domingo, 30 de janeiro de 2022

DESPREZANDO AS DIRETRIZES


  

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

   

O ato médico está embasado em dois pilares, o intelectivo, incapaz de ser padronizado, porque depende da capacidade cognitiva do profissional na tomada da decisão e o técnico que depende da formação, aperfeiçoamento e atualizações, podendo, portanto, ser regulado por diretrizes de prática clínica.

Estas constituem ferramenta importante, especialmente em uma área tão complexa e em rápida mudança como a da Covid-19, objetivando aperfeiçoar a qualidade do atendimento, baseada na melhor evidência disponível e reduzir a disparidade de condutas para o mesmo tipo de situação clínica.

A variante Ômicron do SARS-Cov-2, dotada de uma capacidade de transmissão incomparavelmente superior às demais, se alastrou, rapidamente, pelo território brasileiro, favorecida, sobretudo, pelo evidente relaxamento das medidas protetoras. Apesar de a maioria dos contaminados exibir sintomas leves a moderados, sendo alguns até assintomáticos, podendo se recuperar em ambiente domiciliar, alguns, particularmente aqueles mais idosos, os portadores de comorbidades, os imunocomprometidos e os não vacinados, podem desenvolver quadros graves, necessitando recorrer à internação hospitalar.

Vale reforçar que os indivíduos que receberam a imunização de reforço têm menor chance de apresentarem complicações graves e morte pela virose, do que aqueles que não a receberam. Portanto, a implementação apropriada de diretrizes constitui grande interesse para os prestadores de cuidados à saúde, para as organizações nacionais, para as associações profissionais, beneficiando a sociedade, como um todo.

A Comissão de Incorporação de Tecnologia ao Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão ligado ao Ministério da Saúde (MS), aprovou na primeira semana de dezembro de 2021, mediante relatório, as Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid-19, rejeitando o uso ambulatorial de medicamentos que compõem o “kit covid”, baseado em cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina para tratamento precoce da doença, pois não havia sido constatada evidência que mostrasse qualquer benefício clínico para tal fim.

Esta era, desde o começo, a posição do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que integra a citada Comissão. Vale lembrar que, em maio de 2020, o CNS recomendou ao governo a suspensão imediata das Orientações do MS para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19 e, em agosto do mesmo ano, recomendou à pasta da Saúde medidas para a garantia do abastecimento de cloroquina e hidroxicloroquina para os pacientes que fazem uso contínuo e imprescindível destes medicamentos para outros fins não relacionados à Covid-19.

Em Nota Técnica publicada no Diário Oficial da União de 21 de janeiro de 2022, assinada pelo chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, o MS rejeitou as diretrizes da Conitec, alegando "incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida".

Estranhamente, na Tabela-1da referida nota, consta que há demonstração de efetividade e de segurança, em estudos controlados e randomizados para o uso de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, o mesmo não ocorrendo com as vacinas!

O Colegiado de Professores Titulares da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) manifestou solidariedade ao Prof. Dr. Carlos Carvalho, que coordenou um seleto grupo de especialistas, representando diversas sociedades médicas e universidades e que resultou na elaboração das diretrizes para o tratamento da Covid-19, aprovada pela Conitec.

Na esteira desta interlocução, várias entidades médicas, como a Associação Médica Brasileira (AMB), também, têm emitido duros pronunciamentos, de repúdio à referida portaria do MS. Em carta aberta, em um site de petições on-line (https://chng.it/snJ8wZVQ), inúmeros pesquisadores, professores e profissionais de saúde pedem urgência na adoção das normas aprovadas em dois turnos pela Conitec, que barrariam o "kit covid". "Nos sentimos perplexos quando lemos a vasta lista de estultices apresentada pela nota técnica", diz o manifesto.

Fica a esperança que essa decisão seja revista, para evitar maiores prejuízos à saúde da população brasileira. Finalizo, citando o pastor estadunidense Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 29 de janeiro de 2022

MANHÃ DE SÁBADO


  

José Lima Santana*

 

 

Acordo, espreguiçando-me. Uma moleza no corpo...! Viro-me para o outro lado da cama. Há uns restos de sono prendendo-me os olhos. Não os quero abrir. Afinal, não tenho nada para fazer. É sábado. Hoje, não trabalho, nem marquei compromisso. Minha mãe já deve ter ido ao mercado. Detesto feira.

Estou solteiro, livre, leve e solto. De boas. Enjoei de andar por aí, galinhando. Há tempos, venho querendo tomar prumo. Farei trintão daqui a dois meses. Formado estou há seis anos. Não sei por que fui me meter nessa área. Se me esforçasse um pouco mais, no ensino médio, como agora se diz, eu teria feito direito ou, quem sabe, medicina.

Estaria a caminho da riqueza, como médico, ou da boa estabilidade financeira, numa carreira jurídica. Mas, embora empregado, ganhando pouco, ainda poderei dar-me bem, se for aprovado num concurso federal. Preciso estudar. Fazer um cursinho, desses de última hora, ou comprar aquelas apostilas horrorosas de banca de revista, nem pensar.

De um ou de ouro jeito, é perder dinheiro, tempo, e, claro, penar. Vou meter a cara nos livros. Banco Central, Receita Federal, uma coisa assim. Banco do Brasil ou Caixa Econômica já foram bons. Agora, não dá mais. Devem ser privatizados hoje ou amanhã. É, como dizem, a sanha dos neoliberais. Acho que todo mundo é neoliberal. Até minha mãe, que tem falado umas coisas esquisitas, direitona, mas ainda bate panelas sempre que ouve um baticum desse tipo.

Viro-me na cama mais uma vez. Acho que ainda dá para um cochilo. O soninho da manhã. Ainda são sete e meia. Tá cedo. Os olhos vão se fechando...

Quem bate à porta, uma hora dessas? “Mãe, é você”? Ai, meu Deus! Só são nove e quarenta. É sábado! Para que levantar agora? Tá tão bom aqui, no friozinho do ar-condicionado. É no que dá ser filho único, em casa. Sou ponta de rama. Minha irmã e meu irmão já se foram. Casaram antes dos trinta. E eu, sobrando. Vou sobrar por algum tempo.

Não tenho pressa. A única que quase me fisgou foi Rachel. Escapei por pouco. Até que me enrabichei por ela. Mas, eu só tinha dezoito. Namoramos por cinco anos. O namoro terminou pouco antes de me formar. Ela me flagrou galinhando com uma vizinha de Martinha, minha irmã.

Perdi uma e não ganhei a outra, que logo se mudou para Recife e, pelo que fiquei sabendo, está casada com um milico. De lá para cá, só tem caído na minha rede peixe miúdo. Quero dizer, ficantes. Uma atrás da outra. Não me ajeito com nenhuma. Não faço seguro de vida. Estou novo! Trinta, hoje, para um rapaz, é início da mocidade.

Martinha e João Luiz foram apressados. Estão aí, cada um com dois filhos, matando-se para pagar escola caríssima. Ela tem o marido, que ganha bem. Juiz. Mas, ele, coitado, vive arrebentado. Herdou a loja do papai, mas nesse tempo de pandemia, arrebentou-se todo. A mulher, uma santa mulher, vem dando conta da maior parte das despesas da família. Médica pediatra.

João Luiz e Célia namoraram desde pequenos. Um grude. Ele deixou a faculdade de engenharia para se dedicar ao comércio, após a morte do papai. Loja de material elétrico. Um bom ramo. Mas a pandemia... Esse vírus miserável entortou todo mundo. Eu mesmo fiquei um tempão sem beijar na boca. Não dava para arriscar. Talvez nem dê. Porém, a secura leva a gente para mares de absinto, como diz um amigo meu, metido a poeta. Aliás, tem muita gente metida a tudo, neste País.

“Já vou, mãe”! Ai, ai, ai, ai, ai! Lavar o carro da minha mãe. Todo sábado tenho essa penitência. Antes da pandemia, lavava no posto. Depois, ela não confiou mais. Sobrou para quem? Para euzinho! Tinha me esquecido desse compromisso, dessa sabatina. Minha mãe viuvou nova, antes dos cinqüenta. Agora, ela está com sessenta e dois.

Não se interessou por mais ninguém. Vive a dizer que marido, bastou um. Papai foi um bom marido. E um paizão. Era mais velho do que ela quase vinte anos. Estava virando solteirão, quando mamãe floresceu no jardim dele, como ele vivia a dizer e repetir. Papai adorava ler. Lia todos os poetas do mundo. Morreu na loja, sentado, fechando o caixa do dia. Quase morremos também. Todos nós.

Mamãe precisou tirar licença-prêmio do trabalho como professora da rede estadual. Foi, então, que João Luiz, assumiu a loja, que, na divisão dos bens, ficou para ele. Longe de mim, ser comerciante. Não tenho tino.

Viro-me na cama, uma última vez. Georgina, ex-colega da faculdade, deve chegar na terça-feira. Tivemos, há pouco, uns flertes. Não vou engatar namoro com ela, não. Ela está se jogando. É um pedação, mas estou de férias. Estou de recesso. Preciso de um tempo para mim. Estudar. Passar num concurso que valha a pena. Começar a engrenar de verdade.

Lá pelos quarenta deverei estar pronto para montar e manter família. Assim como está, a minha vida não está ruim. Eu, mamãe e Zenaide, a nossa secretária faz-tudo. Zenaide é solteira. Cinquentona. Vive nos pés do padre. Reza mil terços por dia. Ainda tem esperança de arranjar um troncho, como ela mesma diz, para se casar. “Mulher, baixe o facho!”, diz minha mãe, sorrindo.

Onde Zenaide vai arranjar um marido que aguente os mil terços dela? Vai nada! No segundo ou terceiro terço, ele pede divórcio. “A não ser que ele seja do terço dos homens”, diz dona Adelaide, a nossa querida matriarca, ou seja, minha mãe, que acabou de gritar por mim, mais uma vez. “Já vou”! Já vou nada.

Ainda vou tomar banho. O café tardio pode esperar um pouco mais. A lavagem do carro pode esperar também. Pensando nisso, a água está cara. A energia está cara, a gasolina está pela hora da morte. Tudo está caro. Onde a gente vai parar? Devo engatar namoro sério? Pensar em casar? Com o que eu ganho? E com essa carestia? Melhor é ficar aqui com mamãe e Zenaide dos mil terços.

Enfim, boto os pés fora da cama. Faço que rezo. Abro a cortina de uma das janelas. A claridade quer entrar. Então, abro a janela. Uau! Na casa de “seu” Abelardo, uma morena debruçada na janela enfeitiça a manhã, que alta vai. Quem será? A filha que mora no Rio? Deve ser. Não quero galinhar, mas se essa aí topar uma ida ao shopping ou a um barzinho, Georgina vai sobrar. Quem é capaz de enfeitiçar a manhã, merece uma chance.

“Vou tomar banho, mãe! Um instantinho só”. Adoro a água fria caindo sobre o meu corpo. Hum.... E aquela morenaça da janela? Água fria, gostosa... Água cara. Aquela morena! Eh, manhã de sábado...!


*Padre, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. 

RASGANDO AS DIRETRIZES


 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Dois pilares embasam o ato médico, o intelectivo, incapaz de ser padronizado, porque depende da capacidade cognitiva do profissional na tomada da decisão e o técnico que depende da formação, aperfeiçoamento e atualizações, podendo, portanto, ser regulado por diretrizes de prática clínica.

Estas constituem ferramenta importante, especialmente em uma área tão complexa e em rápida mudança como a da Covid-19, objetivando melhorar a qualidade do atendimento, baseado na melhor evidência disponível e reduzir a disparidade de condutas para o mesmo tipo de situação clínica.

Ressaltando que os efeitos do tsunami proporcionados pela variante Ômicron do SARS-Cov-2 têm sido registrados em todos os estados brasileiros, portanto a implementação apropriada das referidas diretrizes constitui grande interesse para a sociedade, como um todo.

A Comissão de Incorporação de Tecnologia ao Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão ligado ao Ministério da Saúde (MS), aprovou na primeira semana de dezembro de 2021, mediante relatório, as Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid-19, rejeitando o uso ambulatorial de medicamentos que compõem o “kit covid”, baseado em cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina para tratamento precoce da doença, pois não há evidência que mostre qualquer benefício clínico.

Esta era, desde o começo, a posição do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que integra a citada Comissão. Vale lembrar que, em maio de 2020, o CNS recomendou ao governo a suspensão imediata das Orientações do MS para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19 e, em agosto do mesmo ano, recomendou à pasta da Saúde medidas para a garantia do abastecimento de cloroquina e hidroxicloroquina para os pacientes que fazem uso contínuo e imprescindível destes medicamentos para outros fins não relacionados à Covid-19.

Em Nota Técnica publicada no Diário Oficial da União de 21 de janeiro de 2022, assinada pelo chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, o MS rejeitou as diretrizes da Conitec, alegando "incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida".

Estranhamente, na Tabela-1da referida nota, consta que há demonstração de efetividade e de segurança, em estudos controlados e randomizados para o uso de hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, o mesmo não ocorrendo com as vacinas!

O Colegiado de Professores Titulares da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), vários especialistas e entidades médicas, como a Associação Médica Brasileira (AMB), têm emitido manifestações duras, de repúdio à referida portaria do MS. Fica a esperança que esta decisão seja revista, para evitar maiores prejuízos à saúde da população brasileira. Finalizo, citando o pastor estadunidense, Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

ANTÔNNIO GOIS E OS LÍDERES NA ESCOLA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Anísio Teixeira viajou para os Estados Unidos da América pela primeira vez em 1927. A partir daquela viagem se aproximou da Universidade Colúmbia, em Nova York, lócus a no qual desenvolveu parte importante dos estudos que o transformaram num dos nomes da maior relevância da Educação brasileira.

Quando Anísio viajou para Colúmbia, Gilberto Freyre de lá já havia regressado com tese defendida e título de doutor, orientado pelo festejado antropólogo Franz Boas. A tradição inaugurada por Freyre e por Teixeira fez com que muitos brasileiros ao longo do século XX e nos primeiros anos deste século XXI buscassem dialogar com estudos realizados a partir da Universidade Colúmbia.

O Brasil sempre esteve na pauta de reflexões dos pesquisadores daquela instituição. Muitos investigadores brasileiros dedicados a Educação lançaram o olhar sobre os processos de estudos e o pensamento difundido a partir da celebrada Universidade Colúmbia.  

Nos primeiros anos do século XXI são muito importantes os estudos realizados pela pesquisadora Mirian Jorge Warde acerca da interlocução estabelecida em Colúmbia por Anísio Teixeira e outros intelectuais da Educação brasileira durante a primeira metade do século XX, em face dos estudos realizados por John Dewey e da incorporação que aquele norte-americano fez das reflexões filosóficas de William James.

Acabo de me deparar com outro importante estudo a respeito da Educação brasileira realizado na Universidade Colúmbia, evidentemente com um outro viés de abordagem e outros objetivos. Neste final de semana concluí a leitura do livro LÍDERES NA ESCOLA: O QUE FAZEM BONS DIRETORES E DIRETORAS E COMO OS MELHORES SISTEMAS EDUCACIONAIS DO MUNDO OS SELECIONAM, FORMAM E APOIAM.

O trabalho tem a assinatura de Antônio Gois, jornalista especializado em Educação que, desde 1996, pesquisa e escreve sobre Educação brasileira. Bolsista da Spencer Education Journalism Fellowship, Gois trabalhou durante dois anos baseado na Universidade Columbia, estudando os problemas de gestão escolar em seis países: Brasil, México, Chile, Canadá, Singapura e Estados Unidos.

Os resultados de tais estudos foram apresentados no livro publicado em 2020 pela Editora Moderna, sob o patrocínio da Fundação Santillana, com prefácio de André Lázaro. Fundador e primeiro presidente da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), Antônio Gois é, indiscutivelmente, o mais importante dentre os jornalistas brasileiros dedicados ao tema.

Neste livro aqui apresentado, Gois discute em 13 capítulos o papel que exerce em diferentes países o diretor de escola na condição de líder, mostrando o que fazem, como fazem, como são formados e que tipo de suporte institucional recebem para que consigam a contento cumprir o papel que o exercício da função impõe.

O autor, como bom jornalista que é, extrai parte expressiva do conteúdo trabalhado entrevistando mulheres que cumprem diferentes papéis como diretoras escolares, professoras, mães, pesquisadoras e coordenadoras de centros de formação. Ao fazê-lo demonstra que questões como pobreza e desigualdade impactam elevadamente a escola pública brasileira, mas também continuam a ser problemas presentes mesmo em sistemas escolares como o da cidade de Nova York e outras periferias urbanas dos países analisados.

A boa formação acadêmica que possui leva Gois a não secundarizar o relevante papel da pesquisa científica realizada no ambiente universitário. Assim, os seus estudos estão ancorados em bibliografia atualizada e de elevada qualidade, oferecendo o suporte teórico necessário aos que desejam maior aprofundamento.

Dentre outras conclusões acerca das quais devemos refletir, Antônio Gois chama a atenção para a indissociabilidade existente quanto aos processos de formação dos dirigentes escolares e os seus nexos com remuneração e outras formas de reconhecimento profissional e social. As soluções criativas são importantes, mas insuficientes enquanto o Brasil não adotar sistemas de suporte institucional eficazes.

A leitura vale a pena e é muito relevante para todos que costumam lançar o olhar sobre a escola.

 

 

*Jornalista, professor universitário, doutor em Educação, presidente da Academia Sergipana de Educação e membro da Academia Sergipana de Letras.

domingo, 23 de janeiro de 2022

RECORDE DE INFECÇÕES


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

As primeiras semanas de 2022 têm sido marcadas por uma subida vertiginosa do número de pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Este fenômeno mundial, provavelmente, decorre da conjunção de alguns fatores, tais como: desigualdade no acesso às vacinas; hesitação vacinal influenciada por ações de negacionistas, que usam todos os recursos disponíveis para enaltecer efeitos indesejáveis dos imunizantes, embasados, sobretudo em pseudociência; surgimento de variantes que, eventualmente, escapam dos anticorpos induzidos pelas vacinas; aglomerações registradas nas comemorações do Natal e do Ano Novo e, o evidente relaxamento das medidas sabidamente protetoras como o uso de máscaras e a higienização das mãos.

A cepa Ômicron do SARS-Cov-2, graças à sua transmissibilidade invejável, já domina o cenário da infecção, mundo afora. Embora tenha tido um comportamento mais benigno que as anteriores, a referida variante tem provocado considerável incremento de internações hospitalares.

Vale ressaltar, também, que estamos vivenciando um surto inusitado de infecção causada pelo subtipo “H3N2 Darwin” do vírus influenza. Esta Gripe, assim como a Covid-19, não é uma “gripezinha” e se manifesta mediante sintomas respiratórios clássicos, associados a intenso mal-estar, sendo mais perigosa em idosos, crianças e portadores de comorbidades. As autoridades competentes acreditam que este surto fora de época, decorra, sobretudo, da baixa adesão à vacina de gripe.

A concomitância de infecções altamente contagiosas, no momento em que, nitidamente, segmentos expressivos da população baixaram a guarda contra o novo coronavírus, tem resultado em superlotação dos serviços de urgência de várias cidades brasileiras. Este fato tem preocupado muito os gestores de saúde, principalmente os que não esqueceram o pesadelo do colapso do sistema, ocorrido na vigência da segunda onda da Covid-19.

No meio de tanto ataque viral, existem, ainda, aqueles que são aquinhoados com as duas viroses simultaneamente, popularmente batizada de “Flurona”, onde “flu” se refere ao vírus da gripe e “rona” ao coronavírus.

Segundo editorial, recentemente publicado no periódico JAMA (doi:10.1001/jama.2021.23726), a evolução e a epidemiologia do SARS-CoV-2 não foram previsíveis, portanto, é importante estar preparado para responder, com vacinas e doses de reforço, conforme necessário, bem como com estratégias de mitigação não vacinais, para ajudar a reduzir a transmissão do vírus, e a morbimortalidade por Covid-19.

Estranhamente, muitos incentivam, negativamente, a implementação das referidas condutas, em defesa da “liberdade individual”, mesmo sabendo que tais práticas podem comprometer a saúde coletiva. Finalizo, citando o ínclito Ruy Barbosa: “A liberdade não é um luxo dos tempos de bonança; é, sobretudo, o maior elemento de estabilidade das instituições”.

 

 

*Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

A RAINHA DAS RUMBEIRAS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Pedro Amâncio de Zé Bindó começou a construir a casa, na qual esperava morar com Maria Zilda de Rosinha de Honório. Namoravam há dois anos. Ele era guarda- sanitário, antigo posto que, na Prefeitura, zelava pela ambiência sanitária da municipalidade. Cuidava das vacinas, quando era época delas. Corria as feiras para verificar a condição dos alimentos à venda. Visitava quintais e pocilgas. Fiscalizava ruas e becos, atrás de monturos e sujidades. Enfim, não tinha descanso. Era ativo e prestativo.

Terreno comprado e pago em três prestações ao futuro sogro, Honório de Sianinha, ele mesmo deu formas ao projeto de construção. Casa de quatro águas, avarandada, com ampla sala de estar, copa e cozinha, banheiro social, três quartos, sendo um suíte, um luxo naquele tempo e naquele lugar. Poucos ricaços tinham tal luxo.

Pedro Amâncio era caprichoso. O parco salário da Prefeitura era acrescido com a venda de roupas masculinas, calças de brim Coringa e camisas, compradas em Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco, para onde viajava uma vez a cada dois meses. Era girento. Logo, logo, botaria casa de comércio.

De sua vez, Maria Zilda era professora da rede estadual, ensinando na Escola Isolada nº 5. Tirara o curso de professora no Colégio das Freiras, em Chapadão das Embiras. Aplicada, dava gosto ver a sua sala de aula e o modo como procurava desasnar os meninos, a maioria de cabeça dura. Tratava-os com carinho. Pouco fazia uso da palmatória ou da régua. Só num ou noutro caso e por extrema necessidade.

Ela e Pedro Amâncio faziam um belo par, formavam um casal de encher os olhos. As duas famílias ansiavam pelo casório deles. Os amigos, a cidade, por assim dizer. Tudo conspirava a favor dos dois jovens.

O estimado guarda-sanitário não era dado a folias. Nunca ingeria bebidas alcoólicas. Suas diversões eram jogar gamão e ir ao cinema, nos dias em que o Cine Alvorada passava fitas. Na quinta, um policial. No sábado, um drama, repetido no domingo, e que os espectadores chamavam “filme de amor”. Às segundas-feiras, era o ápice das projeções: um espadachim ou um bangue-bangue, para delírio dos aficionados.

Maria Zilda gostava de ir ao cinema aos sábados. O namorado quase não perdia sessão. Além do gamão e do cinema, ele gostava das apresentações circenses, quando por lá baixava um circo. Para Pedro Amâncio, desde menino, os palhaços eram a maior diversão. Não gostava dos trapezistas. Agoniava-se com os saltos mortais, nas alturas. Maria Zilda adorava-os.

Também caiam no gosto do rapaz as peripécias das rumbeiras. Algumas de boa figura, outras decaídas. Mas, de todo modo, as rumbeiras faziam a algazarra dos homens e até, nalguns casos, causavam ciúmes às mulheres, casadas, noivas ou namoradas. Os olhares dos homens para elas não agradavam às mulheres. Visões interioranas.

Na cidade, em setembro, mês da festa da Padroeira, aportou o Circo Mágico Trianon. Afamadíssimo, que as pessoas de Soledade esperavam há tempos, pois já tinha se apresentado na cidade vizinha e rival, Casa Caiada. O desfile inaugural do circo foi deslumbrante. Palhaços fazendo estripulias, rumbeiras na carroceria de uma caminhonete, jogando beijinhos para as pessoas, um motoqueiro do globo da morte, anões, animais (cavalos montados por cowboys, como no cinema, chimpanzés, um elefante, dois leões), um mágico a caráter com sua partner, um apresentador com casaca de veludo, trapezistas, malabaristas e muito mais. O carro de som com dez bocas de alto-falantes abria o cortejo colorido. Foguetório. “Isto, sim, é um circo de verdade!”, gritou Marcolino de Chico Timbaúba. A cidade entrou em alvoroço.

A noite de estreia foi um sucesso retumbante. Sexta-feira. Algodão doce, pipoca, maçã do amor e outras guloseimas foram varridas pelo público. Nos camarotes, mais caros, as famílias gradas. Santo Deus! Por gradas, entenda-se “endinheiradas”, mas nem sempre gradas de verdade. Nas cadeiras repletas, poucos homens, muitas mulheres e crianças. No poleiro, como se chamava a arquibancada, a plebe, mas, também, muitos maridos das mulheres assentadas nas cadeiras.

A turba urrava a cada perna levantada pelas rumbeiras. Em todo circo era a mesma velhacaria. Todas as apresentações eram saudadas com estrepitosas salvas de palmas. Tudo no melhor requinte. O mágico, dono do circo, era um caso à parte. Fazia demonstrações de alucinar o público. Todavia, o píncaro do espetáculo foi a “Rainha das Rumbeiras”, filha do dono do circo, cujo nome era o mesmo daquela que tinha os “lábios de mel” e os “cabelos mais negros como as asas da graúna”. Iracema...! Era de entortar e endoidecer qualquer cristão. Quantos pecados solitários naquela primeira noite, e em todas as outras, não foram cometidos!

Pedro Amâncio e Maria Zilda estiveram na primeira fila das cadeiras. A professora cutucou o namorado umas quantas vezes. Ele, como muitos, de beiço caído na apresentação da “Rainha das Rumbeiras”. Desassossego. De Pedro Amâncio, de João de Duca, de Américo Porto, de Dimas de Malaquias e de tantos quantos foram ao espetáculo circense. Noite para jamais esquecer. Iracema para sempre lembrar.

Foram quinze dias de estadia na cidade. O Circo Mágico Trianon deveria ter ficado ali para sempre. Para que ir-se embora? Para o desespero de muitos marmanjos. Pedro Amâncio deu para ficar macambúzio. Deu para ouvir o doce nome de Iracema tangido pelo farfalhar das palhas das bananeiras ao sussurrar do vento, nas tardes em que, após o almoço, armava a rede no oitão da casa. “Iracema...! Iracema...!”.

Não era o vento, era a voz de um diabinho soprando nos ouvidos do guarda-sanitário. O diabinho tentador. Ah, ele existia, sim! “Iracema...! Iracema...!”. Numa daquelas tardes, após o almoço, Pedro Amâncio teve febre. Adoeceu. Caiu de cama. O Dr. Milton foi chamado. Não encontrou causa físico-biológica para o mal que afligia o prestimoso servidor público municipal. “O problema é psicológico”, vaticinou.

Passaram-se os dias. A muito custo, a febre cedeu. Deu no pé. Muitos foram os delírios. Maria Zilda soube pela irmã do namorado, Doralice, que, às vezes, delirando, ele balbuciava o nome da “Rainha das Rumbeiras”. Ela achou normal. Muitos homens balbuciaram aquele nome: Iracema! Parecia constrangedor, mas era, enfim, coisas de homens, alucinações passageiras.

Um ano e meio depois que o Circo Mágico Trianon passou por Soledade, Pedro Amâncio e Maria Zilda deram-se em matrimônio. Disseram as más línguas, informadas não se sabia por quem, que na noite de núpcias, tendo a amada em seus braços, o diligente guarda-sanitário, murmurou, incontáveis vezes, o nome da “Rainha das Rumbeiras”: “Iracema...! Iracema...! Iracema...!”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

domingo, 16 de janeiro de 2022

MAIS UMA VEZ, O CURSO DE DIREITO DA UFS


 

 

José Lima Santana*

 

 

Estudei Direito na Universidade Federal de Sergipe, entre 1977 e 1980. Naquele tempo, a duração do curso era de quatro anos. Era pouco tempo. A minha turma se formou em 26 de dezembro de 1980. Formatura unificada, após a Missa no dia 8 daquele mês, como era a tradição do nosso curso. Missa na igreja de São José, outra tradição do curso. Celebrante, o padre Raimundo Cruz, que era, então, pároco em minha terra natal, a capital de todas as galáxias, Nossa Senhora das Dores. Não sou eu que o digo. É o universo que assim conspira.

No exame da OAB, realizado em fevereiro de 1981, que era individualizado em cada Seccional, logrei o primeiro lugar, recebendo, como prêmio, uma caneta com a seguinte legenda “José Lima Santana. Oferta da OAB”. Ainda a tenho.

O curso da Faculdade de Direito de Sergipe sempre foi respeitado, desde o seu início, na década de 1950. E assim continuou, ao passar para a Universidade Federal de Sergipe, com a sua fundação, em 1968.

Voltei ao curso de Direito, ao Departamento como passou a chamar-se a velha Faculdade (aliás, nunca gostei dessa mudança de nomenclatura), em 1996, como professor substituto de Direito Administrativo e, no ano seguinte, como professor efetivo, após lograr êxito no concurso para professor de Introdução do Estudo do Direito. Era um sonho: poder ensinar onde aprendi. E ensinar para poder continuar aprendendo.

Nos últimos anos, os alunos do curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe têm alcançado boas colocações no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, após a unificação, inclusive já tendo obtido a primeira colocação nacional mais de uma vez. Agora, vem de alcançar o quarto lugar, ficando atrás apenas dos alunos da Fundação Getúlio Vargas – Rio, Universidade de São Paulo – USP e da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

Isso é formidável para o nosso pequenino Estado. É fenomenal para o nosso curso de Direito, em face dos nossos professores e dos nossos alunos, especialmente. Quarto lugar, no geral, terceiro lugar entre as públicas e segundo lugar entre as federais. Primeiríssimo no Nordeste.

As dez primeiras posições no referido exame foram ocupadas por uma instituição privada, a FGV, e nove públicas, sendo duas estaduais, a USP e a UNESP, e as demais, ou seja, sete, federais.

Conversando com o reitor da UFS, professor Valter Joviniano de Santana Filho, fui informado que, mais uma vez, este ano vamos receber o Selo “OAB Recomenda”, único curso de Direito de Sergipe a ganhar este Selo e a ganhar em todas as suas edições. Ainda vemos o sucesso dos nossos alunos, ganhando espaço nas diversas carreiras jurídicas pelo País afora.

Há, no Brasil, muito mais cursos de Direito do que, por exemplo, nos Estados Unidos da América e, por consequência, muito mais alunos estudando Direito. Uma febre. Nem sempre a preparação desses alunos é apreciável. Deixa-se muito a desejar, nalguns casos. E, agora, com a autorização para se ministrar Direito à distância, o que poderemos esperar? Aguardemos.

Os cursos de Direito, de um modo geral, precisam, por melhores que alguns possam parecer – e, deveras, o são – melhorar cada vez mais. Nós professores precisamos nos adequar às situações novas que o Direito precisa enfrentar, na teoria e na prática. Os discentes também precisam mergulhar com mais afinco nos estudos, aprofundando-se na doutrina bem concebida, em suas variadas vertentes teóricas, e procurando ater-se cuidadosamente à jurisprudência, que, a bem da verdade, tem causado solavancos no ordenamento jurídico pátrio. Atentar também para as mudanças legislativas, que desfiguram ou aprimoram o sistema jurídico.

O legalismo ainda vigora nas academias. É preciso cuidado. Não se deve descuidar da legitimidade. Nesse sentido, e no rastro da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, disse o professor Arnaldo Vasconcelos, da Universidade Federal do Ceará, onde cursei o mestrado, que o Direito deve ser jurídico (fato, valor e norma), justo e legítimo. Legitimidade. Eis o que, muitas vezes, nos falta.

Nestes tempos, bicudos, por assim dizer, em que todo mundo parece querer se apresentar como jurista, até mesmo sem nada entender de Direito, sem ter conhecimento do ordenamento jurídico e de como ele deve funcionar, mas, também, quando vemos, por vezes, juízes e tribunais tomarem decisões não bem compreendidas pelo mundo jurídico, será necessário que cada Poder se atenha ao que, constitucionalmente, lhe compete.

No Brasil, ao longo dos tempos republicanos, nem tão republicanos assim, nalguns momentos, tem-se verificado uma queda de braço entre os Poderes. O autoritarismo gritante se faz sentir em vários estamentos e em diversos instantes. Além do autoritarismo, vê-se aflorar cada vez mais a chamada (permitam-me!) “porra-louquice” de alguns, em diversos setores da vida pública brasileira.

Mas, deixando de lado as digressões, retorno ao curso de Direito da UFS e, mais de perto, aos nossos alunos, que continuam brilhando ao prestar o exame da OAB. Como professor, fico entusiasmado com os resultados obtidos pelos pupilos, ao longo dos anos. Que assim continuem. Por eles próprios, por nós professores, pela UFS, por Sergipe.

Por fim, digo aos nossos alunos: obrigado por vocês serem como são. Estudiosos. Continuem a nos orgulhar. A engrandecer o nosso Estado, berço do maior gênio do Direito brasileiro oitocentista: Tobias Barreto.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

ATÉ QUE ENFIM


  

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

A variante Ômicron, do SARS-Cov-2, dotada de invejável capacidade de alastramento, já produziu 50 mutações identificadas, sendo a maioria localizada na proteína “Spike” (a “chave” para entrada do vírus no hospedeiro). Na última semana, observou-se uma explosão de novos casos de Covid-19, em inúmeras cidades brasileiras, favorecida, indiscutivelmente, pelas comemorações de fim de ano. Todavia, a sua letalidade não tem sido alarmante, provavelmente, pela benéfica interferência da vacina.

Mesmo após a autorização pela conceituada agência reguladora brasileira, ANVISA, a vacinação contra a Covid-19 em crianças de 5 a 11 anos de idade, precisou passar por uma enquete pública pela Internet e uma audiência na sede do Ministério da Saúde, para ser inserida no Programa Nacional de Imunização (PNI).

Segundo os especialistas, este aparente zelo serviu, apenas, para retardar a imunização dos integrantes da referida faixa etária, que logo iniciarão o ano letivo de 2022. Por outro lado, a vacinação de crianças e adolescentes avança nos Estados Unidos e na Europa, impulsionada pelas recomendações do CDC (Centers for Disease Control and Prevention) americano e pelos equivalentes gestores de saúde europeus.

Vale ressaltar que, estudos como o recém-publicado no prestigiado periódico, New England Journal of Medicine (DOI: 10.1056/NEJMoa2116298), atestam que a vacinação contra o novo coronavírus é segura, imunogênica e eficaz, naqueles a partir de cinco anos de idade.

No contexto da controvérsia, é importante diferenciar a decisão clínica da populacional. A primeira é regida pelo raciocínio individual, que leva em conta a relação do risco/benefício. Por outro lado, este pensamento é inadequado do ponto de vista populacional, quando a intervenção em um, beneficia outros, podendo favorecer toda a comunidade. As polêmicas com relação às vacinas tendem a provocar resistência ao processo de imunização, promovendo, grande prejuízo social.

Cabe aos gestores da saúde visar, sempre, o bem coletivo e não se deixarem contaminar pelo espírito dos negacionistas que se valem de pseudociência para provocar dúvida na população e prejudicar o andamento da vacinação em detrimento da apologia ao não comprovado tratamento precoce.

Finalizo, citando o grande pensador sergipano, Tobias Barreto: “Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo / E surdo ao brado do universo inteiro... / De dúvidas cruéis prisioneiro, / Tomba por terra o pensamento altivo”.

 

*Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

sábado, 8 de janeiro de 2022

A PRISÃO DE JOÃO DE DODOCA


   

José Lima Santana*

 

 

Marmeleiro Grande sempre foi uma cidadezinha pacata, salvo nas festas dos Santos Reis, quando muita gente das vizinhanças acorria aos festejos. Aí, a calma ia-se embora. Cavalos e carroças de boi ou de burro se amontoavam nas ruas e becos. Automóveis naquele tempo eram poucos. A cidade se espichava, crescia, tomava volume de cidade de bom porte.

Depois do dia 6 de janeiro, a leseira voltava. O padre Agostinho, que tinha nome de santo, era também um santo. Velhinho, voz baixa, mas congregando em si todo o respeito do mundo. Até os políticos, muitos deles velhacos em suas promessas quase nunca cumpridas diante do povo, o respeitavam muito. “Estou aqui para morrer, um dia”, dizia.

As festas dos Santos Reis eram caprichadas. As da igreja e as do povo festeiro. Os ternos de Reis eram comentados pelo mundo afora. Vinha até gente da cidade grande, como repórteres de rádios e de jornais. Dona Miúda, toda embatocada de pó ruge dava entrevistas. Era a dona da festa. Herdou da mãe, que herdou da avó, a brincadeira do terno de Reis.

Na Rua do Melão, Sá Josefina do finado Zacarias de Alfredo Gordo abria mesa, jogava búzios, fazia adivinhações. Tinha lá de seu também muito respeito de quem a procurava para as mezinhas e coisas que tais. Uns diziam que ela tinha sabedoria dada por Deus. Outros juravam de pés juntos que ela tinha partes com o demo. Ignorância de uns ou de outros? De todos? Ia-se saber.

A casa de Sá Josefina parecia uma delegacia de cidade de gente briguenta: lotada de dia e de noite. Ela aviava garrafadas, quando não as preparava com infusão de todo tipo de ervas, folhas e cascas de paus. Consultava os búzios, amarrava maridos ou namorados, trazia-os de volta, quando na rampa já se encontravam.

Amélia de João de Dodoca procurou Sá Josefina numa tardezinha de sábado, logo depois das festas dos Santos Reis. Andava a pobre mulher preocupada com o marido, João de Dodoca. Este tinha virado a pá. Deu para se misturar com umas companhias suspeitas, uns sujeitos das bandas do Caitité, que já tinham comido cana pesada. Falava-se, em Marmeleiro Grande, que os tais eram da erva maldita e do pó. “Nossa Senhora do Desterro, desterrai esses malfeitores pra longe de João”, rezava Amélia.

O sargento Belisário deu de dar umas incertas para cima de João de Dodoca, sem sucesso, todavia. O policial tinha certeza, como disse ao cabo Aniceto, que João estava malocado em coisa graúda. Logo, logo, ele cairia. “Num tardo a botar a mão!”. O sargento não costumava errar nos prognósticos.

Sá Josefina atendeu Amélia com a costumeira presteza. Percebeu a agonia da mulher de João de Dodoca e deu-lhe a beber um chá de flor de maracujá. Um santíssimo remédio para os nervos. A visitante acalmou-se. Queria ver o que os búzios tinham a dizer sobre o marido.

A vidente chacoalhou os búzios e os fez rolar. Franziu a testa. Olhou com dureza para Amélia. Deixou escapar um leve suspiro. A mulher de João de Dodoca voltou a agoniar-se. “Qé qui foi, Sá Josefina? Coisa ruim?”, indagou Amélia. O olhar da advinha fez-se ainda mais duro. Amélia estremeceu. “Valei-me, meu São Jorge Guerreiro!”.

Um estrondo sacudiu a casa. Outro mais forte. Outros de menor força. Mais alguns. Desde antes do meio-dia, o mormaço já espalhava muito calor. Trovoada à vista. Os trovões continuaram. Relâmpagos cortavam o espaço. Um estrondo muito maior. Pingos de chuva. Sá Josefina levantou-se e cobriu com um pano o espelho da sala. A chuva desceu em grossos pingos. Quase um dilúvio. A rua foi tomada pelas águas. De valeta a valeta, um pequeno riacho se formou.

Amélia temia as trovoadas. Tinha mais medo dos trovões do que dos relâmpagos. “Trovão num faz medo a ninguém, sua tonta”, dizia-lhe sua mãe, no tempo de menina. Mas, ela continuava com medo dos estrondos dos céus.

E o que os búzios disseram? Sá Josefina, enfim, disse que João de Dodoca seria preso em breve. Amélia teve um chilique. Arreou-se na cadeira. Deu lá nela uma tremedeira, um estremelique. E foi acudida. Um dente de alho nos buracos das ventas. Ela tomou cor de si. Chorou.

Então, o que ela tanto temia estava para acontecer. O marido preso, apanhando de palmatória para delatar os comparsas, levando banho de salmoura fétida dos aloques da salgadeira de João Coruja, como o sargento Belisário gostava de fazer com os presos. Ela tinha que dar um jeito. Tinha que falar com João, para ele se afastar das más companhias. “Quem com porcos se mistura, farelo come”. Iria para casa, chamar o marido às falas. Deixasse a chuva passar. E os trovões.

Quando chegou em casa, já passava da hora da Ave-Maria. Amélia foi, primeiro, cuidar do café da noite. Um cuscuz recheado com queijo de coalho e coco ralado, para comer com carne de sol assada na brasa. A carne já tinha sido posta de molho, para tirar um pouco do sal. No fogão a lenha, o braseiro fumegava.

Mais logo, João haveria de chegar. O cuco da sala bateu sete, oito horas. Nada do marido. Amélia, ainda que fastiosa naquela noite, comeu um pouco do cuscuz com carne e uma tigela de café moído em casa. A previsão da prisão a agoniava, mais do que agoniada andava.

O cuco bateu dez horas. Nada. Ao badalar das dez e meia, alguém bateu à porta. Era João. Amélia não se conteve. Foi logo dizendo o que ouvira da boca de Sá Josefina. Zangou-se o marido. Disse despautérios contra a adivinha. “Amanhã, vou ter com ela. Vou fazer aquela bexiguenta engolir o que disse de mim”. Amélia apavorou-se. Arranjara uma encrenca.

Amélia não dormiu naquela noite. João de Dodoca, do seu lado, roncou e roncou.

Ao amanhecer, nem café quis tomar. Sob os rogos da mulher, para que não fosse ter com Sá Josefina, partiu de rua abaixo. Foi bater à porta da advinha. Disse-lhe mil e um desaforos. Até partiu para a agressão, agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a. Mais, ele não fez. Nem precisava. Não tardou para Amélia ser informada que o sargento Belisário tinha prendido o marido pela agressão a Sá Josefina.

E assim, a previsão dos búzios cumpriu-se em cheio. “Sá Josefina nunca erra”, disse Percílio de Mané Cospe Fogo.

 

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

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