistas brancos de “almas enlameadas” não haverão de se ajustar
facilmente. Sim, são desajustados.
Muitos norte-americanos jamais
aceitaram a abolição da escravatura, em 1865, inclusive causando o assassinato
do homem que fez de tudo para acabar com a mancha nefasta da sujeição dos
negros, Abraham Lincoln.
A maldita Ku Klus Klan amedrontou,
perseguiu e matou muitos negros. A segregação oficial só foi contida na década
de 1960, com a Lei dos Direitos Civis assinada pelo presidente Lyndon Johnson,
depois das lutas dos negros a partir da recusa da costureira Rosa Parks em
ceder o lugar num ônibus a um branco, no Alabama, em 1955.
Uma vergonha, por ter demorado tanto.
Dentre outros líderes, Martin Luther King Jr. teve a vida ceifada no auge da
luta dos negros naquela década (04/04/68). Para mim, duas estrelas de
primeiríssima grandeza brilham no firmamento universal da luta dos negros: King
e Mandela. Duas vidas dignas. Duas lutas cujas chamas jamais se apagarão.
Qual o país escravocrata das Américas
que não tem os seus líderes e mártires negros? Homens e mulheres que sofreram e
morreram sem nunca renunciar ao direito de serem respeitados (as) como seres
humanos e negros (as). Todos os países os têm. Nesses países, líderes e
mártires negros (as) continuam a existir. Que os líderes continuem a brotar,
mas que os mártires cessem de os ser. Urgentemente.
No ato da detenção de Floyd, o então
policial Derek Chauvin ajoelhou-se no pescoço e nas suas costas por 8 minutos e
46 segundos, ocasionando o assassinato. Sua morte e as ações da polícia levaram
a protestos em todo o mundo do movimento ativista antirracista Black Lives
Matter, pedindo a reforma da polícia e a legislação para lidar com as
desigualdades raciais.
No Brasil, ações policiais também têm
levado muitos negros, em sua maioria jovens, à morte. Aliás, tanto nos Estados
Unidos quanto aqui, o fato de ser negro e pobre já é suficiente para
desconfianças, no mínimo. Mas, aqui, a polícia mata muito mais do que lá. E
mata muito, muito mais negros do que lá.
Por que os negros daqui não reagem
como os de lá? É porque não somos devidamente organizados? É porque somos
individualistas? Covardes? É porque somos assim mesmo? É porque nos dizem que
aqui não há racismo como lá? Não há? Já houve, inclusive, quem dissesse – e não
foram poucos – que a miscigenação brasileira apagava o racismo. Mentira.
Outra mentira é a de que o racismo
daqui é velado. Não é. Pelo contrário, é muito explícito. Ele está nas piadas
de mau gosto, em expressões racistas como “negro de alma branca”, e explode de
vez em quando, como no domingo, 18, em que um homem, em Goiânia, praticou
injúria racial e ameaças contra uma moça da portaria do prédio onde ele mora.
Segundo a moça, a discussão começou
porque o morador chegou de carro em frente ao portão da garagem e piscou os
faróis, querendo entrar sem se identificar. A funcionária explicou que não
poderia abrir para qualquer um que fizesse um sinal e que precisava que o homem
se identificasse, como são as regras condominiais, o que irritou o morador.
“Grava, macaca! Chimpanzé! Chipanga! Me encara, desgraça”, disse o homem
pessoalmente à vítima, que estava filmando a cena. Fatos como esse ocorrem com
certa frequência pelo país afora. Enfim, matar negros nas favelas ou subúrbios
é como se livrar de um empecilho, para a polícia. Isso beira a uma “faxina
étnica”.
Aqui, como noutros países, há pessoas
que, ao seu modo, enfrentam obstáculos para vencer o racismo. Em 1925, por
exemplo, uma mulher que eu conheci, em Nossa Senhora das Dores, branca, filha
de um pequeno proprietário rural e senhor de escravos (na verdade, o seu pai só
tinha uma escrava, de nome Rita) ousou casar com um negro, neto de escravos,
isso 37 anos depois da abolição.
O casal conviveu durante 68 anos,
quando o homem morreu, aos 91 anos. O casal teve seis filhos, muitos netos e
bisnetos. A diferença de cor não impediu a vida harmoniosa e respeitosa do
casal, do qual eu sou, com muita honra e gosto, um dos netos. Minha avó branca
e meu avô negro foram um exemplo de dignidade e honradez para toda a família.
Muitos casais viveram ou vivem assim, enfrentando, ao seu modo, o racismo.
Voltando a George Floyd, o policial
que o asfixiou foi expulso da polícia. Na tarde da última terça-feira, 20, o
ex-policial Derek Chauvin foi condenado por decisão unânime do júri popular que
analisou o caso. Chauvin foi condenado por assassinato não intencional em
segundo grau, assassinato em terceiro grau e homicídio culposo.
A promotoria decidiu revogar a fiança
para o crime de homicídio culposo. E a fiança paga foi de um milhão de dólares,
quantia provavelmente levantada por defensores da supremacia branca. O
ex-policial saiu do tribunal algemado. Foi um momento histórico na luta contra
o racismo, naquele país.
O presidente Joe Biden disse que a
condenação do ex-policial Chauvin pelo assassinato de Floyd "é um passo
adiante" na luta contra o "racismo sistêmico" que "mancha a
alma da nossa nação". Segundo o ex-presidente Barack Obama, primeiro negro
a presidir o seu país, “a verdadeira justiça exige que se admita o fato de que
negros americanos são tratados de maneira diferente todos os dias”.
A vice-presidente Kamala Harris,
descendente de negros e asiáticos, sublinhou as difíceis condições de pessoas
negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido
tratados como se fossem menos que humanos”. E acrescentou: “Suas vidas precisam
ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa
nação”.
Nesses dias, nos EUA, Estados
governados por republicanos estão mudando suas leis para proteger a Polícia e
para coibir as manifestações livres, como os protestos dos negros. Atitudes
repudiáveis. Na tarde da condenação de Chauvin, a polícia matou uma jovem de 16
anos, ali perto. Mais protestos. Mais um caso a resolver.
Após a morte de Floyd, a North
Central University, em Minneapolis, anunciou uma bolsa de estudos com o nome de
Floyd e conclamou outras faculdades e universidades a seguirem o exemplo. A
Alabama State University também anunciou uma bolsa de estudos em homenagem a
Floyd. George Floyd nunca estará só. E que sós nunca estejam os negros
brasileiros que são mortos como uma coisa qualquer.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
segunda-feira, 19 de abril de 2021
AS FACES CONHECIDAS DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA
Antônio
Carlos Sobral Sousa*
As
marés de março são as maiores do ano devido à passagem do sol pelo plano do
equador terrestre. Conforme previsto pelos especialistas, no mês passado,
praticamente todas as cidades brasileiras foram inundadas pela 2ª onda da
Covid-19, afogando, literalmente, os sistemas de saúde, inclusive os da rede
privada.
Esta
onda, de proporções maiores do que a primeira, tem levado os profissionais de
saúde à exaustão e obrigado os hospitais a se reinventarem na criação de novos
leitos, sobretudo, os de terapia intensiva, com toda a sua complexidade.
No
transcorrer da Pandemia, passamos a nos acostumar com a sua impressionante
estatística. Os principais veículos de comunicação passaram a noticiar,
sistematicamente, o número de infectados, o percentual de ocupação dos leitos
de enfermaria e de UTI, bem como o crescente número de mortes, contabilizados
no pedágio dessa impiedosa virose.
No
início, tudo parecia muito distante, tínhamos, apenas, o medo natural das
pessoas sensatas. Todavia, sorrateiramente, passamos a ter conhecimento de
pessoas próximas, que foram acometidas pela doença, cuja evolução pode ser
comparada à uma loteria.
Atualmente,
com variantes mais contagiosas e, seguramente, mais agressivas, o cenário mudou
completamente, tornando difícil encontrar alguém que não teve um parente ou um
amigo, ceifado pelo Sars-Cov-2.
Passamos, portanto, a conhecer as vítimas.
A
presença do cardiologista Marcelo Queiroga no comando do Ministério da Saúde,
renova a esperança de dias melhores para o nosso país, que marcha, a passos
largos, para atingir a triste barreira das 400 mil mortes pela doença,
colocando o Brasil na desagradável situação de contribuir com, aproximadamente,
11% do total mundial de óbitos pela Covid-19, a despeito de possuir, apenas,
2,7% da população global. Espera-se, portanto, um programa de vacinação mais
amplo e mais célere e maior seriedade na divulgação e execução das medidas
comprovadamente protetoras de uso de máscara, higienização das mãos,
distanciamento social e evitar aglomerações.
* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
sexta-feira, 16 de abril de 2021
AS PINHAS
José Lima Santana*
O quintal da mãe de Zé de Tonho Brito
era amplo e cheio de árvores frutíferas. Tinha quase de um-tudo. De jambo a
jaboticaba. De manga – rosa, espada, maria, coco e manguita – a caju, de jaca a
carambola, de pitanga a graviola, de coco a pinha. Laranja, limão, tangerina,
mamão de cheiro, tinha tudo isso, sim. Até araticum e jamelão.
Devia ter muito mais frutas. Quintal
porreta. E a mãe de Zé de Tonho Brito, Mariazinha, se fazia nos cobres,
vendendo de tudo. Viúva aos vinte e poucos anos de idade, com apenas cinco de
casamento, perdeu o marido afogado na lagoa do Brejão. Desde a morte de Tonho
Brito, Mariazinha labutou no quintal, para criar os dois filhos, Zé e Tininha,
que se fizeram rapaz e moça, dando gosto à mãe.
Mariazinha contava com a ajuda de
Chico de Bartolomeu, antigo empregado numa fábrica de produtos químicos, em São
Paulo, da qual saiu por aposentadoria especial, dada a periculosidade da
atividade, e voltou para a terra natal. Proventos minguados, o ganho com o
trabalho no quintal Mariazinha o adjutorava.
Zé de Tonho Brito pegou namoro com
Duquinha, filha de “seu” Raimundo Costa e dona Margarida, tesoureira da
Prefeitura. Descambava o namoro para três anos. Namorinho grudento. O
casalzinho parecia mesmo dois pombinhos em doces arrulhos. Uma beleza de casal,
eles formavam.
Casamento? Eles ainda não atinavam.
Eram jovens demais, pensavam. Vinte anos, ele, e dezoito, ela. Começaram o
namoro ainda na escola, quando dançaram, de par, a quadrilha de São João.
Duquinha recebia mimos de Zé, inclusive em forma de cestas de frutas. De todas,
a que ela mais apreciava era a pinha. Fruta da qual Zé não fazia gosto.
Das pinhas, Duquinha devorava uma
cesta inteira, se possível. Antes de namorar com Zé, ela as comprava, no
tabuleiro de dona Mariazinha, posto na calçada. Às vezes, o próprio Zé as
vendia, mas, então, crianças, entrando na adolescência, eles nem davam fé um do
outro, nem ele, dela, nem ela, dele.
Ali na vizinhança, outra moça gostava
de pinhas. Rachel de Júlia de Tibúrcio. Mesma idade de Duquinha. Mesma turma,
na escola. Mas, Duquinha e Rachel pouco se davam. Um desentendimento durante
uma aula de Geografia. E, um ano antes do desentendimento, Rachel tinha perdido
Zé para Duquinha, na quadrilha junina. Ela tinha namorado Zé por duas semanas,
se aquilo podia ser chamado de namoro. Uma faísca.
Mais uma vez, chegou o tempo da safra
de pinhas. Eram seis pés. Botavam à vontade. Mariazinha e Chico colhiam dezenas
de pinhas todos os dias. O ajudante tinha o encargo de lavar toda fruta
colhida. Disso, dona Mariazinha não abria mão. Higiene.
Beirava o meio-dia, quando Chico,
naquela terça-feira, lavou umas pinhas há pouco colhidas e guardou-as para Zé
mimar a namorada. “Estas aqui, dona Mariazinha, são especiais”, disse. À tarde,
sol a pino, Zé de Tonho Brito levou as pinhas para a namorada, que as recebeu
com alegria e um agradecimento próprio de namorada.
Dona Margarida, futura sogra de Zé,
assim que retornou da jornada na Prefeitura, após as dezesseis horas, sentou-se
no alpendre do fundo da casa e comeu uma das pinhas. Deliciosa, como sempre.
Acendeu o fogão. Deu vontade de comer mais uma. Comeu. Bebeu um copo d’água
fresquinha, da moringa que esfriava a água na janela do oitão, o vento soprando
e fazendo música na boca da moringa, aberta. Sentiu uma tontura.
A tarde foi caindo, as galinhas
ciscando no quintal, alertadas pelo galo de que estava chegando a hora de
tomarem lugar no poleiro. Duquinha estava na aula de bordado, na casa de
Manoela do finado João Turco. E “seu” Raimundo, na lide com o gadinho que
criava não muito longe da cidade. Duquinha era filha única.
Eram quase seis horas quando Duquinha
chegou em casa. O lusco-fusco da casa deu lugar à claridade da lâmpada acesa
por ela, na sala de jantar. “Mãe, ô mãe!”, ela gritou. Silêncio. Tornou a chamar.
Nada. Na cozinha, o fogão estava aceso. Uma panela no fogo. A chaleira estava
sobre a mesa. Estranho. “Mãe, cadê a senhora?”, chamou mais uma vez. Nada. De
chofre, um grito. “Meu Deus! Mãe...!”.
Dona Margarida estava caída. Uma
gosma escorrendo da boca. Duquinha gritou pela vizinhança. A aflição na voz de
Duquinha chamou a atenção de duas vizinhas. Gritaria. “Santo Deus!”, exclamou
uma. “O que foi isso?”, indagou a outra. Logo, muitas pessoas acorreram à
aflição das três, Duquinha e as duas vizinhas. O médico foi chamado.
Dr. Darcy era novato na cidade.
Médico da Fundação SESP. Alguém da Prefeitura o trouxe. Já dona Margarida,
inerte, posta na cama. Exames ligeiros. Dona Margarida estava morta. “Parece um
caso de envenenamento. É preciso encaminhar o corpo ao IML, na capital. E
chamar a polícia”. Como seria possível? Suicídio?
Àquela altura, rolavam as conversas.
Dona Margarida descobriu que “seu” Raimundo estava de caso com alguma zinha?
Seria isso? Teria ela dado um desfalque na Prefeitura e o prefeito estava
prestes a descobrir? Suposições. Maldosas ou não, eram suposições. Alguém foi
chamar “seu” Raimundo.
O delegado tomou as providências que
lhe cabiam tomar. Isolou a cozinha e o alpendre. Preparou o encaminhamento do
corpo para o IML. Quando possível, o rabecão chegaria. A cidade entrou em
alvoroço. As conversas rolavam.
Enfim, no dia seguinte, o veredicto
do IML. Envenenamento por cianureto de potássio. Na quinta-feira, o corpo foi
liberado para sepultamento. Comoção na cidade. Duquinha e “seu” Raimundo
arriados. Zé de Tonho Brito, a mãe e a irmã não largaram Duquinha. Tudo era uma
tristeza só. As más línguas ainda tricotavam.
O delegado tinha feito algumas
investigações. Dentre elas, recolheu as cascas das pinhas, encontradas no
alpendre. Pediu exame toxicológico. Não deu outra. Foi encontrada a presença do
cianureto. Dona Margarida envenenou-se ou foi envenenada? O delegado ouviu
Mariazinha, Zé e Chico, o ajudante. Ouviu Duquinha e “seu” Raimundo.
Ora, o crime não foi perfeito. E não
durou muito para se chegar aos culpados. Chico, o ajudante de Mariazinha, não
aguentou o repuxado das perguntas do delegado, no segundo interrogatório. Crime
premeditado. Concurso de agentes. Descobertos o autor material e o mandante. Ou
a mandante.
Rachel, a colega com quem Duquinha
não se dava, tinha ciúmes dela com Zé de Tonho Brito, embora fosse discreta.
Chico era seu primo em segundo grau. Inclusive, antes de arribar para São
Paulo, ele tivera um desentendimento com “seu” Raimundo, ainda moço, mas bem
taludo, de quem tinha apanhado de rebenque.
Rachel acercou-se dele. Foi-se
chegando mais e mais. Proposta macabra feita, mas, de início, recusada. Novas
investidas. Acerto firmado. Ele, conhecedor das químicas, serviu-se de uma
seringa para injetar o veneno nas pinhas, naquele quase meio-dia de
terça-feira. O alvo, claro, era Duquinha. Dona Margarida comeu as pinhas, antes
da filha.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
sábado, 10 de abril de 2021
ANTES ERAM NÚMEROS E AGORA SÃO NOMES
Antônio
Carlos Sobral Sousa*
Todo
pescador, mesmo os amadores, sabem que as marés de março são as maiores. Esse
fenômeno natural ocorre mediante a coincidência de uma maré de sizígia (conhecida
popularmente como maré de
lua cheia ou nova), associada à posição solar. Portanto, são as maiores do ano devido à passagem do sol
pelo plano do equador terrestre.
Curiosamente,
no mês de março passado, praticamente todas as cidades brasileiras foram
inundadas pela 2ª onda da Covid-19, afogando, literalmente, os sistemas de
saúde, inclusive os da rede privada. Esta onda, de proporções maiores do que a
1ª, tem levado os profissionais de saúde à exaustão e obrigado os hospitais a
se reinventarem na criação de novos leitos, sobretudo, os de terapia intensiva,
com toda a sua complexidade.
No
transcorrer da Pandemia, passamos a nos acostumar com os números da sua
impressionante estatística. Os principais veículos de comunicação passaram a
noticiar, sistematicamente, o número de infectados, o percentual de ocupação
dos leitos de enfermaria e de UTI, tanto da rede pública, como da rede privada,
bem como o crescente número de mortes, contabilizados no pedágio dessa
impiedosa virose.
No
início, tudo parecia muito distante, tínhamos o medo natural das pessoas
sensatas, todavia, se imaginava que a “Peste” iria desaparecer antes de nos
ameaçar de fato. Todavia, sorrateiramente, passamos a ter conhecimento de
pessoas próximas, que foram acometidas pela doença, cuja evolução pode ser
comparada à uma loteria.
No
estágio atual da evolução da doença, com variantes mais contagiosas e,
seguramente, mais agressivas, o cenário mudou completamente, tornando difícil
encontrar alguém que não teve um parente ou um amigo, ceifado pelo Sars-Cov-2. Passamos, portanto, a citar
nomes: Raimundo, Manoel, Ana, Emanuel, Glória, Conceição etc.
A
presença, novamente, de um médico no comando do Ministério da Saúde, renova a
esperança de dias melhores para o nosso país, que ultrapassou, recentemente, a
triste barreira das 300 mil mortes pela doença, colocando o Brasil na
desagradável situação de contribuir com, aproximadamente, 11% do total mundial
de óbitos pela Covid-19, a despeito de possuir, apenas, 2,7% da população
global.
Espera-se,
portanto, um programa de vacinação mais amplo e mais célere e maior seriedade
na execução das medidas comprovadamente protetoras de uso de máscara,
higienização das mãos, distanciamento social e evitar aglomerações.
* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
UMA MOÇA PERDIDA
José Lima Santana*
Amelinha aproveitava a fresca da
tarde, no oitão da casa, ouvindo o farfalhar das palhas das bananeiras tocadas
pela viração do vento, que vez em quando soprava. Sentada na cadeira de balanço
preferida de Dona Clementina, sua avó, que morava com a filha, o genro e os
quatro netos, desde que viuvou, desde que Antero Queirós dela se despediu numa
boquinha da noite, pouco antes de ser fulminado por um ataque do coração, ainda
homem rijo, na luta com a fazenda de gado, comprando garrotes e vendendo bois
para o abate.
Dona Consuelo, a filha, fez questão
de acolher a mãe, como, ademais, foi o gosto do marido e dos filhos, Amelinha e
os três rapazes, todos apaixonados pela sogra e avó. Família unida, família do
bem-querer.
A única moça, dentre os filhos de
Dona Consuelo, ou seja, Amelinha, acabara de debutar. Era o tempo do glamour
das debutâncias em que rapazes do colegial se travestiam de cadetes, imitando
as fotos das festas de debutantes das capitais, que saiam nas revistas O Cruzeiro
e Manchete. Às vezes, com roupas mal amanhadas, mas era o que se tinha como
cover.
Num buraco como Charco dos Caborjes,
qualquer imitação ultrapassava a realidade. Para alguns. A festa de Amelinha
abalou a cidade. Claro, isso é o modo de dizer. Afinal, não houve nenhum
terremoto. Porém, a grã-finagem do Charco marcou presença. Festa de arromba,
como Gilson Pacheco de Sousa e Amarante costumava dar. Festeiro por DNA. Era
assim a sua família, desde os tempos do baronato. Seu bisavô, Pedro Henrique de
Álvarez e Amarante, foi o Barão do Angico, promovedor de animadas danças de
salão e novenas para tudo que era santo.
De certo mesmo, foi que a cidade
ferveu naquele sábado da debutânçia de Amelinha. De par com ela, um moço
contratado, que era locutor numa rádio da capital. Fez as vezes de
mestre-de-cerimônia e dançou a valsa com a aniversariante. Dançou, não. Fez lá
uns arremedos, uns siricoticos, que fez Duda Marques, pé de valsa de botar no
chinelo até um tal de Fred Astaire, torcer os beiços, dar uns tuncs. “Se fosse
em Pão de Açúcar, minha terra, esse sujeito saía daqui chutado no traseiro”.
Despeita. Também, não era para tanto. Vamos e convenhamos.
Fernando de Lisandro, esse o nome do
dançarino improvisado. Sujeito bem apessoado, falante, mas com um chiado na
voz, ao pronunciar os “esses”, que dava nojo. A Duda Marques. Pelo menos a Duda
Marques. Despeitado que só ele. Segundo pareceu a muita gente, Amelinha
derreteu-se pelo sujeito, qual um picolé ao sol.
Se foi mesmo assim, não cabe nenhuma
censura. Uma debutante era uma debutante. Sonhos. Fantasias. Glamour. Tudo nos
limites e nos conformes. O resto devia ser falação. Festa sem falação não era
festa de verdade.
Quase um ano depois do décimo quinto
aniversário de Amelinha, Fernando Lisandro ainda oferecia músicas a Amelinha,
no seu programa diário na Rádio Aventura. Escrevia cartas semanais. Por três
vezes, esteve na cidade. Visitou a família de Amelinha. O seu programa que era
intitulado “Manhã Alegre”, passou a chamar-se “Sonho de Enamorados”. Uma tolice.
Mas, os pais de Amelinha não desgostavam do que ia ocorrendo. Era um moço da
capital. Locutor famoso. Jovem de futuro. Ver-se-ia no que haveria de dar. Nada
de barreiras nem, tampouco, de ilusões.
“Seu” Germínio dos Correios, no seu
trançar de pernas de rua em rua, entregando cartas e encomendas, foi portador
de um pequeno pacote para Amelinha. Era um livro. Ah, a dedicatória! Amelinha
encheu os olhos de lágrimas. Não era somente uma dedicatória, porém, sim, uma
dedicatória em forma de poema.
Um acróstico, que ela nem sabia o que
significava, até que a professora Lourdes Fontes lhe explicou. A-M-E-L-I-N-H-A.
Cada letra, um verso, formando uma oitava. Lindo! Amelinha não mostrou o livro
a ninguém de casa. Nem a capa. Era só seu. Só seu. Ah, mas nem tudo seriam
flores, na vida da sonhadora Amelinha!
No meio do caminho dos seus sonhos,
tinha uma pedra. E essa pedra era a sua melhor amiga. Ou, ela pensava que
fosse. Dulce de Fabrício de Marta de Joao Domingues. Dulce, Dulce, Dulce...
Criadas juntas, vizinhas, pulando uma casa, de uma para a outra. Colegas de
escola, do Infantil ao Colegial.
Juntas, liam as revistas de amor,
como eram chamadas as revistas Sétimo Céu, Contigo, Capricho... A confidente de
Amelinha, que lhe ajudava a responder as cartas de Fernando Lisandro. Pois foi
a melhor amiga quem abriu a boca e espalhou no Colégio da Mãe Imaculada que o
locutorzinho estava botando Amelinha no caminho da perdição.
O título do livro era “Uma Moca
Perdida”. Voz de rasga-mortalha agourenta: “Com a cabecinha de vento de
Amelinha, logo, logo, a perdição vai bater na porta de “seu” Gilson e dona
Consuelo”.
Dulce contou à mãe, dona Marta de
João Domingues, sobre o título do livro de Amelinha. Dona Marta, prestimosa,
sabia Deus, correu e botou no bico de dona Consuelo. Desta para o marido,
bisneto de Barão. “Seu” Gilson podia ser festeiro, estava enfincado no seu DNA,
mas era um chefe de família de impor limites em sua casa, de dar rédeas curtas,
ou quase, aos meninos, e curtíssimas à filha. “Uma Moça Perdida, Consuelo! Isso
é lá título de livro que um rapaz dê de presente a uma menina que ainda vai
completar 16 anos? Rasgue esse livro maldito, que eu vou me botar pra a capital
e acertar contas com aquele descarado”.
Dona Consuelo chamou Amelinha às
falas, de cinta na mão. “Cadê esse livro de safadezas que aquele maldito da
Rádio lhe mandou? Passe para cá, já e já!”. Uma ordem dura. Nunca um filho de
Gilson e Consuelo discutiu uma ordem dada. Amelinha quis protestar: “Mas,
mãe...”. Nem completou a frase. Recebeu uma cintada nas pernas, que deixou o
vinco. Chorou. Entregou o livro.
Caiu na cama aos prantos. “Uma Moça
Perdida”. Na capa, a foto de uma moça ruiva, no emaranhado de uma floresta. Ah,
dona Consuelo estudou na capital! Colégio de freiras. Sabia das coisas. O emaranhado
da floresta queria dizer a perdição do mundo. Não, na sua casa ninguém se
perderia, muito menos Amelinha.
Ali estava a dedicatória. O
acróstico. No verso da primeira letra, estava escrito: “Amelinha, teus lábios
em flor serão a minha perdição”. Ai! “Miserável! Destruidor de inocências! Uma
surra bem dada é pouco. Gilson, você deve levar consigo Zé Antero, pau pra toda
obra. Quebrar os ossos do infeliz. Arrancar-lhe os bofes”.
Por três semanas, Fernando Lisandro
esteve afastado da Rádio. Ao regressar, trouxe de volta o antigo título do
programa. Nunca mais dedicou músicas a Amelinha. Nem escreveu cartas. Dona
Consuelo não destruiu o livro. Guardou-o a sete chaves. Anos depois, Amelinha
já casada e mãe, dona Consuelo atreveu-se a ler o livro “Uma Moça Perdida”. Era
de um escritor eslavo, que narrava o resgate doloroso de uma moça que se
perdera na floresta boreal russa.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
MENTIRAS E MENTIRINHAS
José Fernandes de Lima*
De tanto ouvir falar que
determinadas autoridades estão mentindo, fui buscar informações sobre o tema e
encontrei algumas curiosidades que arrisco dividir com os colegas leitores.
Há quem diga que a mentira é uma
afirmação falsa, dita por alguém que sabe que ela é falsa. Se adotarmos esta
definição, podemos concluir que a mentira requer uma intenção. Seremos levados
diferenciar a transmissão de informação falsa sem a devida consciência daquela
produzida e espalhada pelo próprio indivíduo.
A mentira por si só é complexa e
pode ser analisada sob vários aspectos. Pode ser vista como boa ou não, a
depender dos valores éticos adotados. Há pessoas que são tolerantes com a
mentira e outras que não a admitem.
A tolerância com a mentira depende
da cultura, depende do lugar e da época. Em geral, dentre as mentiras mais toleráveis
estão as desculpas para evitar um encontro, aquelas destinadas a justificar o
atraso, as afirmações positivas sobre o estado de saúde e as opiniões
insinceras para evitar constrangimentos. É até mais comum do que deveria ser as
pessoas chegarem atrasadas a um evento e colocarem a culpa no trânsito, ou
ligarem dizendo que já estão chegando, quando estão apenas saindo de casa.
Um fator que pesa muito para
aceitação ou não de uma mentira é o fato de o indivíduo conhecer ou não o
assunto, ter ou não ter a intenção de enganar, acreditar ou não no que diz.
Um exemplo no qual foram abordados
esses atenuantes foi o caso do ex-presidente Bill Clinton. Ele foi apanhado
praticando um ato sexual tido como inadequado para aquele recinto e, quando
indagado, negou. Quando foi processado por mentir, ele disse que não havia
mentido, que no seu entendimento aquilo não era sexo, era outra coisa e só por
isso ele havia negado. Escapou ileso.
Nos processos penais, a mentira do
réu, durante um interrogatório, é aceitável. Por outro lado, a testemunha não
pode mentir, em nenhuma hipótese.
As pessoas mentem por diversos
motivos. Mentem para fugir do castigo, mentem para acusar os outros, para tirar
vantagens, para zombar dos outros, para fazer piadas, para se vangloriar. A
mentira utilizada com o intuito de se vangloriar é a alma do INSTAGRAM. Essa
parece ser, também, a motivação daqueles que mentem sobre seus currículos.
Alguns especialistas afirmam que as
crianças começam a mentir aos dois anos de idade. Outros dizem que elas começam
a mentir ainda na barriga da mãe. Uns citam o choro falso que as crianças
emitem aos seis meses de idade como sendo um exemplo de mentira.
Quando procuram transmitir valores
para suas crianças, as famílias e as escolas ensinam que a mentira é ruim e
deve ser evitada. Muitos aprendem a lição e a levam para a maturidade. Outros
absorvem tais ensinamentos sem muito entusiasmo.
A capacidade de detectar a mentira
é um aspecto que merece ser estudado. As crianças pequenas não sabem detectar
as mentiras. Elas só aprendem quando vão crescendo.
Há indivíduos que, mesmo depois de
adulto, não desenvolveram a capacidade de detectar mentiras. Esses são alvos
fáceis dos mentirosos.
No âmbito policial, existem
especialistas em detecção de mentiras. Eles analisam os gestos do indivíduo e
descobrem se ele está mentindo ou não. A polícia usa também instrumentos
eletrônicos chamados detectores de mentira.
No livro As aventuras de Pinóquio,
o escritor Carlo Collodi apresenta um detector de mentiras altamente eficiente.
Trata-se do nariz do boneco Pinóquio que cresce, toda vez que ele conta uma
mentira. O boneco construído pelo carpinteiro Gepetto não consegue esconder
seus deslizes e mentiras porque o seu nariz o denuncia de forma explicita.
A tolerância com a mentira parece
ter crescido nos últimos tempos. Essa
tolerância pode ser notada pelas próprias palavras que são adotadas. No âmbito
do parlamento, por exemplo, ao invés de dizer mentira, os parlamentares
passaram a usar a palavra inverdade e ao invés de dizer Vossa Excelência
mentiu, dizem Vossa Excelência faltou com a verdade. A linguagem utilizada
demonstra um abrandamento da crítica e um aumento da tolerância. Quando
batizamos a mentira com o nome bonito de fake News, podemos estar também
amenizando o tamanho do delito.
A mentira sempre existiu. Uma
novidade do momento é a facilidade com que ela está conseguindo se espalhar.
Caiu por terra aquele ditado que dizia que a mentira tem pernas curtas. Hoje,
na disputa com a verdade, a mentira está levando vantagem. Está se espalhando
com mais facilidade do que a sua oponente.
No estágio atual de desenvolvimento
das redes sociais, uma mentira que receba uma grande quantidade de likes
passa, imediatamente, a ser vista como uma verdade.
Esse último tópico requer um
aprofundamento que não cabe nesse curto espaço de papel.
* Físico, Educador, Presidente da Associação Sergipana de Ciência (ASCi) e membro da Academia Sergipana de Educação.
sábado, 3 de abril de 2021
A PRAGA DE CONSTÂNCIA
José Lima Santana*
As pragas de Constância nunca eram em
vão. Boca santa, para não dizer o contrário. “Ave Maria! Tidiscunjuro, diaba de
sete rabos!”, vociferou Tertuliano de Cristóvão do Carvãozinho, persignando-se
e cuspindo longe, ao saber da última praga. Aquele domingo prometia.
No decorrer do dia, o rebuliço em
Capela do Arari não poderia ser maior. De cima a baixo, rua por rua, beco por
beco, não se falaria noutro assunto. Mal Totoinho de Ranulfo Boca Preta abriu o
bar, o primeiro freguês, Américo de Sá Domitila de João Fedegoso, chegou com a
novidade.
O dono do bar deu de ombros. “Isso
não me diz respeito, ‘seu’ Américo. E, pelo que eu sei, nem ao senhor. Olhe lá
que o senhor tem quatro filhas, todas saracotiando pra lá e pra cá. Tome tento
do que é seu, antes que o alheio venha tomar”. O freguês novidadeiro engoliu,
calado, a dose de conhaque barato. Puxou uma cadeira e sentou-se.
Aos poucos, foram chegando os
habituais fregueses para o café com pão e manteiga. Um ou outro, pão com queijo
de coalho do próprio fabrico de Totoinho, ou melhor, de sua esposa, dona
Gracinda, que, de boca grande, ganhava bem à frente de Américo. “Peste
fofoqueira. O que tem o marido de boca de siri, tem a mulher de boca de
caçapa”, reclamava Anália, vizinha da frente, ao que dona Gracinda costumava
responder: “Aquela dali vive xeretando o padre Afonso. Pensa que mijo de
vigário é santos óleos”. Bocas infelizes. Cada uma, pior que a outra.
A marinete de Monte Belo com destino
à capital parou em frente ao bar. Fregueses certos. Alvoroço. Zé Fernandes e
Brió, de 17 e 15 anos, filhos de Totoinho, já ajudavam o pai no atendimento aos
fregueses, que tinham os cabelos duros de poeira e os olhos remelentos. Quando
aquelas estradas sofridas ganhariam asfalto? Dois governadores tinham
prometido. Cumprimento de promessas de certos políticos era igual a perna de
cobra. Ninguém via.
O bar, único aberto àquela hora, no
domingo, foi-se enchendo de gente tagarela. Américo, o falador, gritou para o
menino Brió, que passou a mão nos olhos, para tirar uma nibrina: “Ô Brió, vá
lavar essa mão suja de remela!”. O menino, que tinha a matraca solta como a
mãe, respondeu, também gritando: “Vá cuidar de suas pontas, seu corno fio da
peste!”. Algazarra geral. Até Américo sorriu. Amarelo, mas sorriu. Melhor não
levar a conversa adiante.
Cada macaco sabia em qual pau se
trepava. Enfim, falavam coisas da mulher de Américo. Nada provado, entretanto.
“Basta olhar pra cara das filhas dele, pra ver que são filhas só no registro”.
Era a voz do povo. Do povo, vírgula. De quem não tinha o que fazer. Nem dizer.
A filha de Maria Zarolha, uma mocinha
mirrada, chegou com um tabuleiro de pasteis bem morninhos. De carne-de-sol, de
queijo, de frango e de camarão. Não eram pasteis de vento. Deliciosos. Quando
chegavam, não davam para quem queria. Aqueles voaram num átimo.
A massa dos pasteis da Zarolha era
suculenta, macia, quase sem gordura. E os recheios? Um encanto! Ela fornecia
quatro vezes ao dia. Não sobrava nada. Com café ou com refresco, os pasteis
desciam goela abaixo, que era uma beleza. Ah, um refresco de graviola, de
jenipapo ou de caju, no tempo certo, adocicado com raspa de rapadura como só
Berto do finado Josias Leite sabia fazer! E o tabuleiro de pasteis das dez
horas ou a do meio da tarde, com caldo de cana caiana com limão? Puxa! Dava
água na boca...! Era de lamber os beiços.
A marinete partiu. O bar quase
esvaziou. Totoinho contou o dinheiro apurado. Catou as notas graúdas e as meteu
no bolso da calça. Os dois rapazes lavavam e enxugavam pratos, xícaras e
talheres. Mais tarde, um iria olhar o gado na solta e o outro, ajudar o padre a
dizer Missa, para desgosto da mãe, que não tinha religião, embora fosse
batizada, crismada e casada na Igreja. Mas, torcia as ventas para chamegos de
rezas.
Ah, a praga de Constância, a última!
Diziam que praga dela secava até pimenteira. Aliás, bastava o olho. Olho gordo.
Olho infeliz. Se ela botasse o olho, por exemplo, em um animal capado, um
porco, um frango, fosse o que fosse, era hemorragia na certa. O bicho se esvaia
em sangue até morrer. E quando a boca se abria para um maldizer, podia-se
esperar a desgraça. Era tiro e queda.
O filho único de Constância, um bocó,
mal-ajambrado, que só pensava em juntar dinheiro, no negócio herdado do pai,
comprando e vendendo algodão, estava de noivado marcado com Ana Rosa, filha da
professora Germana, vice-prefeita da cidade, amada por todos, defensora dos
direitos das mulheres e do meio ambiente.
Estava. Noivado para maio e casamento
para o início do outro ano. Estava. Pois então, pifou. No dia anterior, sábado
de tardinha, Ana Rosa, olho no olho, comunicou a João Pedro, o bocó do algodão,
que estava terminando o namoro. Estaria de partida para o Rio de Janeiro, onde
morava a irmã.
A desistente tinha sido Rainha do
Milho e da Primavera por dois anos seguidos, no Ginásio. Por beleza e simpatia,
tantas vezes fosse, ela ganharia. Uma boneca, como a ela se referiam as amigas
da mãe, desde pequena. Um pedaço de mau caminho, na boca suja de Alípio,
gerente do Cine Odeon e eterno arrastador de asas para o lado dela, como tantos
outros rapazes.
Ao saber do término do noivado, a
megera praguejadora quase explodiu de contrariedade e raiva. “Então, aquela
sonsa, metida a gostosa, está pensando o quê? Que é melhor do que o meu filho,
um partido por quem toda moça desta cidade sonha em ser levada ao altar? Aquela
esnobe desgraçada, que quer se soltar na cidade grande, para andar de braço em
braço, de entreperna em entreperna, de cama em cama? Pois ela vai é se
estrepar. Nunca há de ser mãe. Vai secar o útero. Vai voltar para esta terra
lascada como uma mulher-dama. Quem viver, verá!”.
Todo mundo, na cidade, dava como
certo o noivado e, claro, o casamento do bocó do algodão com a boneca Ana Rosa,
que, a bem da verdade, era moça de fina estampa e primorosa educação. Não se
sabia o que ela tinha visto no bocó, para lhe ter dado trela. Bem que ela
merecia um moço melhor.
De qualquer forma, o desenlace era a
sensação da cidade, desde a noite anterior. Mas, foi no domingo que a notícia
ganhou corpo, correu ruas e becos. Moças e rapazes, homens e mulheres deram
vivas a Ana Rosa. “Bem fez ela. Andar de mistura com a raça de Constância, era
beber lama no lugar de água”.
Dois anos se passaram desde aquele
domingo. O bocó do algodão desposou a filha de um fazendeiro do Grotão das Antas.
Coitada! Não segurava menino. Teve dois abortos, um atrás do outro. Quanto à
praga de Constância sobre Ana Rosa, deu certo, em parte. Sim, ela andava de
braço em braço, no Rio de Janeiro. Em cena. Virou atriz da TV Tupi.
*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR
PÓ DE SOVACO DE MORCEGO
José Lima Santana* Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...
-
Claudefranklin Monteiro dos Santos* Quando o assunto é poesia em Lagarto-SE, certamente a principal referência é o jornalis...
-
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento* Na investigação histórica que resultou no livro A Escola Americana: origens da...
-
José Lima Santana* A praça triangular era circundada por vinte e um eucaliptos. Praça João Ventura. No centro da praça, seis...