terça-feira, 28 de março de 2023

DIREITO E CINEMA


  

 

José Anselmo Oliveira*

 

 

INTRODUÇÃO

 

Nos idos de 1974, não sonhava que iria estudar direito. Estudava eletrotécnica na Escola Técnica Federal de Sergipe quando foi oferecido um curso teórico e prático de cinema. Curso que me abriu as portas para gostar mais ainda da sétima arte que já me fascinava desde criança.

Além da teoria sobre as técnicas e os estilos cinematográficos, foi possível escrever roteiros, fotografar, dirigir, fazer a montagem das películas, resultando em filmes em Super8 e 16 mm. Tive a felicidade de junto com dois grandes colegas, infelizmente já falecidos, Diomedes Santos da Silva, que veio a se tornar uma liderança dos professores do Estado de Sergipe, e Carlos Nobre, jornalista e professor da PUC/RJ e que tinha por especialidade cobrir o poder judiciário, a segurança pública. Juntos escrevemos o roteiro do documentário em 16 mm sob o título “A humanização da técnica”, que mostrava o ensino de tecnologia na Escola Técnica Federal de Sergipe e também o acesso às artes como o teatro, o cinema, a literatura e a música. Frise-se numa quadra onde se vivia o pior período da ditadura militar, os anos 70.

O que é fascinante no cinema é a possibilidade da comunicação imediata não só de temáticas da vida real (urbanas, rurais, questões sociais, questões jurídicas, questões psicológicas, poder político, liberdades, democracia, guerra e paz), mas a sua linguagem dinâmica possibilita que as emoções sejam percebidas enquanto forma de comunicação.

Sou da geração que admirou a nouvelle vague francesa, movimento do cinema francês capitaneado por Eric Rohmer, Jacques Rivette, Claude Chabrol, François Truffaut e Jean-Luc Godard, redatores da Revista Cahiers du Cinéma, fundada no final da década de 50 do século XX, e nos deu filmes como Acossado, de Godard, e Os Incompreendidos, de Truffaut, ambos de 1959; do cinema novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e tantos outros, mas também do cinema alemão do pós segunda guerra, do cinema polonês e tcheco.

Quando cheguei à faculdade de direito da UFS em 1977, o ensino do direito ainda era tradicional e voltado para a defesa do legalismo e do positivismo. Não tive a felicidade que os estudantes de direito das gerações mais novas tiveram de conviver com as mudanças que trouxeram para o ensino jurídico a transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, expressões hoje comuns aos projetos acadêmicos dos cursos jurídicos e na formação de mestres e doutores.

Infelizmente, ainda existe uma abordagem no ensino jurídico mais tecnicista e dogmática, abordagem que dificulta a compreensão das relações em uma sociedade cada vez mais complexa a exigir dos profissionais do direito muito mais que o conhecimento das teorias.

A sociedade é dinâmica, e sendo o direito produto da cultura a sua construção e desconstrução segue a mesma velocidade, e isto, infelizmente não é captado na mesma velocidade pelo estudo teórico e dogmático, daí a importância de outras abordagens conceituais.

O conhecimento tradicionalmente foi segmentado, essa especialização dos campos do conhecimento que vem desde Aristóteles não mais atende a nossa realidade, e por isso desde os anos 60 surgiu a necessidade de aproximação dos campos, que podemos chamar de interdisciplinaridade.

 

O CINEMA COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO

 

A filosofia

A modernidade em crise e todos os modelos que buscavam compreender o mundo foram colapsados após a segunda guerra mundial. O terror visto pelo mundo com o holocausto que pôs em alerta todas as ideologias nacionalistas e a sua relação com o que chamou Hanna Arendt de “banalização do mal”, de um lado, e de outro o existencialismo que defendia a liberdade de escolha e o livre-arbítrio de Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês considerado o “Pai do Existencialismo” ,  Martin Heidegger (1889-1976) e a sua ideia de que o ser humano pode experimentar uma existência autêntica ou inautêntica a depender de suas escolhas, e finalmente, Jean-Paul Sartre (1905-1980) que levou a liberdade ao extremo e daí entender “somos condenados por sermos livres”, junto com Simone de Beauvoir (1908-1986), ousada e libertária vai defender a liberdade feminina, lembrando uma de suas frase mais emblemáticas: “Não se nasce mulher: torna-se.”

Uma pergunta que vocês devem estar se fazendo é: E o que isto tem a ver com o tema Direito e Cinema?

Esta é a chave. Enquanto o positivismo jurídico pretendeu reduzir o mundo e as relações das pessoas em um conjunto de normas, regras e princípios, como se pensava o mundo das ciências naturais como a física e a química, por exemplo, o mundo real não se submete a esse conjunto de princípios, regras e normas.

Daí o direito não pode ser perene, vai sempre estar em construção ou desconstrução. Queiramos ou não.

Tobias Barreto já sabia disso ao declarar que o direito é fruto da cultura. Por essa razão vai se tornar o precursor do culturalismo jurídico brasileiro, reconhecido em todo o mundo, seguido entre outros por Miguel Reale, um dos seus grandes admiradores.

E o que tem isso a ver com o cinema?

Direito por ser fruto de um processo cultural se vale da linguagem como meio adequado para seja compreendido, comunicado.

O processo legislativo nada mais é do que uma análise de vários discursos de várias categorias que de um modo ou de outro podem influenciar o texto legal.

A atividade do jurista, seja advogado, professor, ou membro das carreiras jurídicas como magistrado, promotor de justiça, defensor público e outras, tem por mediação a linguagem onde buscam construir argumentações não somente técnico-jurídicas, mas de caráter sociológico e antropológico

Uma petição, um parecer ou uma sentença estão impregnados de signos linguísticos e imagéticos para se tornar convincente para o público a que se destina.

E o que o cinema?

Essa arte tão nova, fruto da tecnologia desenvolvida no final do século XIX, mas exatamente em dezembro de 1895 quando Louis e Auguste Lumière filmaram a saída de operários de uma fábrica nos arredores de Paris, na França.

E de lá para cá, invadiram as salas de cinemas, e hoje as televisões, os computadores e os smartphones, aproximando o mundo e as culturas, revolucionando totalmente a forma de vivermos, tornando o planeta uma pequena aldeia onde fica mais evidente a diversidade, os preconceitos, as discriminações, a violência, as ideologias.

Tudo isso que o cinema é capaz de mostrar em 90 minutos, não cabe em nossos compêndios de direito, nem mesmo nas sentenças e acórdãos do judiciário. Não cabe nas leis produzidas pelo legislativo. Mas com toda a certeza, preenche a visão do legislador e do aplicador do direito, porque escancara a realidade social e humana, nossos medos e nossos instintos.

 

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

 

Qual a aproximação entre o direito e o cinema?

Como arte textual e imagens em movimento, o cinema, possibilita além de observar de um plano privilegiado de expectador, também possibilita sentir e perceber emoções.

Na literatura, por exemplo, a narrativa por mais expressiva que seja há um espaço para a imaginação do leitor. No cinema, o discurso narrativo do roteirista e do diretor conduz o expectador.

Por essas razões é que o uso do cinema na formação do jurista permite que a estética e o exercício de observador privilegiado se apurem quanto à percepção da realidade.

Lembro aqui a lição do filósofo e educador francês Edgar Morin que a despeito do paradigma da complexidade, alertava que devem ser dadas aos estudantes acesso a todas as formas de cultura de humanidades, como o teatro, a literatura e o cinema.

Não é diferente se atentarmos para a teoria dos sistemas de Nikclas LUHMANN, onde a complexidade dos sistemas exige do observador também um determinado ponto de observação privilegiado, vejamos:

Os meios de difusão podem fazer uso da escrita, mas também de outras formas de transmissão de informações. O efeito selectivo que exercem sobre a cultura é praticamente incalculável, já que ampliam enormemente a memória, ainda que pela sua selectividade limitem os dados disponíveis para comunicações ulteriores. (LUHMANN, 2006

 

O cinema é uma das formas de arte mais populares e influentes em todo o mundo. Ao longo das décadas, inúmeros filmes abordaram temas relacionados ao Direito, seja explorando questões sociais e políticas, ou retratando a vida dentro e fora dos tribunais.

 

O direito e o cinema têm uma relação íntima e complexa, à medida que o cinema, como forma de expressão cultural, pode influenciar e moldar a opinião pública sobre questões jurídicas e judiciais. Por sua vez, o Direito é uma fonte contínua de inspiração para muitos cineastas, que utilizam temas como justiça, igualdade, corrupção e abuso de poder, para retratar questões sociais e políticas, bem como dramas pessoais.

 

Alguns dos temas mais explorados pelo cinema relacionados ao Direito incluem o sistema de justiça criminal, a liberdade de expressão, o poder da mídia, o papel dos advogados, a corrupção e a desigualdade social. Estes temas têm sido retratados em filmes aclamados pela crítica, como "12 Homens e uma Sentença", "F a l l i n g Down: Um Dia de Fúria", "A Firma", "O Pacto dos Lobos", "Inocente até Proveniente em contrário" e "Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento".

 

Além de retratar tais questões, o cinema também pode ter um impacto significativo na vida real. Por exemplo, o filme "Philadelphia", estrelado por Tom Hanks e Denzel Washington, ajudou a aumentar a conscientização sobre a discriminação contra pessoas com AIDS no local de trabalho e inspirou mudanças legislativas para proteger os direitos dessas pessoas. Da mesma forma, o filme "A Vida de David Gale", estrelado por Kevin Spacey, retrata a pena de morte e questiona a validade do sistema judicial americano, abrindo um debate na sociedade americana sobre a pena de morte.

 

No entanto, também é importante lembrar que o cinema é uma forma de arte e ficção, e nem sempre apresenta uma representação precisa e completa do sistema judicial ou das leis em vigor. Muitas vezes, filmes e séries retratam situações exageradas ou extremas, usando a liberdade artística para criar drama e entretenimento.

 

De qualquer forma, a relação entre o Direito e o cinema é uma via de mão dupla, e ambos têm muito a aprender um com o outro. O cinema pode ajudar a humanizar a justiça e torná-la mais acessível ao público em geral, enquanto o Direito pode fornecer um quadro contextual para as questões abordadas pelo cinema. Juntos, eles podem ajudar a moldar a maneira como vemos o mundo e a instituição da justiça.

 

Agradeço a oportunidade de falar sobre um tema tão fascinante e de mais uma vez estar em um evento NEPRIN.

 

 

Referências bibliográficas

 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ALMEIDA, José Rubens Demoro. Cinema, Direito e prática jurídica – uma introdução, Revista do curso de Direito da Faculdade de Campo Limpo Paulista, v. VII, pg. 38-47, Porto Alegre: IOB, 2009. ISSN 1980-1866

LACERDA, Gabriel. O direito no cinema: relato de uma experiência didática no campo do direito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007.

LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 4A ed. Lisboa: Vega Passagens, 2006

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita, repensar a reforma, repensar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Ed. Rev. E Ampliada pelo Autor. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

PIRES DA SILVA, Nádia Teixeira. A imagem do direito e a imagem como direito na sociabilidade contemporânea. Esboço para uma observação sociológica desde a matriz sistêmica de Niklas Luhmann. Monografia de conclusão de curso apresentada à Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientação: Juliana Neuenschwander Magalhães. Dezembro de 2008.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 61-186.

 

 

*Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Juiz de Direito, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Letras e Academia Sergipana de Educação.

domingo, 26 de março de 2023

DESEMPREGO NA PANDEMIA. PIOR PARA OS DEFICIENTES


 

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A Lei de Cotas (art. 93 da Lei nº 8.213/91) foi promulgada há três décadas para assegurar a inclusão no mercado de trabalho brasileiro. Ela estabelece que empresas com cem ou mais empregados devem preencher uma parte dos seus cargos com pessoas com deficiência. Todavia, ainda enfrenta desafios para ser amplamente cumprida.

Nos municípios pequenos, por exemplo, as chances de postos formais são mais reduzidas, porque os pequenos negócios da economia local não estão sujeitos à obrigatoriedade de reserva de vagas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 28,3% dos deficientes brasileiros estão trabalhando. Taxa significativamente inferior à daqueles sem deficiência, 66,3%. Além disso, os deficientes exibem rendimento médio mensal também inferior.

Ainda, segundo o referido Órgão Federal, a taxa de participação no mercado de trabalho varia de acordo com o tipo de deficiência apresentada: visual 37%; auditiva 28%; física (membros superiores) 17,9%; física (membros inferiores) 16,9%; mental 5,3% e, mais de uma deficiência 12,9%.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE, realizada durante a pandemia, evidenciou que 13,2% dos brasileiros estavam desempregados no ano de 2021, caindo para 9,3% no ano seguinte. Estes dados refletem uma tendência mundial, contudo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a recuperação na América Latina tem sido mais lenta do que o restante do mundo, refletindo, provavelmente, a continuidade da virose, agora protagonizada pela variante Ômicron do SARS-Cov-2.

Foi recém-publicada, no prestigiado periódico JAMA (DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2023.3364), uma pesquisa que visou avaliar a perda de emprego e a dificuldade financeira de portadores de deficiência, durante a Covid-19 nos Estados Unidos.

Em uma amostra de, aproximadamente, 223 milhões de adultos (mulheres 51,4% e hispânicos ou latinos 16,9%), 10,9% apresenta algum grau de deficiência: visual, auditiva, física ou cognitiva. Destes, 17,1% relataram perda do emprego e 26,1% admitiram dificuldade financeira doméstica. Após os ajustes adequados, os autores concluíram que os portadores de deficiência, sobretudo múltiplas, apresentavam quase duas vezes mais chance de perder o emprego e eram mais propensos a relatar dificuldades financeiras em comparação com aqueles sem deficiência.

Portanto, a Covid-19 além da perda de vidas preciosas, trouxe inúmeras consequências negativas para a população, sendo mais impiedosa com as classes menos favorecidas, como a dos deficientes. Cabe aos gestores públicos lançarem mão de artifícios para ajudar as pessoas com deficiência a recuperar e manter seus empregos, como mecanismo para reduzir as dificuldades financeiras dessa população.

Finalizo citando o icônico cantor e compositor britânico, John Lennon: “É uma falta de responsabilidade esperarmos que alguém faça as coisas por nós”.

 

 

*Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

A UFS E O CURSO DE DIREITO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Em maio próximo, a Universidade Federal de Sergipe estará completando 55 anos de sua fundação. Um marco memorável na história educacional sergipana e, a bem dizer, na própria história destas terras outrora pertencentes a El-Rey. A vida intelectual sergipana, deveras, tomou novo rumo com a existência da UFS.

Nos aspectos sociais, econômicos, administrativos e políticos, a presença da única Universidade pública do nosso Estado teve e tem destacado papel. Dos seus bancos acadêmicos saíram milhares de profissionais que deram impulso à vida sergipana nos mais diversos setores.

Ao lado dos 55 anos da UFS, destacam-se os 73 anos de fundação da Faculdade de Direito de Sergipe, que, em 1968, passou a integrar a própria UFS, ao lado de outras Faculdades. De início, a Faculdade de Direito era estadual, passando a federalizar-se e incorporando-se à Universidade. Hoje, é o Departamento de Direito – DDI, que faz parte do Centro de Ciências Sociais Aplicadas – CCSA.

Após a Proclamação da República, no fim do século XIX e até os meados do século XX, houve três tentativas de fundação de uma Faculdade de Direito em Sergipe que, por questões diversas, mas, sobretudo, em face da instabilidade política reinante no Estado, não obtiveram sucesso.

Enfim, na reunião realizada em 28 de fevereiro de 1950, na sede do Conselho Penitenciário, diversos juristas e intelectuais sergipanos, dentre eles, Afonso Moreira Temporal, Alberto Bragança de Azevedo, Antonio Manuel de Carvalho Neto, Armando Leite Rollemberg, Augusto César Leite, Enoch Santiago, Francisco Leite Neto, Gonçalo Rollemberg Leite, Hunald Santaflor Cardoso, João de Araújo Monteiro (Monteirinho), José da Silva Ribeiro Filho, Afonso Moreira Temporal, fundam a Faculdade de Direito de Sergipe.

Após as providências administrativo-legais e a realização do exame de habilitação, destinado a selecionar os futuros acadêmicos, em 15 de março de 1951, no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, com a presença do Governador do Estado, do Bispo da então Diocese de Aracaju, de autoridades e do público em geral, foi iniciado o curso da Faculdade de Direito de Sergipe, cabendo ao professor Gonçalo Rollemberg Leite proferir a aula inaugural, sob o tema “Direito em Sergipe”.

Antes da aula inaugural, no dia 5 de março de 1951, foi eleita a primeira diretoria da Faculdade de Direito de Sergipe que teve como diretor o professor Otávio de Souza Leite, como vice-diretor o professor Gonçalo Rollemberg Leite e como conselheiros os professores Enoch Santiago, Manuel Ribeiro (pai do escritor João Ubaldo Ribeiro), Armando Leite Rollemberg e Afonso Moreira Temporal.

O corpo docente inicial da Faculdade de Direito de Sergipe foi composto de seis de seus professores fundadores, a saber: Antônio Manuel Carvalho Neto, Armando Leite Rollemberg, Francisco Rollemberg Leite, Gonçalo Rollemberg Leite, Manoel Cabral Machado e Mário de Araújo Cabral, juristas e intelectuais de nomeada em Sergipe. A estes, outros foram, aos poucos, se incorporando. O gérmen para a criação da Faculdade de Direito estava na Faculdade de Ciências Econômicas, pois nesta já pontificavam futuros professores daquela, a saber: Manoel Cabral Machado, João de Araújo Monteiro, Mário Cabral e Gonçalo Rollemberg Leite.

Dos fundadores, Carvalho Neto e Armando Rollemberg, exerceram a deputação federal. Aliás, o primeiro foi um dos baluartes do Direito do Trabalho e do Direito Penitenciário, no Brasil. O segundo tornar-se-ia ministro do antigo Tribunal Federal de Recursos, atual STJ.

Fui aluno de Cabral Machado, em Direitos Reais, e de Monteirinho, em Direito Previdenciário e Processo do Trabalho. Em julho de 1977, após lograr êxito em concurso público realizado em maio daquele ano, fui nomeado auxiliar de controle externo do Tribunal de Contas do Estado pelo professor Cabral Machado, presidente daquela Corte de Contas.

O curso de Direito, na Faculdade e, depois, na Universidade, procurou ser plural em vários aspectos. Homens e mulheres ingressaram desde o início em suas fileiras, como alunos (as). Alunos (as) de todos os matizes sociais, embora com certos percalços. A primeira mulher a ser docente do curso de Direito foi a professora Juçara Fernandes Leal (nome de solteira), minha professora de Direito Penal I.

O primeiro professor negro foi José Amado Nascimento, contabilista, jurista e poeta. De lá para cá, pelo menos quatro outros professores negros, até agora, já ingressaram no curso de Direito da UFS, inclusive este subscritor. É possível voltarmos ao tema com outras conotações. Em breve.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 12 de março de 2023

SEGURANÇA DAS VACINAS mRNA EM CRIANÇAS


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Apesar de a Covid-19 geralmente apresentar um caráter benigno em crianças menores de cinco anos de idade, podem ocorrer casos graves, necessitando hospitalizações e causando mortes, além das complicações pós agudas, incluindo a temida síndrome inflamatória multissistêmica.

Segundo dados emitidos pela equipe Observa Infância da Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ), no ano de 2022 o Brasil registrou uma morte por dia em crianças de 6 meses a 5 anos de idade, diagnosticadas com a Covid-19. Nos Estados Unidos, o cenário não foi diferente, já que em janeiro de 2022, durante o período inicial de predominância da contaminação com a variante B.1.1.529 (Ômicron) do SARS-Cov-2, a taxa de hospitalizações entre crianças menores do que cinco anos de idade foi cinco vezes maior do que no período de predominância da cepa B.1.617.2 (delta) do referido vírus.

Vale ressaltar, ainda, que a maioria (63%) das crianças hospitalizadas por Covid-19 no ano passado naquele país, não exibiam comorbidades. Tem sido alertado, também, que crianças podem desempenhar papel significativo na disseminação de variantes altamente transmissíveis.

No entanto, a imunização de crianças contra a Covid-19 avança em ritmo lento no Brasil. Segundo dados do Vacinômetro Covid-19 (Ministério da Saúde) analisados pelo Observa Infância em 28 de novembro, apenas 7 de cada 100 crianças de 3 e 4 anos receberam as duas doses da vacina.

Do total de 5,9 milhões de crianças nessa faixa etária, somente 1.083.958 tomaram a primeira dose da vacina contra a virose, enquanto 403.858 completaram a imunização com a segunda dose. A situação é mais preocupante, porque também tem sido registrada perigosa queda da cobertura vacinal contra outras viroses que também acometem a população infantil.

Segundo dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a taxa de vacinação infantil no Brasil vem sofrendo uma queda significativa, colocando o país entre os dez com pior desempenho no mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, essa queda foi de 97%, em 2015, para 75% em 2020, sendo a BCG a menos utilizada entre 9 vacinas analisadas pelo DataSUS.

Diferentemente da Coronavac, que utiliza o vírus inativado em sua composição, e do imunizante da AstraZeneca/Oxford, que utiliza o chamado “vetor viral”, a vacina da Pfizer/BioNtech utiliza outra biotecnologia: o mRNA (ácido ribonucleico mensageiro). As vacinas contra a Covid-19 têm apresentado, de forma geral, o decaimento dos anticorpos com o tempo, justificando a avaliação periódica da necessidade de aplicação de doses de reforço, com o objetivo de manter níveis adequados de anticorpos capazes de neutralizar o vírus causador da doença.

A vacina “Comirnaty” produzida pela farmacêutica norte-americana Pfizer, em parceria com o laboratório de biotecnologia alemã BioNTech, em uso no Brasil está registrada junto à Anvisa desde 23 de fevereiro de 2021, com indicação para imunização de ampla faixa etária, iniciando-se a partir de 6 meses de idade. No final do ano passado, o referido órgão regulatório autorizou a aplicação de uma dose de reforço ao esquema vacinal primário em crianças a partir de 5 anos e adolescentes.

Foi recém-publicado, no prestigiado periódico New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMoa2211031), um artigo que aborda o uso da terceira dose (reforço) da vacina BNT162b2 (Pfizer–BioNTech), 8 semanas após a segunda dose em crianças de 6 meses a 4 anos de idade.

Os autores concluíram que o produto é seguro, imunogênico e eficaz também nesta faixa etária. Vale frisar que, durante o período da investigação, não foi relatado nenhum caso de miocardite, pericardite ou de anafilaxia promovido pelo imunizante. Finalizo citando o professor e estatístico estadunidense William Edwards Deming: “In God we trust; all others must bring data” (“em Deus nós confiamos; todos os outros devem trazer dados”).

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

APITO DESCARADAMENTE AMIGO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Não é de hoje, nem de ontem, que o futebol tem excrescências inomináveis. O famoso “apito amigo”, no dizer de comentaristas, dirigentes, atletas e torcedores tem favorecido estes ou aqueles clubes. Invariavelmente, todos, ou quase todos, têm o que reclamar nesse sentido. No mundo, no Brasil, em Sergipe, seja lá onde for.

Em abril de 2019, foi a vez de o Dorense Futebol Clube, do qual eu fui presidente por três vezes, ser garfado, em Itabaiana. Na época, publiquei o artigo “Dorense Futebol Clube: garfado em campo”? E dizia que: “A torcida do Dorense Futebol Clube está na bronca com a arbitragem da última peleja contra o Itabaiana, pela quarta rodada do hexagonal.

Um gol absurdamente anulado, que daria o empate ao Dorense, é a causa da bronca. Deveras, um erro crasso da arbitragem, como se pôde ver através de filmagens feitas e que rolam no YouTube. Ainda por cima, o árbitro auxiliar assinalou a validade do gol, correndo para o meio do campo, para, depois, recuar, ao ver que o árbitro invalidara o gol salvador do Dorense, sob pressão da comissão técnica do Itabaiana [ou seja, interferência externa, que é proibido]. As gravações mostram isso”.

O “apito amigo”, via de regra, favorece os clubes de maior expressão. Não se deve deixar de considerar que há erros de arbitragem involuntários. Não é o caso do “apito amigo”. Esse é aquele que ninguém, em sã consciência, deixa de vislumbrar um erro crasso, gravíssimo, com intenção de “ajudar”.

Na quinta-feira, dia 2, próximo passado, a vítima do “apito amigo”, descaradamente amigo, foi o Club Sportivo Sergipe, no jogo contra o Botafogo do Rio de Janeiro. O chamado “Glorioso” não perdeu a glória na atual Copa do Brasil, quando deveria ser, mais uma vez eliminado, na primeira fase, porque um árbitro mal-intencionado, para dizer o mínimo, solapou o Vermelhinho, primeiro ao prorrogar o segundo tempo por oito minutos, quando, na verdade, as interrupções não dariam cancha para tamanha prorrogação, além de acrescer mais um minuto, chegando a nove minutos de prorrogação, com três escanteios contra o Sergipe, em sequência, quando o último deles, provavelmente, não o teria sido.

E o gol salvador do Botafogo ocorreria passados os nove minutos determinados, aos nove minutos e trinta e alguns segundos. Empatado o jogo, o árbitro, inopinadamente, encerrou-o. Queria dar o empate classificatório ao clube carioca? Clube “grande” contra clube “pequeno”. Uma vergonha!

O resultado almejado acabou acabrunhando muitos torcedores do Botafogo. Muitos! Um deles, o governador do Estado, Fábio Mitidieri, proclamou a sua indignação, como sergipano, ao ver o nosso futebol garfado de forma aviltante e vergonhosa pelo árbitro, que fez uso descarado do “apito amigo”.

O Botafogo, claro, não tem nada a ver com isso.

Eis a lúcida e coerente fala do governador sergipano, botafoguense de raiz: “Eu espero que a Federação Sergipana de Futebol (FSF) entre com uma representação contra a CBF. Eu sou torcedor do Botafogo, mas o que a gente viu aqui hoje foi um roubo, roubaram o futebol sergipano.

É um escândalo, o Batistão estava bonito e não merecia isso. O Botafogo, pela sua grandeza não merecia isso, não merecia passar dessa forma, não precisa disso. Foi feio. A Federação tem que se manifestar. O que a gente viu hoje foi um escândalo no futebol sergipano [...]. Tirou o brilho do futebol e tirou o brilho da Copa do Brasil. Eu acho, inclusive, que diminuiu o tamanho do Botafogo com isso aqui”.

Já o presidente da FSF, Milton Dantas, afirmou: “Estamos pedindo a CBF apuração dos fatos e que os responsáveis sejam punidos. Ontem mesmo fizemos contato com a Diretoria da CBF para manifestar nossa indignação pela desastrosa atuação do trio de arbitragem e principalmente do árbitro-central. A arbitragem foi tendenciosa e trouxe um prejuízo irreparável para o Sergipe”. No dia 3, Dantas enviou o Ofício DCO 0303/2023 à Comissão de Arbitragem, dizendo que o árbitro “Cometeu equívoco, provado em áudio visual, na marcação do escanteio que ocasionou o gol de empate da equipe visitante”.

Segundo as regras da Copa do Brasil, e conforme consta, o Sergipe, assim garfado, perdeu R$ 900.000,00 (novecentos mil reais). Que falta fará aos seus cofres! Quem ressarcirá o Club Sportivo Sergipe dessa perda tão lamentável? Quem porá freio ao “apito amigo”, mormente contra os clubes “pequenos”? O que acontecerá com o tal árbitro? Talvez, nenhuma punição por parte da Comissão de Arbitragem da CBF. Deixá-lo sem apitar por uns poucos dias, somente isso. E olhe lá!

Não há, em tese, como respaldar a ação impensada do presidente do Sergipe, ao agredir o árbitro. Foi ruim. Inconcebível. Todavia, o “apito amigo”, dessa vez, deveria ser engolido. Não na porrada, claro. Mas, quem sabe, doravante, por causa da ação do presidente, os árbitros de fora pensem duas vezes em agir, aqui, como agiu o tal árbitro daquela malfadada quinta-feira. Contudo, o mal feito foi feito.

 

 

*Padre, desportista, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 5 de março de 2023

NECESSIDADE DE MELHORAR A QUALIDADE ALIMENTAR DE PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA CARDÍACA EM SERGIPE


  

 

Jamile Oliveira Costa*

Antônio Carlos Sobral Sousa**

 

 

A Insuficiência Cardíaca (IC) constitui uma síndrome clínica complexa, caracterizada pela incapacidade de o coração bombear sangue no volume necessário para atender às necessidades metabólicas do organismo, apresentando sintomas recorrentes que comprometem, significativamente, a qualidade de vida dos doentes e familiares próximos.

Apesar dos avanços terapêuticos, a sobrevida após o diagnóstico de IC, aumentou modestamente nas últimas décadas, ficando atrás de outras condições graves como o câncer, abrindo espaço, portanto, para novas estratégias de tratamento. A desnutrição é uma condição clínica negligenciada, que afeta parcela significativa de portadores da referida doença e esta associação pode decorrer, também, de dieta inadequada. Estima-se que a IC seja responsável por 21% das internações e por 10,8% das causas de morte por doença cardiovascular no Brasil.

Entre os principais fatores etiológicos da IC, destacam-se as síndromes coronarianas, a Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), as valvopatias, as cardiopatias congênitas e as miocardiopatias (alcoólica, doença de Chagas, certas drogas oncológicas, doenças endócrinas e nutricionais, dentre outras).

As principais Diretrizes para o tratamento de IC, recomendam, além do uso dos medicamentos preconizados, a adoção de medidas de mudança do estilo de vida, tais como, abolir o uso de tabaco e de álcool, praticar exercícios físicos regulares, de acordo com a condição clínica do enfermo e ter uma dieta adequada.

O foco central da alimentação é evitar a ingestão excessiva de carboidrato simples, de gordura (saturada e trans) e de sódio, priorizando as fontes de carboidratos complexos e as gorduras inofensivas (mono e poli-insaturadas). Tais medidas visam aumentar a capacidade funcional e qualidade de vida do paciente.

Porém, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (2017-2018) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente, a dieta da população brasileira apresenta alto teor calórico, maior consumo de carnes, de leite e de derivados ricos em gorduras, e baixo consumo de frutas, cereais, verdura e legumes.

Com o objetivo de identificar o padrão alimentar de pacientes internados com IC, tanto entre os usuários do SUS e como os da Rede Suplementar (RS) de saúde, a orientanda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Sergipe (PPGCS-UFS), Jamile Oliveira Costa, realizou a sua Tese de Doutorado, cujo produto foi recém-publicado no periódico Nutrients (DOI: 10.3390/nu14050987).

A investigação faz parte do Registro de Insuficiência Cardíaca (VICTIM-CHF) de Sergipe e constou de 240 voluntários hospitalizados em 03 unidades referência em cardiologia em Aracaju, sendo 67,5% assistidos pelo SUS. Foram identificados três padrões alimentares: o “Tradicional”, típico da população nordestina (feijão, arroz, massas, cuscuz de milho, raízes e tubérculos, ovos e farinha de mandioca somados a alimentos ultra processados como doces, sobremesas, lanches e embutidos); o “Mediterrâneo”, composto por alimentos ricos em nutrientes mais saudáveis como carboidrato complexo, vitaminas e minerais, gordura poli-insaturada e proteínas e rejeita o consumo de açúcar simples, dos refrigerantes e da gordura saturada.

Este padrão, semelhante à dieta Mediterrânea, é rico em elemento cardioprotetores e tem sido associado não apenas à diminuição na incidência de IC, como, também, nos seus desfechos indesejáveis; e o “Dual”, composto por alimentos de fácil preparo como os lanches, pães, doces e sobremesas, ricos em carboidrato simples, mas também em açúcares complexos e gorduras boas oriundas da sopa e azeite de oliva.

A adesão ao padrão “Tradicional” foi mais frequente entre os homens e os não diabéticos. Já o “Mediterrâneo” foi o mais consumido pelos idosos, os casados, os com menor renda e aqueles não portadores de HAS. Finalmente, o padrão alimentar “duplo” teve maior adesão pelos idosos, os que se autodeclararam não negros, os com maior renda, os atendidos no setor privado e os que apresentavam capacidade funcional menos prejudicada.  Todavia, independentemente da assistência de saúde utilizada, foi observada baixa adesão aos elementos cardioprotetores nas dietas utilizadas.

Portanto, o conhecimento do padrão alimentar da referida população, deixa patente a necessidade de implementação de estratégias de educação alimentar e nutricional que incentivem a adoção de ingredientes mais saudáveis, semelhante aos encontrados na dieta do Mediterrâneo, com elementos potencialmente protetores dos agravos e limitações na qualidade de vida que a IC pode causar.

 

 

* Nutricionista e participante do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Sergipe (PPGCS-UFS).

** Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação,

A CAPA DO PADRE BENTO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O carpinteiro Aderaldo foi chamado à casa paroquial, para ver a situação precária do telhado. O padre anterior, Cônego João Duarte, velho, alquebrado pelos muitos anos de ministério sacerdotal, advertiu o novo pároco para aquela situação a merecer urgentes reparos.

O padre Dantas, Bento Virgílio Costa Dantas, da família dos Dantas da região centro-sul do Estado, com um governador, dois senadores e vários deputados e prefeitos no currículo familiar, era um dos padres mais considerados no Clero diocesano. Andava lá pelos trinta e cinco anos de idade, e oito como ordenado. Varão de aprumo. Era a sua primeira Paróquia, depois de servir cinco anos na Cúria e três como capelão no Santuário Menino Jesus. Agora, precisava mostrar serviço, para seguir carreira.

O carpinteiro foi atendido pelo próprio padre. Aderaldo pegou a escada, subiu pelos fundos, averiguou todo o telhado com o seu ajudante. Era preciso trocar alguns caibros e ripas. E algumas telhas, que estavam quebradas. A madeira grossa, de peças e cumeeira, estava em bom estado. Madeira de lei. Como o carpinteiro estava com um trabalho já ajustado, na casa de Manequinha de Salú, acertaram para a terça-feira da semana seguinte.

A meio, andava o período quaresmal. Tempo de graça, mas, também, de cismas por parte de muitas pessoas do povo. Época de assombrações, de mulas-de-padre e lobisomens. As crenças do povo tinham fé de ofício.

Segunda-feira. Passava das onze da noite. Américo Corcunda vinha descendo a ladeira da Lagoinha, ali, juntinho do Cruzeiro Velho, subúrbio da cidade, onde morava Zélia do finado Zé Jardim, viúva aos vinte e seis anos, sem filhos, zeladora da igreja matriz, de bons e cobiçados apetrechos carnais.

Américo era tio de cortesia da zeladora. Achegando-se às proximidades do quintal de sua sobrinha, Corcunda deparou-se com um vulto esquisito. Na sua descrição, depois do atropelo que se seguiria, ele disse que o vulto tinha olhos esbugalhados da cor de fogo. Mãos gigantescas e peludas, verdadeiras garras, as unhas à mostra.

Era noite de lua, a estrada e o quintal cintilavam sob o luar. Américo gritou, de foice na mão: “Quem tá aí? É deste mundo”? Nada. O vulto permaneceu imóvel, parecia saído do quintal da zeladora, sua sobrinha. Américo pensou que fosse uma visagem, quem sabia, a alma do finado Zé Jardim a andejar por este mundo em noite de penitência.

Américo era um desses sujeitos destemidos, que não se sujeitavam a ninguém, nem a nada, nem mesmo a estripulias do além. Repetiu a indagação. Nada. O vulto permaneceu imóvel, como se tivesse sido colhido de surpresa. Américo Corcunda, então, não se fez de rogado.

Avançou ao encontro do vulto, de foice erguida. “Vou te cortar em miúdos”, disse. Naquilo, o vulto agigantou-se, pois parecia acocorado, como se esconder quisesse. Uma capa preta, como a capa dos maçones, de aço, como se dizia, abriu-se. O vulto grunhiu um grunhido dos infernos.

Partiu para cima de Américo, tomando-lhe a foice da mão e sacudindo-a longe. Américo estatelou-se no chão. Ergueu-se, num átimo. Deu uma mariscombona. O vulto saiu em disparada. O tio da zeladora puxou uma faca peixeira, que carregava à cintura. Correu atrás. Adiante, deparou-se com alguém. Era o carpinteiro Aderaldo, seu compadre, que morava nas cercanias. “Compadre, tu viu uma coisa correndo por aí”? Viu, sim. Na encruzilhada adiante. Tinha passado em desabalada carreira. Não deu para ver o que era, mas parecia coisa feia. Aderaldo contou-lhe o sucedido. “Então, será que Pedro Gregório voltou a envultar-se? Será que tá correndo sete freguesias”? Era possível.

Pedro Gregório era tido como um que virava bicho, lobisomem, desde que fora morador nas Trincheiras, para lá do Quebra Potes. De uns tempos para cá, desde que o velho cônego lhe sapecara água benta numa sexta-feira da Paixão, depois da procissão do Senhor Morto, ele não mais se envultara. Estaria de volta ao ofício de correr trechos, de assustar transeuntes desavisados?

Américo Corcunda e Aderaldo resolveram bater pernas, atrás do vulto. Se o mesmo seguiu pela encruzilhada de Maria de Doca, podia ter descido no rumo da Cruz do Soldado, local onde o lobisomem costumava ser visto, no caso, Pedro Gregório, nos velhos tempos.

Rumaram para lá. Bateram daqui e dali. Nada. Pela falação dos dois, outras pessoas foram se achegando. Logo, já era um batalhão de uns doze homens. Vasculharam o quanto puderam. Só acharam, na cerca de Totoinho de Zefa Gorda, um pedaço de capa, agarrado no arame.

Examinaram. Parecia ser de uma capa tipo Renner. Estava molhado. Ali perto tinha uma poça d’água. Chovera um pouco, no início da noite. Já passava das três da madrugada. Cansados, deixaram o vulto para lá. Não tardaria a alguém dar de frente com ele. Era quaresma. Tempo de bichos rondarem em aluadas penitências.

Na terça-feira, como aprazado, Aderaldo foi à casa paroquial para o conserto do telhado. Estendida num varal, estava uma capa tipo Renner. Curioso, o carpinteiro a examinou. Faltava um pedaço da barra. Estúpida consciência.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

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