sexta-feira, 28 de maio de 2021

UM CORNO PAI D’ÉGUA?


  

 

José Lima Santana*

 

 

Francisco d’Almeida dos Santos Rocha. Esse o nome do capitão. Capitão Chico Rocha, era como o chamavam na intimidade. Capitão, sim senhor. Patente conquistada por tempo de serventia na Marinha Mercante. Comandante de navios pelos mares do mundo. Esteve em países de todos os Continentes. Fluente em línguas.

Transportou milhares de toneladas de mercadorias para lá e para cá. Sobreviveu a procelas e até a um maremoto nas costas da Malásia. Granjeou o respeito dos marujos, seus subalternos. Arrastou a si a admiração de colegas e superiores. Dos navios que comandou, o Dragão do Mar foi o que mais lhe deu gosto. Foram doze anos no seu comando até a aposentadoria em 1959.

No tempo da Grande Guerra não se acovardou em arriscar-se nas travessias do Atlântico. Escapou de submarinos alemães. Mudou rotas. Alcançou portos de forma ilesa. Socorreu navios bombardeados. Viu o sofrimento de marinheiros transidos de frio, alguns em extrema hipotermia. Mortes, ele viu muitas.

Naquele tempo, o navio que ele comandava era o Cisne Voador. Em 1947 transferiu-se para o Dragão do Mar, assim por ele batizado. Uma deferência da Companhia a tão prestimoso capitão.

Em 1961, viúvo, os dois filhos casados morando no Rio de Janeiro, ele voltou para a terra natal, onde tinha duas irmãs. Adquiriu o antigo palacete dos Andrade, uma sólida construção do fim do século XIX, localizado numa chácara. Quando menino, ele admirava o palacete de longas janelas com sacadas.

E não se cansava de contemplar, quando a via, a face luminosa da filha mais nova de “seu” Aderaldo da Silva Montes e Andrade, antigo coronel da Guarda Nacional, talvez o sujeito mais rico da cidade, que nasceu, envelheceu e morreu no palacete. Os netos, insensíveis, se desfizeram do palacete, em 1956.

Falido, o novo proprietário viu o palacete ir a leilão judicial. O capitão Chico Rocha o arrematou por um lance abaixo do valor nominal. Uma aquisição e tanto!

A família do capitão não era desapatacada. O pai, “seu” Francino das Porteiras, fora bem estabelecido no comércio de secos e molhados. Portanto, abastado das patacas. O avô paterno, major Isidoro Afonso dos Santos Rocha esteve em Canudos, combatendo o Conselheiro.

Era homem de tutano nos ossos e pelos nos buracos das ventas. Capaz de beber veneno de cascavel e estalar a língua, para sentir o gosto. A mãe do capitão, dona Cassandra, era da família Dourado d’Almeida, proveniente do recôncavo baiano, mas com ramificações em Minas Gerais e Espírito Santo.

Menino, o capitão gostava de brincar com barcos de papel atirados na água da chuva, que escorria nas valetas. Fazia muitos e os seguia correnteza abaixo até os verem sumir nos bueiros. Era a intuição, a vocação. Acabou comandante de navios e ali estava ele, na terra natal, morando sozinho no palacete que tanto admirava.

Uma senhora de meia idade, dona Rosilda do finado Cândido Farias, cuidava da limpeza do palacete três dias por semana, terças, quintas e sábados. O café da manhã e da noite, ele mesmo o providenciava. O almoço era feito na Pensão Comercial de dona Celina. O mal assado de filé era o prato favorito do capitão, preparado na manteiga de garrafa com cebola roxa e servido com feijão de corda, arroz e farofa de banana. O capitão não dispensava o molho de malagueta. Sobremesa predileta era a cocada baba de moça, de coco verde. Um manjar dos deuses.

As irmãs e sobrinhas o visitavam. À tarde, geralmente, descansava e, por vezes, recebia visitas... À noite, proseava com amigos de infância: Dudé de Valter Pinto, Osmírio sacristão, Felipinho de Américo Fonseca, fazendeiro que introduziu o gado nelore nas redondezas, e, vez ou outra, Paulo Bomfim, o tabelião. Outros acorriam ao bate-papo, especialmente nas noites de segundas-feiras, dia da feira semanal da cidade.

Com o passar do tempo, uma moça de seus vinte e poucos anos passou a frequentar o palacete. Era novata na cidade. Professora do Grupo Escolar. Numa manhã de quarta-feira, feriado, Osmírio sacristão flagrou a professora beijando o capitão, no jardim. Ao sacristão bisbilhoteiro, de vista enfraquecida pela catarata, pareceu um beijo ternuroso. De logo, pensou que o capitão, enfim, estava se atirando para alguém, após seis anos de viuvez.

A notícia se espalhou entre os mais chegados, porém, ninguém tinha coragem de abordar o assunto com o capitão. Esperariam, os amigos, o convite para o especulado casamento. Da moça, os amigos só sabiam que era professora. Nada mais. Outras vezes, a moça seria vista despedindo-se do capitão, no palacete, sempre com um beijo.

Dudé, apelidado Boca de Sapo, tal eram os desvarios por ele criados ou alardeados, ciente, como os demais amigos do capitão, que este estava mesmo de xodó com a moça, deparou-se com ela de braços dados com um rapaz de boa postura, à saída do Grupo Escolar, no fim de uma tarde qualquer.

Alarmou-se. O capitão estava sendo chifrado. A professora deveria estar comendo os cobres do capitão e enganchando-se com outro. Não convinha a um homem tão ilustre, capitão, comandante de navios de grande calado, que driblou até os nazistas nas travessias atlânticas, levar galhas na testa. “O nosso amigo capitão está levando gaia”, disse a dois ou três. Armou-se um Conselho. O “Conselho dos Anciãos”. Quem se atreveria dizer ao capitão que ele era corno? Alguém teria que o fazer.

Depois de muito falatório, coube ao fazendeiro Felipinho dar a nova ao capitão. Cheio de dedos, no colóquio da segunda-feira, o palacete recebendo mais de dez amigos do capitão, todos ávidos para saber a reação dele em face da cornura descoberta, Felipinho, porém, não usou de meias palavras. “Amigo capitão Chico Rocha, sendo você um homem discreto, por isso mesmo, todos nós sempre nos mantivemos também discretos com relação ao assunto do seu relacionamento com a professora do Grupo Escolar. Ocorre que, há poucos dias, ela foi flagrada de braços dados com um rapaz, na saída da escola. Pois então, ela está fazendo o amigo de trouxa”. Sereno, o capitão respondeu: “Era um rapaz de boa estatura e bem apessoado?”. Todos, ansiosos, mexeram-se nas cadeiras. “Era, sim”, respondeu Dudé. “Meus amigos, esse rapaz é o Ferreira, sargento da Polícia que destaca em Morro Azul. Ele vem ver a esposa nos fins de semana, às vezes na sexta, outras vezes no sábado. Ela se chama Constância. Formada na Escola Normal, pretende cursar a faculdade. O seu pai foi meu camarada na Marinha Mercante, um bom imediato. Sou seu padrinho de batismo. Estou a lhe dar aulas de inglês, para o seu sucesso no vestibular”.

Depois da explicação do capitão, todos engoliram um seco. Entreolharam-se sem saber o que dizer. Que fiasco! Mas, o capitão, fidalguia em pessoa, levantou-se e foi servir o habitual licor de jenipapo. Riu de si para si mesmo e pensou: “Corno, eu? Que nada! Só se for um corno pai d’égua”. Os amigos não sabiam quem, de verdade e na surdina, alegrava muitas das tardes do capitão. Se soubessem... Ah, se soubessem!

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

SOBRE A SINA DO BEIJA-FLOR


  

 

José Fernandes de Lima*

 

 

Nos últimos dias, eu tenho observado um beija-flor que visita, diariamente, a varanda do meu apartamento. Ele passa de manhã, bebe um pouco de néctar e vai embora. Quando eu menos espero, ele aparece novamente, bebe um pouco mais e continua seu caminho. Além de me deixar feliz, as visitas também me deixaram curioso para saber um pouco mais sobre o personagem.

Há um monte de teorias sobre o significado da visita de um beija-flor. Alguns afirmam que tal visita traz sorte e mensagens de amor. Um bom exemplo desse entendimento é a música de Vital Farias, que inicia dizendo: Não se admire se um dia/ um beija-flor invadir/ a porta da sua casa/ lhe der um beijo e partir/ fui eu que mandei um beijo/ ........

Da curiosidade musical, embarquei nos problemas existenciais e perguntei: o que será que ele faz quando sai daqui? A resposta para essa pergunta só foi possível depois de passar por algumas informações interessantes que envolvem o conhecimento científico.

Encontrei que o beija-flor é uma ave originária das Américas. É da família dos Trochilidea. Existem muitas espécies de beija-flores. Somente no Brasil existem mais de 80 espécies. Uma das mais conhecidas é o beija-flor tesoura que tem a cabeça e o peito azulados.

A cor dos beija-flores desempenha um papel muito importante na comunicação entre eles.  Determinadas cores indicam um diferencial competitivo para efeito de acasalamento. Algumas cores são devidas aos pigmentos e outras são devidas à iridescência. A iridescência é o fenômeno ótico que faz com que certas superfícies reflitam determinadas cores.

É semelhante ao que acontece nas bolhas de sabão e nas manchas de óleo. A iridescência é popularmente conhecida como furta-cor. No caso do beija-flor, as cores que mais se destacam são o verde e o azul. A depender do ângulo que você olhe, ele parece mais verde ou mais azul.

A resposta para o que faz o beija-flor depois que sai da minha casa está relacionada com as suas características físicas e fisiológicas. Em geral, o beija-flor pesa de 2 a 6 gramas e mede de 6 a 12 centímetros. Ele é uma ave singular no sentido que é a única que consegue ficar parada no ar. Consegue voar para cima, para baixo e até de marcha ré.

Na década de 1970, havia um jogador de futebol, bom cabeceador, que dizia que somente três coisas conseguiam parar no ar: o beija-flor, ele e o helicóptero. O beija-flor só consegue ficar parado no ar porque tem uma estrutura física especial. Tem asas grandes, tem um coração grande e tem um mecanismo acelerado.

A frequência do bater das asas do beija-flor chega a 80 batimentos por segundo. Isso significa dizer que muitas câmaras de filmagem (dessas que captam 30 quadros por segundo) não conseguem acompanhar tal movimento. Além de ser bonito, saber voar pra frente e pra traz, o beija-flor foi contemplado com um coração bem grande e bem forte. O coração do beija-flor é proporcionalmente 10 vezes maior do que o nosso.

Em outras palavras, ele tem um motor proporcionalmente mais potente do que o nosso. O coração do beija-flor pode realizar mais de 1000 batimentos por minuto. Esses batimentos por minuto podem ser reduzidos para 600 quando ele está pousado num galho. Em resumo, o beija-flor é uma máquina potentíssima. Mas é aí que vem a maldição. Para manter essa máquina toda, ele necessita de muita energia.

Necessita comer muito. Ele chega a comer até 8 vezes o seu peso por dia. E, para comer, ele tem que voar de flor em flor. É por isso que ele passa o dia inteiro voando de flor em flor. Porque é nas flores que ele encontra o néctar, rico em açucares, e encontra também alguns mosquitos e pequenas aranhas para completar o cardápio.

O leitor deve estar se perguntando o que é que ele faz durante a noite. De noite, ele baixa enormemente a frequência cardíaca para algo em torno de 50 batidas por minuto. Isso faz com que ele entre num estado de torpor, uma espécie de hibernação que o mantém vivo sem precisar comer. 

Agora que eu descobri o que ele faz depois que passa na minha casa, fiquei na dúvida se essa história de voar o dia inteiro procurando comida é uma dádiva ou é uma sina.

 

 

*Professor Emérito da UFS, Presidente da Associação Sergipana de Ciência, membro da Academia Sergipana de Educação.

domingo, 23 de maio de 2021

PERIGOSO É O VÍRUS E NÃO A VACINA


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A vacinação em larga escala constitui a esperança da humanidade para impedir a circulação de um agente com o grau de transmissibilidade e virulência como SARS-Cov-2, causador da aterrorizante Pandemia da Covid-19.

A capacidade protetora das vacinas tem resistido ao tempo. Segundo a OMS, anualmente, mais de três milhões de indivíduos são salvos, no planeta, graças às imunizações contra a influenza, a difteria, o tétano, a caxumba e o sarampo. Após um esforço hercúleo de vários laboratórios, alguns em parcerias entre si ou com conceituadas Universidades, aliados a uma aplicação de recursos financeiros sem precedentes na história da Medicina, passamos a dispor, em tempo recorde, de vacinas eficazes, contra o novo coronavírus.

No Brasil, até o momento, apenas três vacinas já estão sendo utilizadas, a CoronaVac (Sinovac/Butantan), a Covishield (Serum Institute of Índia/AstraZeneca/Oxford/Fiocruz) e a da Pfizer/BioNTech. As três já comprovaram eficácia, em estudos clínicos randomizados, duplo-cegos, multicêntricos e placebo controlados, como se deve proceder, na demonstração científica de um conceito.

Além disso, estudos pragmáticos de efetividade, aqueles que avaliam o desempenho de uma determinada medicação no mundo real, fora do controle do laboratório, também avalizam a utilização destas vacinas. Recentemente, foram divulgados os resultados de um estudo que testou a efetividade da Coronavac em 67 mil profissionais de saúde da cidade de Manaus, onde predomina a circulação da variante P1 do SARS-Cov-2, conhecida como cepa brasileira; a taxa foi de 50% na prevenção de doença sintomática, semelhante à encontrada no estudo de eficácia, demonstrando, portanto, a sua utilidade clínica.

O Programa Nacional de Imunizações brasileiro é, reconhecidamente, um dos mais eficientes do mundo, graças à capilaridade proporcionada pelo SUS. Todavia, no contexto da atual pandemia, ele ainda não deslanchou, provavelmente, por não se dispor de doses suficientes de vacinas para atender a nossa grande demanda.

Não bastasse este infortúnio, um número significativo de brasileiros ainda hesita em receber os imunizantes, quer seja por influência de negacionistas, quer seja por receio de eventuais efeitos colaterais. Vale ressaltar que algumas pessoas podem apresentar efeitos colaterais leves e transitórios, como dor no local da injeção, mialgia, cefaleia e até febre, não significando, necessariamente, que o vacinado contraiu a doença e nem que vai transmiti-la.

Tem sido registrado, também, que um número significativo de cidadãos, tem deixado de receber a segunda dose da vacina, tanto por falta do produto, como por vontade própria, não ficando, portanto, adequadamente imunizados.

Finalizo, enfatizando que as vacinas disponíveis já passaram pelos crivos de eficácia e de segurança, portanto devem ser utilizadas. Parafraseando o filósofo grego Epicteto, “só a educação e a Ciência libertam”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

MOCINHA E AS PARTES FRACAS DE CIÇO PICADINHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pegou em cheio. Foi quase mortal. A pancada fez Ciço Picadinho ser jogado ao chão, contorcendo-se de dor, sufocado, querendo falar sem poder. Bufou. Lágrimas saltaram de seus olhos com a ligeireza do espanto. Suas partes fracas pareciam esmigalhadas. Continuaria a ser homem ou sua macheza iria parar no beleléu?

Dor lancinante. Haveria remédio para o seu caso? Da farmácia de “seu” João Paes? De uma garrafada de Davi da Malhada dos Coqueiros? A dor era insuportável. Não conseguiu contê-la. Urrou. Ninguém para acudi-lo. Ali, somente ele e Mocinha. O que se passava com ela? Ciço nada fizera para tamanha revolta. Ela quase o matou. Se a pancada tivesse atingido a cabeça, teria sido fatal.

A relação dele com Mocinha, de uns tempos para cá, não andava bem. No começo, tudo foram flores. Desde o dia em que decidiu tê-la como sua, ele se desvelou por ela. Deram-se bem, como se tivessem sido feitos um para o outro, ou seja, ela para ele. Podia-se mesmo dizer que fora “amor à primeira vista”, tão logo ele a conheceu, debaixo da mangueira rosa do quintal de “seu” Américo Mendonça, no povoado Xique-Xique.

Ciço bateu o olho em Mocinha e derreteu-se todo. Não se sabia dizer se ela também bateu o olho nele, naquele momento, uma manhã de sol brando no fim da primavera. A mangueira estava florida e uns brotos de manguinhas já se deixavam ver. Ah, dona Rosita fazia-se nos cobres, vendendo as deliciosas mangas!

Era a segunda esposa de “seu” Américo. A primeira morreu de parto, no terceiro filho. A culpa teria sido de um chá de espirradeira, que, algumas parteiras menos tarimbadas o ministravam para ajudar no momento do parto. Porém, o chá servia também como abortivo. Daí algumas mulheres acabavam perdendo a vida. Dona Rosita era prima da mãe de Ciço. Deu-lhe um prestimoso adjutório na conquista de Mocinha.

Ciço tinha vinte e poucos anos. Antes de Mocinha, já tivera outras duas. Passageiras. Mas aquela seria definitiva. Ele assim pensava. Não mediu esforços para tê-la. Ah, despertaria o desejo e a inveja de muitos!

Naquela tarde, ali estava Ciço Picadinho contorcendo-se de dor. Um sujeito de sangue no olho seria capaz de dar fim a Mocinha. Mas, não Ciço. Ele era arriado por ela. E apesar da inesperada pancada que recebera, ele ainda seria capaz de continuar com ela. Quantos marmanjos desejavam Mocinha! Então, como ele poderia deixa-la à mercê de aproveitadores que a queriam com um simples estalar de dedos?

Ciço tentou levantar-se. A dor nas partes baixas parecia ganhar o corpo todo. Estava definitivamente moído. O pensamento fervilhou. “Por que, Mocinha? Por que?”. Depois do golpe, ela se afastou como se não tivesse feito nada. Não parecia ouvir os urros de dor daquele que torrou os cabelos da cabeça para tê-la. Porém, ela não estava nem aí. Na verdade, era fria. Não demonstrou sentimentos. Nem poderia. Rústicos instintos.

A convivência harmoniosa entre Ciço e Mocinha começou a mudar um ano depois da união entre eles. De início, até que a situação foi satisfatória. De tudo, é verdade, ele fez para agradá-la. Gostava de vê-la bem asseada, bem arrumada, para chamar a atenção dos outros. E Mocinha fazia uma bela figura. Era, sim, uma bela figura.

Boa altura, pernas bem feitas, corpo de não encontrar rival da Ribanceira de Zuza ao Brejo das Cobras, do Matão do Alto à Serra dos Papagaios. Não faltavam marmanjos se roendo de desejos por ela. Porém, Mocinha era de Ciço. Só dele. Que ninguém se atrevesse a meter-se entre eles.

Traição. Foi o que ocorreu naquela tarde. Mocinha traiu a confiança que Ciço lhe depositava. Ainda no chão, arrastando-se no gramado, tentando alcançar a calçada de cimento da casa, ele quis se dar conta, como se fosse uma espécie de fuga, de que ela nunca merecera a sua confiança.

De uns tempos para cá, ela foi se mostrando arisca, dando uns sinais de que alguma coisa não andava bem. Nem sempre ela o ouvia, nem sempre queria lhe atender. Ficava de venetas.

Enfim, Ciço Picadinho alcançou a calçada. A dor ainda era muito forte. A pancada desferida por Mocinha tinha sido pior do que um golpe cruzado no queixo ou no fígado, desferido por um boxeador peso-pesado no seu oponente de guarda aberta. Ciço conseguiu, a duras penas, sentar-se. Segurou as partes baixas com as duas mãos, como se quisesse aliviar a dor. Não aliviava. Encostou-se num banco de madeira. Mocinha tinha sumido de sua vista.

A vida tinha surpresas nem sempre agradáveis. Porém, aquela estava fora de cogitação. Mesmo sentindo mudanças no comportamento de Mocinha, ele jamais esperou aquela terrível reação. “Mocinha! Mocinha”!

Se sua mãe, dona Margarida, estivesse ali, por certo faria a fervura de folhas de malva branca, um santo remédio para inchaços e inflamações. Melhor que remédio de farmácia ou garrafadas de pai-de-santo. Todavia, a mãe estava na cidade, acudindo a filha mais nova, em dias de ganhar neném.

Ciço sentiu uma tontura. A vista ficou anuviada. Pendeu a cabeça. Sentiu que poderia desmaiar, o que não seria bom. Sozinho, naquele estado, poderia até morrer. E Mocinha ficaria aí, fanfando. Outro acabaria lhe passando a perna, escovando o seu pelo, aparando a sua crina.

Mocinha era a burra castanha de Ciço Picadinho, comprada por seis contos de réis. Um dinheirão. O coice que ela lhe desferiu atingiu em cheio os seus documentos de macho. Ciço gostava de uma burra aprumada. As duas anteriores foram muito boas, mas Mocinha desarredava. Não tinha igual.

Chocalhos de vacas tilintaram por perto. Um cachorro latiu. Severino, irmão de Ciço, foi-se chegando, para prender os bezerros das vacas leiteiras. Acudiu o irmão.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

OS CALOTEIROS


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Dagoberto Martins de Souza Medeiros e Albuquerque. Coronel. Rei da empáfia. Sujeito de venta empinada. Mal e mal pisava no chão. Dizia-se na cidade que o tal era provindo da Paraíba. Ao certo, porém, não se sabia. Estava na cidade há uns bons lustros. Nos últimos anos, após perder, na jogatina, a propriedade rural onde outrora funcionara o Engenho Samambaia, herança da esposa, passava os dias de casa para o bar de João Gomes, lorotando, jogando gamão e arrotando lodaças. “Hum, num vale um peido frouxo, esse aí. Num tem pataca nem caráter”, vociferava Pedrinho de Amintas do Pau D’Arco, a goela mais solta que o mundo conhecia. Coronel de quê mesmo? “De nada. Nunca que teve patente nem galão. É coronel da boca dele para a boca do povo miúdo, acostumado a dizer ‘sim sinhô’ a qualquer um que empina a venta”. Ah, Pedrinho falador! Porém, o povo falava que o coronel tinha uma fortuna em dobrões de ouro.

O coronel Dagoberto precisava casar a única filha, encalhada, morrendo de dores e sem amores. Uma donzela em casa, caminhando para o caritó era uma lástima para qualquer família. Os moleques faziam algazarra à porta da donzela, serrando um pedaço de pau: “Serra, serra, serra serrador / serrando a madeira de Nosso Senhor”. Era a madeira do caixão da vitalina.

Como casar Anália Maria, caída nos anos, passando dos trinta e cinco, se atrativo material não tinha a família? Não que ela não fosse uma mulher de boas feições. Boa cara e bom corpo ela tinha, não havia como negar. Mas, o pai só tinha mesmo a venta empinada e o casarão onde a família morava, caindo aos pedaços, por bem dizer. Um dinheirão, para fazer uma boa reforma.

Passada dos anos, Anália Maria já devia ser maninha. Não haveria de gerar filhos. Um homem precisava fazer filhos com uma mulher boa parideira. Era o costume do lugar. Podia até ser um costume cruel para com certas mulheres, mas era o costume. E era o sertão.

Se já não tinha pataca, a não ser na figuração popular, de onde vinha a falta de caráter, denunciado por Pedrinho de Amintas? Dos calotes. O coronel era dado a empreender pequenos calotes, pois os grandes ele não conseguia mais. Ninguém confiava nele. Um ou outro incauto ainda caía em suas lodaças, por ninharias.

A salvação da família era Dona Clotilde, filha de uma abastada e nobre família da Várzea, com homens ilustres na vida política, social, econômica e literária do Estado. De uns irmãos, desde a derrocada do coronel, ela recebia uma espécie de mesada mensal, com a qual sustentava o passadio da casa.

Além disso, ela se dedicava a bordar peças em cambraia de linho, que as vendia para parentes, na capital. Não as vendiam ali na cidade, para não dar o braço a torcer à gentalha. De qualquer forma, a empáfia circundava a família. Não era para menos. A burguesia decadente era uma desgraça.

As trovoadas do fim do ano já davam sinal de formação. A terra ressecada fazia exalar um calorão insuportável. O mormaço tomava conta dos dias e das noites. Ao longe, muito longe, relâmpagos riscavam os céus, como serpentes de fogo. Uma semana depois, por volta das onze horas, o céu se fechou. Parecia noite, pouco antes do meio-dia. Trovões e relâmpagos fizeram a professora Glória meter-se na cama. Que medo, ela tinha das trovoadas! Foram duas horas de chuva grossa sem parar um só minuto.

Nas ruas, as águas desciam de valeta a valeta, como se fossem riachos. Um raio caiu nas proximidades do açude municipal, matando duas cabeças de gado de Nelito de Leonardo Borobo. A chuvarada deu uma trégua de mais ou menos meia hora. Depois disso, as torneiras de São Pedro se abriram como no dilúvio de Noé. O mundo parecia estar fadado a ser destruído pelas águas. Choveu até a boquinha da noite. Casas inundadas, casas destelhadas, paredes de taipa no chão. Um desmantelo. Gente humilde ao relento.

Naquela tarde de dilúvio, um homem procurou abrigo no casarão do coronel Dagoberto. Anália Maria, a filha vitalina, acudiu o viajante. Dona Clotilde rezava no quarto, enquanto o coronel espremia-se na cadeira de balanço, na sala de jantar. Acolhendo-o, de pronto a filha deu de saber ao pai da presença do homem.

O coronel arrastou-se até a varanda para receber o sujeito. Era, segundo ele o disse, um comprador de boiadas, um boiadeiro de Conceição do Pilar. Vivia de comprar partidos de bois prontos para a matança, que os revendia para frigoríficos. Tivera notícia, na feira de gado de Chapadão do Gentio, que dali era morador um seu parente distante, exatamente o coronel Dagoberto, primo em terceiro grau do seu pai, Feliciano Correia de Melo Medeiros e Albuquerque, de Cruz dos Afonsos. O coronel animou-se na presença de um parente. Convidou-o a pernoitar. No vasto quintal, o cavalo do parente foi apeado.

Depois do jantar, o coronel e o parente distante, ficaram na conversa até as dez horas. O coronel tentava se lembrar do primo Feliciano. A cabeça já não funcionava bem, a memória dos tempos idos começava a dar sinais de lapsos. Feliciano... “Como era o nome do seu avô?”. Cismou mais um pouco. Sim, lembrava vagamente de um primo chamado Anacleto, um Medeiros e Albuquerque que se fizera nas armas contra Antônio Silvino, o grande bandoleiro, anterior a Lampião. Vagas lembranças.

Pela manhã, após o desjejum, Geraldo, esse o nome do visitante, despediu-se, agradecido. Iria comprar uma boiada no município vizinho, Serrinha, se as estradas dessem condições de tráfego. Na despedida, um olhar indecoroso para a suposta prima Anália Maria. Ela corou. Baixou os olhos. Um calafrio sacudiu o seu corpo, como se o rejuvenescesse.

Duas semanas depois, eis uma carta de Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque para o coronel, pedindo licença para namorar Anália Maria. “Oh, Deus bendito!”, entusiasmou-se Dona Clotilde, não menos entusiasmada que a filha. Enfim, a possibilidade de deixar o caritó. Enfim, um partido de não jogar fora.

Além de aparentado, um boiadeiro, que se fazia na vida comprando e vendendo grandes partidos de gado. Devia estar bem de vida. Não devia viver a contar tostões. Anália Maria já tinha, há muito, um enxoval pronto. Era só passar na água, na goma de tapioca e no ferro de engomar.

Casamento marcado. O noivo queria uma cerimônia simples. Os pais, doentes, não poderiam comparecer. Era filho único, disse. Pouca gente na igreja. Antes da cerimônia matrimonial, como era de costume, Berto Sacristão cobrou ao noivo o valor da espórtula do casamento. Um vexame. Geraldo Correia de Melo Medeiros e Albuquerque não tinha um tostão furado para fazer o pagamento.

Era um aventureiro, que, na feira de Chapadão do Gentio, ouviu falar no coronel do casarão, que tinha uma filha encalhada. Dizia-se que o velho era sovina, mas tinha um cabedal considerável em dobrões de ouro. Fantasias do povo. E ali, aos pés do altar, estava mais um caloteiro a ser sustentado por Dona Clotilde.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

sábado, 8 de maio de 2021

O MÉDICO E O DRAMA DE “SOFIA”


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A segunda onda da Covid-19 atingiu proporções de Tsunami, praticamente, em todos os cantos do País. Graças à sua maior velocidade de transmissão e, talvez, a maior agressividade, a variante brasileira do SARS-Cov-2, que, provavelmente, já é a cepa dominante no Brasil, tem provocado evoluções mais rápidas para a falência respiratória e, consequentemente, a necessidade de intubação endotraqueal daqueles que, infortunadamente, requerem internações hospitalares.

Não obstante o evidente drama da escassez de leitos de terapia intensiva (UTI), para atender à crescente demanda, tem sido relatado, também, o temeroso esvaziamento dos estoques do chamado de medicamentos que compõem o “Kit Intubação”, necessários para manter o paciente relaxado e sedado, propiciando, assim, ventilação mecânica eficiente, necessária para a recuperação respiratória, do intenso processo inflamatório causado pelo novo coronavírus.

Estas evidências têm apavorado muitos profissionais de saúde da linha de frente, exauridos por essa diuturna batalha insana, com a possibilidade de terem que escolher, dentre os necessitados, quem vai ser aquinhoado com um leito de UTI e, ainda, terem que presenciar cenas angustiantes de indivíduos despertarem ainda intubados.

Teriam os hodiernos esculápios, discípulos de Hipócrates, que reviver o pesadelo de uma mãe polaca, presa em um campo de concentração durante a Segunda Guerra, forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto, drama imortalizado no filme de Alan Pakula, “A Escolha de Sofia”, estrelado pela magistral Meryl Streep.

A desigualdade social do Brasil foi escancarada com a Pandemia, cuja proliferação desenfreada tem nos tornado uma vitrine indigesta para o mundo, que nos enxerga como um celeiro de novas variantes do traiçoeiro vírus, forçando o cancelamento de voos para solo brasileiro, por mandatários de alguns países.

Urge, pois, que as autoridades competentes não meçam esforços para amparar, sobretudo, a carente rede pública, provendo os recursos necessários para minorar os efeitos dessa terrível tragédia que nos aflige. Cabe, também, à população, fazer a sua parte, observando, com mais comprometimento e rigor, as medidas comprovadamente protetoras de uso de máscara, higienização das mãos, distanciamento físico e, também, evitar aglomerações.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

O SORRISO QUE SE FOI: TÂNIA DA CÚRIA

                                              Tânia Maria dos Santos

 

 

José Lima Santana*

 

 

O vírus aloprado continua matando, num país de aloprados encastelados nas amarras do poder, mas também de aloprados, que seguem alguns daqueles e, nas ruas e em todos os lugares, esbanjam negacionismo. Uns puxam os outros e todos puxam, ou melhor, disseminam o vírus ou dão asas para que ele voe, livre, leve e solto por aí.

No dia em que o Brasil ultrapassou a deplorável marca de 400 mil mortes pela Covid-19, uma das pessoas que partiu foi a minha amiga Tânia. Ora quem foi Tânia, que assim partiu, engrossando a fila negra de mais de 400 mil brasileiros e brasileiras abatidos pela doença, que zomba do mundo inteiro?

O que eu poderia dizer sobre essa Tânia? Que ela foi órfã, criada, em certo período de sua infância, num orfanato? Quantas histórias ela me contou, desse período de sua vida! Que ela foi cria do Bairro Industrial? Que fez morada no Marcos Freire? Que voltou ao seu antigo Bairro? Que se tornou uma profissional exemplar, por onde passou? Que tinha esposo, filhas e netos, além de outros familiares? Que, na Cúria Metropolitana, passou por poucas e boas? Que, como disse o padre José Almi Menezes, foi valorizada, como secretária, pelo atual arcebispo de Aracaju?

Essa citada valorização ainda foi pouco pelo seu zelo profissional, pela sua dedicação, pela sua camaradagem para com todos que a procuravam na Cúria Metropolitana. Quem foi essa Tânia da Cúria? Uma esposa cuidadosa com o marido, até mesmo com os peixinhos que ele pescava, como eu curtia dizer-lhe?

Uma mãe eternamente preocupada com as filhas, esforçando-se, além de suas medidas, pelo bem-estar das mesmas? Uma avó mais do que coruja com netos e netas, que ela dizia serem “os caducos da vovó”? A secretária da Cúria Metropolitana de Aracaju sempre pronta a ajudar a quem dela precisava de uma orientação sobre a documentação eclesiástica e muito mais?

O que eu poderia dizer sobre Tânia, na noite em que escrevi essa crônica tosca em sua memória? Noite de 29 de abril, data de seu silêncio absoluto e de quando o país chorou suas mais de 400 mil vidas ceifadas. Quando pensei em escrever, pareceu-me tão fácil fazê-lo. Triste ilusão.

Nem sempre é fácil reverenciar uma pessoa amiga. Amiga, sim. No dia em que ela foi ao hospital, para se internar, eu, antes, liguei para ela. Respondeu-me com voz ofegante. Disse-lhe: “Tânia, vá depressa ao hospital. Você não está bem!”. Temi por ela, não nego. Fiquei apreensivo.

A cada dia, pelas notícias que a filha mandava, a minha apreensão aumentava. Orei. Deus não teria ouvido as preces, muitas, que tantos por ela fizeram? Deus ouviu, sim. E por que a levou? Ora, Deus não leva. Nós vamos. E o que nos faz ir tem causas diversas. No caso da pandemia, são muitas causas. Dentre elas, o descaso ou o despreparo de muitas autoridades, que não deram ao povo brasileiro os meios adequados para conter o vírus. De outro lado, como dito antes, a teimosia de muitas pessoas, que fazem pouco caso da situação. Contaminam-se e contaminam.

Volto a Tânia. Ela se tornou extremamente capacitada no que fazia. Era a locomotiva da Cúria, em termos de documentação eclesiástica. Quando preciso, não lhe faltava uma palavra de conforto ou de advertência até mesmo para nós padres ou para o arcebispo. Tânia era o que em minha terra se diz: “uma casa cheia”. Nunca cheia de si. Cheia de vida, cheia de sorrisos, cheia de ternura. Não que ela não tivesse seus defeitos. Quem não os tem?

A minha empatia por Tânia foi de imediato. E vice-versa. Como eu mexia com ela! Como adorava curtir com a Tânia de Beto (o seu marido)! Ela morria de rir com as minhas presepadas. Dizia: “Padre Zé, tenha juízo!”. E caía na gargalhada. Cadê, você Tânia? Em qual canto da Cúria você deixou entocado o seu sorriso? Como não mais o ter?

A sua sala foi, na segunda metade da década de 1970 para o início da década de 1980, a sala do TLC – Treinamento de Liderança Cristã –, que era uma espécie de “cursilho” para jovens e do qual eu fiz parte da coordenação, entre abril de 1976 e maio de 1982, já advogado.

Como eu gostava de estar naquela sala, para rememorar os anos frutuosos para a juventude católica da nossa Arquidiocese, contando, na capital e no interior, com quarenta e um grupos de jovens ativos, em Paróquias e Colégios! E, sobretudo, como era bom discorrer sobre assuntos sérios, que, por vezes, nos angustiava, a mim e a ela! Nem sempre as coisas andavam como nós dois desejávamos. Quantas inquietações nós tivemos! Quantas contrariedades com certas situações, nós dividíamos!

E agora? Depois que, na sala de espera do cardiologista, por volta das 09:30 horas daquela manhã de 29 de abril passado, eu liguei o celular e lá estava a notícia que eu não esperava receber. Triste! Muito triste! Um dia terrível... Por volta das 13:00 horas, fui ao velório. Não suportei. Disfarcei, fazendo de conta que estava falando ao telefone com alguém. Desci. Fui embora.

Eu não poderia contemplar um esquife onde estava lacrado o sorriso da minha amiga, da colaboradora eficiente com seus cabelos encaracolados, que eu, jocosamente, dizia ser feito de pavios de candeeiro, ao que ela respondia, sorrindo: “Toma jeito, padre Zé”.

Celebrei a Missa daquela noite, evocando o nome de Tânia. Pesou-me muito proferir o seu nome. Engasguei. Tarde da noite, escrevendo essas toscas palavras, ou parte delas, vi-me chorando.

Somente a fé no Cristo Ressuscitado é capaz de nos manter firmes diante da morte de quem nós amamos, familiares ou amigos. A certeza do encontro com o Pai nos conforta, mas não nos impede de derramar lágrimas, de sentir, de sofrer. Aprendi, em 1977, numa aula de Filosofia, que o absurdo da morte não é a morte em si, mas a separação. A dor da separação é inevitável, porque toda separação dói. Foram palavras do meu professor, padre Gilson Garcia de Melo, que também já se foi para os altares celestes.

Um dia após o passamento de Tânia, eu recebi esta mensagem de sua filha: “Pe. Zé Lima, a minha gratidão a ti pelo enorme carinho a minha mãe. Obrigada por arrancar sorrisos e boas gargalhadas dela”. O sorriso se foi. Tânia deixou sua marca em cada um (a) que com ela viveu e soube compreendê-la, respeitá-la e amá-la. Cada um (a) ao seu modo.

Esteja, Tânia da Cúria, Tânia Maria dos Santos, na paz do Criador. Em nossas vidas, você nunca haverá de ser uma nuvem passageira.

 

 

Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
 

sábado, 1 de maio de 2021

A FEBRE DE TINOQUINHO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Tinoquinho de Tonha de Zé Felício amanheceu queimando de febre. Os beiços rachados. A pijama, os lençóis e as fronhas ensopados de suor. Gemeu de dor de cabeça a noite inteira. Não teve como dormir, nem tirar um cochilo, salvo uns instantes em que delirou. Não quis incomodar a mãe, Tonha.

Ao raiar o dia, levantou-se, tomou um comprimido e caiu debaixo do chuveiro de água morna, apenas quebrada a frieza. A temperatura corporal, medida logo depois, estava em 39.8. Tonha avexou-se. Mãe zelosa de três filhas e um filho, todos vivos, graças a Deus, ela cuidou de preparar um chá de camomila com limão.

O chá de camomila ajudava a reduzir a febre, pois possuía atividade calmante e estimulante que facilitavam a sudorese, baixando a temperatura do corpo. Por sua vez, o limão para febre, sendo rico em vitamina C, possuía propriedade anti-inflamatória, diminuindo a febre e aumentando as defesas do organismo. Não devia ser dispensado um dentinho de alho. Abençoado reforço. A receita vinha da mãe, da avó, da bisavó de Tonha. Perdia-se no tempo aquela utilização conjugada.

A mãe zelosa marcaria uma consulta com o Dr. Sebastião Neto, médico dos melhores que ela conhecia e que clinicava na cidade, dois dias por semana. Aquele era um dos seus dias. A pandemia estava solta, igual a uma besta fera. Contaminando e matando. Nas ruas, uma parcela da população de Monte Alto não estava nem chite para o vírus.

Andava sem máscara e sem usar álcool em gel. Distanciamento? Era só olhar as filas na única agência bancária da cidade ou na casa lotérica. Sem falar no dia da feira semanal. A cidade parecia um mundo à parte do mundo. As autoridades municipais relaxavam nos cuidados sanitários que deveriam ser implantados.

O município já contava com mais de vinte mortes pela covid-19. Ainda assim, a população fazia pouco caso. E havia o estímulo absurdo de negacionistas contumazes. Tonha estava assustada com a possibilidade de o filho ter contraído o vírus. No dia anterior, ele esteve um tempão na fila do Banco.

Dois dias antes, inadvertida e irresponsavelmente, participou de um racha, isto é, de uma pelada no campo do Fuzuê Futebol Clube. E contou à mesa durante o almoço, naquele dia, que Jorginho de Américo Crocodilo, o zagueiro adversário, que lhe deu marcação cerrada, estava com uma tosse seca, que acabou por tirá-lo do jogo uns vinte minutos depois de começado. E Barbudinho, o goleiro do seu lado, reclamou de dor de garganta.

O moço febril tinha delirado algumas vezes na noite. “Viu” coisas e situações. Figuras grotescas. Falou besteiras. O hipotálamo esteve aceso, ajustado. Caixões de defuntos empilhados caíam sobre ele. Túmulos se abrindo num cemitério. Uma jovem que fugia dos seus braços para cair num precipício. Delírios. Delírios.

Chá tomado, reação quase imediata. A temperatura foi baixando. Enfim, 36.3. Tonha viu-se aliviada. Todavia, pediu para Célia Maria, a filha mais velha, que trabalhava na farmácia de “seu” Amintas, marcar a consulta com o Dr. Sebastião. O consultório dele era parede-meia com a farmácia.

Por volta das 10 horas, Tonha levaria Tinoquinho até lá. Já tinha tomado precauções necessárias. Separou o prato, a xícara e os talheres que o filho febril fizera uso no café da manhã. Manteve-o afastado dos demais. Não se sabia. Melhor não arriscar.

O Dr. Sebastião Neto examinou Tinoquinho. Em princípio, tudo bem com ele. Não lhe pareceu estar o rapaz acometido pela Covid-19. Entretanto, seria bom realizar o teste. O único disponível na cidade era o de sorologia. Tal tipo de teste não detectava o vírus, mas sim a presença de anticorpos, isto é, a resposta do organismo frente à infecção. Ou seja, identificava quem já teve contato com o vírus ou quem já teve a doença. Bem. Era o que se tinha.

O médico recomendou, para ter-se mesmo certeza, o RT-PCR. Considerado o padrão ouro para diagnosticar a Covid-19, o RT-PCR constataria a presença do material genético do Sars-Cov-2 na amostra do paciente. Tonha veria o que fazer com o filho adolescente de 16 anos. O “colírio da casa”, como ela mesma dizia.

Antes da febre tomar de assalto o corpo adolescente de Tinoquinho, naquela noite, eis que à tarde, o coração do rapaz foi dilacerado. Um punhal enferrujado atravessou-o. Foi cravado com uma força descomunal. Cravado e torcido. Torcido e retorcido. Fez uma ferida brutal, daquelas que jamais cicatrizaria. Punhalada medonha. Desferida por quem ele nunca poderia imaginar.

Rosa Maria, filha de Maria Rosa de Bartolomeu Borges Barata, o popular 3B. Sim, ela, sim. Rosa Maria, encanto dos olhos de Tinoquinho. Colega de escola e amiga íntima desde a infância. Olhos gateados que começaram a azucrinar a sua vida há não mais do que três meses.

Antes, eram apenas olhos de amiga. Há três meses, mais ou menos, tornaram-se olhos a lhe sobressaltar o coração, a cada instante que os fitava. Ah, os lábios levemente carnudos de Rosa Maria, que, antes, só pareciam servir para sorrir, tornaram-se objeto de desejo! Beijá-los, senti-los, sorver o néctar que, certamente, por ali se derramava.

Ao encontrar-se com Rosa Maria, no fim da tarde, em frente à igreja matriz, casualmente, Tinoquinho criou a coragem que há semanas lhe faltava: “Rosa, eu quero namorar com você”, ele disse, de supetão, sem pestanejar, de forma direta. Mais direta, impossível. A moça teve um sobressalto. Arregalou os olhos e foi tão direta quanto ele o fora. “Tinoquinho, nós somos bons amigos. E devemos continuar assim. Eu não pretendo estragar a nossa amizade. E, ademais, ontem mesmo eu comecei a namorar com Flavinho, seu primo. Eu lhe amo muito, como irmão. Fraternalmente”.

“Como irmão”, ela disse. Fraternalmente, ele ouviu, zonzo. Ele ouviu aquelas palavras como uma sentença de morte. Baixou a cabeça. Não disse nada. Saiu. Meio trôpego. Flavinho. O que ela viu nele? Tropeçou na calçada de “seu” Henrique Lopes. Sentiu o sangue gelar nas veias.

Em casa, ele chegou quase chorando. Trancou-se no quarto. Pôs o travesseiro sobre a cabeça. Caiu em prantos. Não teve forças para jantar. Deu uma desculpa qualquer. E não demorou muito para a febre chegar, cozinhando o corpo. Não, não era a covid-19. Era o amor esmagado.

Mal entrado no mundo da paixão, o coração adolescente de Tinoquinho deparou-se com o mundo cruel da desilusão. Valeria a pena lutar pelo amor de Rosa Maria? O tempo... O tempo.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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