sexta-feira, 26 de março de 2021

O FACÍNORA


  

José Lima Santana*

 

 

Ribeirão dos Porcos. Ah, nome amaldiçoado da moléstia! Mas, era, enfim, o nome do lugarejo onde o cabo Amintas e o soldado Edésio foram dar naquele fim de tarde. Andavam à procura de um facínora, alcunhado por Mula Manca. O nome certo, ninguém sabia. Ele puxava de uma perna, a esquerda. Um tiro, talvez. Ou uma coisa qualquer. Podia ser de nascença.

O certo era que o sujeito tinha bofes ruins. Devia ser aparentado com o próprio demo, pelas malvadezas que fazia. Roubos, assassinatos, estupros. Matou homens, mulheres e crianças. Uma folha desgraçadamente grande, entupida de tantas perversidades. A polícia o procurava no Estado inteiro. Dizia-se que até a polícia baiana ansiava em pôr as mãos no celerado.

O cabo Amintas era destemido. Estivera por duas vezes em fogo cerrado contra Lampião. Recebera a fita de cabo por ter dado conta de matar dois cangaceiros. Esperava chegar a sargento. Queria casar com Rosinha de Sá Josefa do Mulungú, todo engalanado. Poderia fazer uma bela carreira na Polícia. De sargento a suboficial e, quem sabia, daí por diante. Era o quinto homem da família a assentar praça, ele e quatro primos. Mas, o primeiro a chegar a cabo.

Dois morreram combatendo os cangaceiros. Um deixou a Briosa, para seguir carreira no serviço público federal, como agente da Estação Experimental do Algodão. E dois foram expulsos da Força Pública por se rebelarem contra um tenente e um capitão. Esqueceram-se da disciplina e da hierarquia.

O soldado Edésio era casado. Pai de um filhinho de um ano e dois meses, com o segundo no bucho da esposa. Uma temeridade aumentar a família assim tão depressa, com o soldo miserável que recebia. Porém, a mulher era modista, costurava roupas femininas, e muito bem.

Ajudava no sustento da casa. Ele formava par com o cabo há seis meses. Afinaram-se desde o início da parceria. Confiavam um no outro. Sonhava em ser cabo. Para ele, estaria de bom tamanho. Ajudaria o cabo a subir de posto, para ficar com a sua fita, caso os superiores assim mesmo entendessem. Um subiria, arrastando o outro. Cabo Edésio. O seu pai, cego dos dois olhos, ficaria ainda mais orgulhoso do filho militar.

O sol deu sinais de recolher-se. Tingiu o céu de cores vivas. Revoadas de pássaros tomavam o rumo dos seus ninhos. Bichos noturnos despertavam para dar início à noitada. As escassas e mirradas flores da caatinga deixavam-se balançar pelo vento passageiro, na espera de, com mais um pouco, recolher gotículas do orvalho em suas corolas.

Um aboio dorido ecoou nalgum lugar, por perto. Ouviu-se o tilintar de um chocalho. A seguir, outros chocalhos tocaram a mesma música. O sol baixou um pouco mais no horizonte. As Ave Marias estavam chegando.

O cabo e o soldado descobriram-se. Quepes nas mãos, persignaram-se. Que a Virgem velasse por eles. Aquele lugarejo não tinha boa fama. Diziam, na cidade, que o diabo andou por ali, há muito tempo. Um velho beato, no fim do século, passando com destino à Bahia, no delírio de restaurar a Monarquia, pregou uma santa-missão e expulsou uma legião de demônios do corpo de uma moça.

Os entes malditos apossaram-se de um bando de porcos. Os bichos caíram na ribanceira do ribeirão sem nome conhecido, que passou a se chamar Ribeirão dos Porcos, dando nome também ao lugarejo que ali se formou, na margem direita de quem estava a montante.

A boca da noite lutava para engolir os últimos esperneios do sol. Um caboclo de enxada ao ombro cumprimentou os policiais, tirando o chapéu de palha em pedaços: “Boas noites”. Os dois, como autômatos, tocaram nos quepes, sem palavras. O arruado apareceu, depois de uma curva, à frente das duas autoridades.

Os cavalos estavam estropiados. Careciam de comida e descanso. Precisariam de um lugar para passar a noite. As noites sertanejas costumavam ser frias, naquela época do ano, que prenunciava o inverno. Uma mulher passou por eles com um pote na cabeça, apressada, indo para casa. Entrou na primeira casa do povoado, afastada das demais. Um menino a esperava no batente da porta. Ela o puxou pelo braço e bateu a porta. Soldados metiam medo nas pessoas. Os cangaceiros também. Eram vistos como iguais. Seres perversos, na compreensão de muita gente.

O cabo Amintas tomou do fuzil. Engatilhou, colocando-o atravessado sobre o arção da sela. O soldado fez o mesmo com o parabelum. Nunca se sabia o que viria pela frente. Portas e janelas foram fechadas. Um velho descamisado permaneceu no terreiro, amolando uma faca. Olhou para os dois. Cuspiu de lado.

Os dois policiais manobraram as montarias em direção ao velho, que permaneceu atento ao que fazia. “Boa noite, meu tio”. Sem olhar, o velho grunhiu uma resposta. “O senhor indica um lugar onde a gente possa se arranchar por esta noite?”. Só então, ele levantou o olhar. “Lugar, aqui, de rancho, tem não, sinhô. Se servir, tem ali aquele telheiro, que é de guardar a carroça e capim pro burro. É o que se pode arrumar”.

Um minúsculo telheiro. Já era alguma coisa. Ao menos, não estariam de todo ao relento. Servia. “Agradecido”. O velho entrou em casa. Bateu a porta. O cabo e o soldado riram. Povinho desconfiado. Mas, tinha lá suas razões. Sofria-se com os cangaceiros. Sofria-se com as Volantes, muitas das quais superavam os bandidos em maldades.

Amintas e Edésio se revezariam em guarda. Não podiam correr riscos. A notícia da presença deles, ali, já estava correndo trecho. Antes da meia-noite, a presença deles já seria sabida em torno de algumas léguas. Na caatinga, a invisível rede de comunicação era mais ligeira que o telégrafo.

A lua quarto-crescente subiu no céu. Os olhos de Deus miravam os homens. Milhares, milhões de olhos. O céu estrelado nas noites do sertão era uma belezura. Um ventinho rasteiro arrastava garranchos, zoando em sussurros. O friozinho catingueiro arrepiava os pelos das ventas.

Por trás do telheiro estava a ribanceira, aquela dos porcos endemoniados. O lugar era lúgubre. O soldado tiraria o primeiro turno da guarda. Até a meia-noite. O cabo Amintas cochilava. A seguir, garrou no sono. Logo, roncava. Um barulho de coisa ruim parecia vir da ribanceira.

O soldado deu conta da medalhinha de Nosso Senhor Crucificado, que o padre Bento, seu padrinho, lhe dera. Beijou-a. Pôs-se de pé, arma na mão. “O Senhor Jesus é minha luz. E o meu corpo é fechado contra bala, faca, o diabo”. Ouviu grunhidos atrozes. Um labafero danado. Repetiu os dizeres benditos. Silêncio. Absoluto silêncio.

De repente, um grito diabólico. O cabo acordou, meio atordoado. Um demônio, vindo das profundezas dos infernos, saltou na frente dos policiais. Um estampido seco. A faísca do tiro enfeitou o ar, como um vagalume. Um baque. O cabo Amintas levantou com o fuzil na mão. “Tudo bem, cabo. Eu não erro tiro”.

Aproximaram-se do vulto caído. O soldado bateu o bingo. Colocou a mão contra o vento, para proteger a pequena chama. Alumiou o demônio. Era Mula Manca, o facínora. Ferido, tentava se mexer, revólver na mão. Uma noite para matar ou morrer.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito  da  Universidade  Federal de Sergipe, membro  da  Academia   Sergipana   de  Letras,  Academia   Sergipana   de   Letras  Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de   Educação   e  do  Instituto  Histórico  e Geográfico de Sergipe.

quinta-feira, 25 de março de 2021

SOBRE A REALIDADE DAS COISAS


  

 

José Fernandes de Lima*

 

 

Ao sermos colocados diante de certos fenômenos naturais, somos provocados para descobrir se tais coisas são reais ou não.

Uma forma abreviada de buscar essa solução é aquela definida nos dicionários quando afirmam que realidade é tudo que existe e que nós consideramos existentes aquelas coisas que podem ser percebidas pelos nossos sentidos.

Isso corresponde dizer que a caneta com que estou escrevendo é real porque pode ser detectada pelos meus sentidos, o barulho do automóvel, a luz proveniente da lâmpada e o cheiro do café também são reais porque podem ser detectados pelos meus sentidos.

O aparato sensorial de cada pessoa pode traduzir de formas diferentes os estímulos recebidos do exterior, de modo a permitir que pessoas diferentes tenham percepções distintas sobre os mesmos estímulos recebidos. A nossa percepção pode não identificar o mundo exterior exatamente como ele é na realidade e sim da forma como é traduzido pelos nossos sentidos. Esse fato, porém, não altera a realidade dos objetos que deram origem aos estímulos.

Em geral, a realidade é mais complexa do que nós podemos perceber a olho nu. Há situações nas quais os nossos sentidos apresentam limitações para detectar as coisas. Por isso, quando falamos em constatar com os nossos sentidos, estamos considerando também a possibilidade do uso de instrumentos capazes de ampliar os mesmos, como é o caso do microscópio, que nos permite enxergar objetos muito pequenos e o caso do telescópio, que nos permite ver objetos muito distantes. O que nos autoriza fazer uso desses instrumentos para dizer se uma coisa existe ou não é o fato de conhecermos o seu funcionamento.

A realidade adotada pela ciência é mais ampla do que aquela que constatamos diretamente com os instrumentos. Inclui também coisas que nós ainda não temos capacidade de detectar e compreender.

Quando os nossos sentidos, mesmo auxiliados por instrumentos, não são capazes de decidir se uma coisa é real ou não, nós adotamos o recurso do modelo.

Diante da impossibilidade de medir ou de verificar diretamente, nós criamos o modelo do que poderia estar acontecendo e efetuamos testes para ver se as coisas acontecem como previsto pelo modelo. Imaginamos o que poderia estar acontecendo e em seguida verificamos se acontece na prática. O modelo pode ser um desenho, uma imagem, um simples cálculo matemático ou uma grande simulação computacional.

Imaginamos o modelo e predizemos o que teríamos de ver com os nossos sentidos se o modelo estiver correto e, por último, verificamos se as predições estão certas ou erradas. Se estiverem certas, a nossa confiança de que o modelo representa a realidade aumenta. Se as previsões falharem, nós rejeitamos o modelo ou modificamos o mesmo e fazemos novas tentativas.

É essa metodologia que permite a contínua ampliação do conhecimento. Em outras palavras, o fato de determinadas coisas serem hoje desconhecidas não significa que não possam vir a ser compreendidas no futuro.

Antes de prosseguirmos, aproveito para informar que o tema trazido acima está tratado com maestria no livro de Richard Dawkins, denominado A Magia da Realidade, que recomendo fortemente.

Há pessoas que, diante de coisas desconhecidas, preferem apelar para as explicações sobrenaturais. As explicações sobrenaturais são incisivas e não admitem contestação. Dizer que uma coisa é sobrenatural é mais do que dizer que ela não tem explicação, equivale a dizer que tal explicação jamais acontecerá.

Essa pode não ser a melhor opção, porque muitas coisas que no passado foram atribuídas ao sobrenatural, hoje, têm explicações científicas que podemos compreender e nas quais podemos confiar.

O modelo de raciocínio utilizado pelos cientistas para definição da realidade não é o único possível, mas foi através dele que nós obtivemos um grande avanço do conhecimento.

Além de facilitar a ampliação dos conhecimentos, a prática de confrontar as nossas primeiras impressões com a realidade dos fatos pode ser recomendada para melhorar o relacionamento das pessoas e para evitar muitas discussões sem propósito que verificamos nas redes sociais.

 

 

*Físico, doutor em Física, educador, presidente da Associação Sergipana de Ciência e membro da Academia Sergipana de Educação.

quarta-feira, 24 de março de 2021

JOGO DE AZAR


 

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

O País foi inundado pela nefasta segunda onda da Covid-19, dizimando vidas em um crescente sem precedentes. A variante brasileira, conhecida como P1, aliada ao moroso programa de vacinação e, ainda, à não adesão das medidas efetivas de segurança, por muitos, provavelmente justifiquem a situação calamitosa que vivenciamos.

A principal certeza desta doença é a incerteza da sua evolução. Aprendemos que existe um grupo de risco para desfecho desfavorável, composto pelos idosos e os portadores de comorbidades. Porém, tem sido registrado, a ocorrência de casos de indivíduos jovens, muitos dos quais atletas e sem doença aparente, que são penalizados com internações demoradas em unidades de terapia intensiva e, até, com desfecho letal.

Assim, poderíamos comparar o futuro daqueles acometidos pelo referido vírus, com o de uma loteria. Os contemplados com o bilhete um, que constitui quase 80%, vão ser assintomáticos ou apresentarão sintomas leves, não requerendo internação hospitalar. Sabemos que muitos desses “sortudos” não adquirem imunidade duradoura e, ainda é incerto, se não sofrerão consequências futuras.

Já os aquinhoados com o bilhete dois, 15% dos pacientes, geralmente exibem manifestações moderadas, com sinais clínicos de pneumonia, mas com saturação de oxigênio (O2), no sangue periférico, maior do que 90% em ar ambiente, requerendo, às vezes, internação em enfermaria e suplementação de O2, via cateter nasal, sem, todavia, recorrer a tratamentos intensivos.

Por outro lado, os 5% azarados, que receberam o bilhete três desta impiedosa doença, vão passar por um verdadeiro calvário, necessitando de UTI, muitas vezes de intubação endotraqueal, podendo apresentar as formas críticas, com falência respiratória, choque cardiovascular e insuficiência renal e/ou hepática agudas, algumas vezes, irreversível.

Fica patente que o mais sensato é evitar, de todas as formas, a traiçoeira loteria da Covid-19, porque, por mais sadio que seja o jogador, como em todo jogo de azar, a sorte pode não estar ao seu lado. Ressalte-se, ainda, que, até o momento, não existe comprovação científica de tratamento precoce para esta mazela, embora insensatamente defendido por alguns.

Só nos resta continuar insistindo com as eficazes medidas de distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos enquanto aguardamos que o vírus deixe de circular, quando a maioria da população for, efetivamente, vacinada.

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação - @prof.dr.sousa

 

 

sábado, 20 de março de 2021

NAS MÃOS DE DEUS

                                              Ricardo Sobral de Sousa

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Apesar de a Covid-19 continuar avançando, impiedosamente, Brasil a fora, agora com cepas mais transmissíveis, muitos, ainda, continuam menosprezando o seu potencial e violam, escancaradamente, as normas de segurança, fazendo com que o vírus continue circulando.

Na primeira semana de dezembro passado, nosso irmão mais novo, Ricardo, passou a apresentar os sintomas da temível doença: coriza, perda do olfato e paladar, mialgia sem dispneia. Ao final da primeira semana, evoluiu para a fase inflamatória da virose, com acometimento pulmonar, inicialmente < de 25% e, decorridos três dias, aproximadamente 40% do órgão já estava tomado pela enfermidade, sendo necessário internamento hospitalar, troca do antibiótico, iniciado corticoterapia e fisioterapia respiratória.

A despeito dessas condutas, continuava apresentando febre e queda da saturação de oxigênio. Uma nova tomografia, realizada no dia 18 de dezembro, evidenciava comprometimento de aproximadamente 70% dos pulmões, necessitando, portanto, de transferência para a UTI, ensejando um panorama dramático no qual o pensamento se emaranha.

Lá, apesar de assessorado por uma equipe multidisciplinar invejável, continuou piorando do quadro clínico, aumentando, geometricamente, a minha angústia e a de nossa família e a de amigos. Na véspera do Natal, pela manhã, foi tomada a decisão, com a participação lúcida e corajosa, do próprio Ricardo, de proceder à intubação endotraqueal para o necessário suporte ventilatório mecânico.

Por pertencer ao grupo de risco desta impiedosa mazela, fiquei privado do contato próximo ao meu irmão, revivendo o pesadelo que passara com o internamento da minha querida filha, Nathália. Portanto, mais uma vez, precisei de mãos que, para mim, se estenderam.

Assim, uma legião de profissionais vocacionados, competentes, humanos e extremamente dedicados, composta pelos esculápios, Almiro, Roberta, José Augusto, Thiago, Jerônimo, Liana, Márcia, Alcides, dentre outros, assessorados por enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e técnicos de diversas áreas assumiram a linha de frente do tratamento intensivo.

Na retaguarda, pude desfrutar do apoio, incondicional de experientes colegas, como Gilson Feitosa, Bosco Rocha, Ângela Silva e Fabrício, além dos irmãos José Eduardo e Luís Alberto e da prima Ana Carla, também médicos. Trocávamos, diariamente, informações sobre os exames complementares e a evolução clínica de Ricardo.

Na madrugada de 31 de dezembro, fui surpreendido pela dramática notícia de que ele havia sofrido uma parada cardíaca de seis minutos. Após alguns minutos de pânico, imaginando que o pior teria acontecido ou, que, caso sobrevivesse, poderia ficar com sequelas perenes, resolvi me inteirar do acontecido e, apesar de a equipe de plantão ter conduzido o caso de forma exemplar, acionei os “anjos da guarda” que responderam, prontamente. Ao se inteirar do acontecido, Prof. Gilson Feitosa se manifestou, com uma frase, que até hoje reverbera em minha mente inquieta: “Nas mãos de Deus”! 

Os dias que se seguiram, continuaram turbulentos, propiciados por esta enigmática e avassaladora doença sistêmica, que não poupa órgãos, em sua trajetória. Todavia, os competentes profissionais de saúde conseguiram, com maestria e comedimento, ajudar Ricardo a ser desospitalizado quase 60 dias após o seu internamento.

Nesta empreitada, além do espírito guerreiro, herdado do nosso pai, José Carlos, ele contou, também, com os incentivos, incansáveis da sua esposa, Sônia, e de uma imensurável corrente de orações e de pensamentos positivos.

Passada esta verdadeira via crucis, com ele de volta ao trabalho e já dando chutes em bola, não tenho dúvida de que o seu desfecho favorável, deveu-se às “mãos de Deus”!

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
 

sexta-feira, 19 de março de 2021

O DESTINO DE PITUXA


  

 

José Lima Santana*

 

 

O destino de Pituxa parecia estar selado. A carta que sua mãe estava enviando à filha mais velha, em São Paulo, acabara de ser entregue no balcão da agência dos Correios, em Matão de Dentro. Pituxa nunca gostou da irmã mais velha como gostava das outras duas, todas mais velhas do que ela.

Glorinha, a mais velha, agora paulistana de moradia, costumava dar beliscões em Pituxa por qualquer coisa. Ela era muito severa com as irmãs, e seis anos mais velha do que a segunda. Do que Pituxa, dez anos. Morar com ela, logo em São Paulo? Nem pensar. “Vou não, nem que a vaca tussa”.

O pai, Jerome, assim pronunciado por quase todos, estava do lado da filha, apesar de tudo. Para ele, valia mais o querer da filha, o que ela pensava da vida, o que ela cultivava no coração e no juízo. Coração e juízo de gente eram temas para merecer estudos de grandolas do saber. Quem?

Turcão da farmácia, leitor de almanaques, Zé Bebelo zelador voluntário da biblioteca paroquial, o padre Almiro Fontes, um erudito, as professoras Miralda e Maria das Graças, e mais ninguém. Nem mesmo Dona Joquinha, antiga professora, mas, tão acanhada na leitura...

A cidade era pobre em gente letrada, capaz de desenganchar coisas grandes, como coração e juízo de gente. Os homens só pensavam em bois e capim. As mulheres, no geral, em cuidar da casa. Poucas eram as exceções.

Dona Carolina, mulher de Jerônimo de Maneca Tortinho e mãe de Pituxa, estava de cabeça feita. Viraria céus e terras para botar no quengo do marido atoleimado, fazedor dos gostos das filhas, que a vida de Pituxa não tinha mais cabimento ali, em Matão de Dentro.

Ela, como mãe, não aguentaria os desaforos da vizinhança, e, enfim, de toda a molecada da cidade. Pituxa, e, por conseguinte, a família, estavam na boca do povo, no olho do mundo. Ali, era assim: um deslize, por menor que fosse, era capaz de acabar com a honra e a vida das pessoas.

Exatamente, por causa das línguas ferinas, que aumentavam os fatos, fazendo de um graveto um trono de baraúna. A imprudência de Pituxa a faria amargar o exílio forçado. Em São Paulo, no cabresto da irmã Glorinha, Pituxa haveria de corrigir-se. Glorinha não tinha piedade de ninguém. Era dura, seca como uma cacimba sem água, nos verões tórridos daquela região sertaneja, onde o diabo se recusou a passar.

A patuleia rasgava o nome de Pituxa, ladeira abaixo, ladeira acima. Até na zona, imaginem só, na zona, no Beco da Vadiagem, onde mulher de bem jamais se atrevia a passar, falavam de Pituxa. E quem? As rampeiras. Uma vergonha! Uma agonia a minar o coração de Dona Carolina, igrejeira de xale e ladainhas.

Pituxa tinha dezoito anos. Faltavam, então, três anos para obter a maioridade civil. Estava, assim, debaixo do tacão do pátrio poder a ser exercido pelo pai, “seu” Jerome. Era ele quem deveria decidir o destino da filha. Mas, a mãe era quem, deveras, mandava e desmandava em casa.

Era a voz de galo. Imperiosa, retinha em si todo o autoritarismo da família Souza Montes do agreste pernambucano. Gente malvada que só! Como “seu” Jerome foi se arranchar naquela família é história longa de se contar. Fica para outra ocasião, se der na telha ao sofrível autor.

Na tarde em que Dona Carolina postou a carta para Glorinha, ali mesmo nos Correios, Demócrito de Joãozinho Olho de Vidro, chefe da agência, fez uma pergunta descarada, envolta em mentirosa inocência: “Dona Carolina, como vão “seu” Jerome e a menina Pituxa”? Então, ela, a mulher e mãe que ali estava postando uma carta para a filha mais velha, não compreendeu o alcance da maliciosa pergunta? Ela não era trouxa. Sabia muito bem assuntar.

O maldito, que tinha uma filha perdida dentro de casa, embuchada e tudo, cujo favo de mel fora lambido por Teixeirinha de Sabino da Cobra D’Água, um perdido, desassossegador de famílias, metido a valentão, mas que se cagou todo diante de Juarez Mulato, num leilão, na porta da bodega de Ciro Corno, não perguntou pelas outras filhas. Perguntou apenas por Pituxa, botando o pai no meio, para disfarçar. Cabra safado! A sua filha não estava destampada como a dele. Era outra situação, bem diferente.

A mãe de Pituxa olhou bem no fundo dos olhos do chefe dos Correios, encobertos por óculos do tipo fundo de garrafa, e respondeu: “Na minha casa, “seu” Demócrito, não tem gente vadia. Jerônimo e as minhas filhas estão na lide. Cada um no seu quê-fazer. Na nossa família não se cria gente para a vadiagem, nem para enlamear a casa”.

O chefe dos Correios engoliu um seco. Riu um risinho amarelo e passou o troco de Dona Carolina, que saiu sem cumprimentos. “Sujeito safado!”, grunhiu, entre os dentes, a mãe de Pituxa, que quase tropeçou ao descer os dois degraus que separavam a agência da calçada.

Passando na loja de Fulgêncio Limoeiro, sujeitinho atarracado como um toco de amarrar jegue, mas gente da maior finura, Dona Carolina deu uma olhada numas malas. Pituxa iria precisar de uma, além da que tinha em casa. Perguntou o preço. Não estava caro. Voltaria amanhã.

Fulgêncio insistiu para que ela levasse a mala. Pagaria depois. “Não, ‘seu’ Fulgêncio! Carolina Souza Montes de Alvarenga Costa não compra fiado, nem para pagar um dia depois. Amanhã, eu voltarei para buscar a mala. Por favor, o senhor queira guardar para mim”. Saiu.

O que uma filha de miolo frouxo não era capaz de fazer! Antes tivesse fugido com um rapaz descompromissado, um que se aproveitasse, se ali tivesse algum. Ao menos, seria possível fazer-se o casamento, para que tudo se arrumasse. Era dolorido, mas podia acontecer com qualquer uma. Mas, aquilo? Não, não e não!

Dona Carolina não suportava. Ainda que Jerome botasse panos quentes, tentasse amaciar o problema, ela empurraria Pituxa para o cabresto de Glorinha. Em São Paulo, nas garras da irmã mais velha, ela arranjaria um emprego e, mais tarde, um casamento. Podia até fazer um casamentão.

Afinal, de beleza Pituxa era bem servida. Era, sem favor, a moça mais bonita dali. Mais do que as outras irmãs. Mais do que qualquer outra da cidade. Indo embora, ela não acabaria servindo para o bico de um dos rapazes mocorongos dali, pois eram todos iguais. Uns brutos, que não mereciam colher tão bela flor.

Então, não se lembrava de Mocinha, filha de ‘seu” Gomes da padaria? Pobre Dona Conceição! Teve que amargar ver a filha Dodoca nos braços de um moleque de ponta de rua, como Sebinho de Maria Rosa do finado Zé Cotia. Posses, a família dele tinha. Mas, Sebinho era um tipo a ser vomitado. Bateu na boca três vezes. “Que Deus me perdoe”!

Pituxa, quisesse ou não, tomaria o rumo de São Paulo. Os leitores, a essa altura, devem estar curiosos, para saber qual foi o deslize de Pituxa. Gravíssimo, para Dona Carolina. Numa festinha entre amigas, e somente entre amigas, Pituxa bebeu cerveja e fumou cigarros. Dançou, sozinha, arrancando fora a blusa.

O fato vazou. Correu trecho. Um escândalo, para uma moça de família, em pleno 1955. Matão de Dentro era Matão de Dentro.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

NOVA TAREFA PARA OS CIENTISTAS


  

 

José Fernandes de Lima*      

 

 

O fato de estarmos vivendo num mundo rodeado de tecnologias que impactam nossa vida diária faz com que o interesse da sociedade pelas descobertas cientificas aumente. Mesmo encontrando dificuldades para compreender determinados fenômenos, a população segue curiosa a respeito das grandes descobertas científicas, notadamente quando essas notícias são divulgadas na grande mídia.

Os cientistas acreditam que quanto mais pessoas conhecerem a ciência, melhor será para todos. Eles estão convencidos que o conhecimento é um instrumento a favor da justiça, da prosperidade e da vida.

A comunicação científica consiste na divulgação de resultados científicos entre pares, ou seja, de um cientista para outros cientistas. A linguagem utilizada nessas comunicações é, na maioria das vezes, uma linguagem sofisticada e de difícil acesso para as pessoas comuns.

A divulgação científica, por sua vez, é a transformação desses textos e dessas informações mais complexas em textos mais simples, acessíveis à população, sem, com isso, desprezar a profundidade e a qualidade das evidências.

Algumas invenções mudaram a forma como a sociedade tem acesso ao conhecimento.  Isso aconteceu com o surgimento da imprensa escrita, com o rádio, com a TV, com a popularização do acesso ao computador e está acontecendo com o advento da internet. Essas tecnologias permitiram que o conhecimento que originalmente era privilégio de um grupo limitado de especialistas chegasse ao público não especializado. No caso da internet, essa ampliação do público está sendo feita de forma ainda mais significativa.

O conhecimento científico, tradicionalmente divulgado através dos periódicos científicos, passou a conviver com outras formas de comunicação e informação que vão além das formas tradicionais. Passou a atingir o público não especializado. A internet está forçando o diálogo entre a ciência formal e as pessoas comuns, fazendo com que os escritos tradicionais circulem com mais facilidade, inclusive de acordo com o interesse de cada um, legitimado por quem acessa as redes sociais.

O crescimento do número de sites de divulgação individual e institucional aumentou significativamente a troca de informações entre as pessoas e essa ampliação impactou também a circulação dos temas científicos.

Atualmente, verificamos uma verdadeira explosão do número de canais que tratam de temas científicos. O preocupante é que os comandantes desses canais nem sempre dominam os assuntos tratados e não raras vezes divulgam informações incorretas.

Esse fato acende um alerta e requer dos cientistas uma nova postura intelectual, exige que eles se disponham a conversar com o público não especializado e adaptem o seu linguajar. A comunicação científica precisa mudar e adquirir um jeito mais próximo daquele utilizado pela divulgação científica.

Os cientistas estão, aos poucos, se convencendo de que necessitam falar mais com as pessoas e explicar um pouco mais, em linguagem comum, as atividades que desenvolvem. Muitas vezes, os termos utilizados pelos cientistas são complicados, são desconhecidos do cidadão comum, o que torna certas explicações incompreensíveis. Faz-se necessária uma espécie de tradução para a linguagem comum.

A adaptação da linguagem é, em geral, feita pelos jornalistas adeptos do que chamamos jornalismo científico. Em muitos casos, os próprios jornalistas têm dificuldades de entender os conceitos e a comunicação resulta menos eficiente do que a desejada. Por esses motivos, os pesquisadores têm sido chamados a ampliar a interação direta com a população no sentido de fazer com que os conceitos científicos sejam melhor comunicados.

Em geral, os cientistas são mais reclusos e gostam pouco da exposição pública, mas o aumento da demanda por parte da sociedade está fazendo com que alguns deles se disponham a sair do conforto de seus laboratórios para participar do debate popular. Alguns mecanismos tais como podcasts, canais no Youtube e no Facebook têm sido criados e há a expectativa de que outros possam surgir.

Mesmo considerando que os cientistas nem sempre são bons comunicadores, é muito importante que eles falem publicamente sobre os temas científicos, para evitar que os espaços dessas explicações sejam preenchidos por pessoas que não detêm os conhecimentos necessários e haja a propagação de informações erradas que podem resultar em prejuízo para a sociedade.  

A presença dos cientistas nas novas mídias eletrônicas deve ser estimulada como uma forma de trazer informações mais precisas e de proporcionar o equilíbrio necessário à discussão.

Nesse mundo cheio de notícias falsificadas, no qual as pessoas confundem fatos com opiniões, evidências com suposições, é importantíssimo podermos contar com informações fidedignas, mesmo que essas informações requeiram um esforço maior para sua compreensão.

Por isso, devemos encorajar os cientistas para que saiam da zona de conforto dos seus grupos de pesquisa e venham nos ajudar a compreender esse mundo complexo que nos cerca.

 

 

*Físico e Educador. Membro da Academia Sergipana de Educação e presidente da Associação Sergipana de Ciência.

sábado, 13 de março de 2021

A SAÚDE DE NOSSO ESTADO NAS MÃOS DE MULHERES COMPETENTES

                                              Mércia Feitosa

 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Praticamente todo o País foi inundado pela nefasta segunda onda da Covid-19, provocando afogamento do sistema de saúde na maioria das cidades e dizimando vidas preciosas, em um crescente sem precedentes. O surgimento da variante brasileira do Sars-cov-2, conhecida como P1, muito mais eficaz na sua transmissão, aliada ao moroso programa de vacinação, chancelado pelo governo federal e, ainda, à não adesão das medidas efetivas de segurança, por parcela significativa da nossa população, provavelmente justifiquem a situação calamitosa que vivenciamos.

Absurdo é, também, depois de tantas conquistas no campo das ciências, depois da implementação de inúmeros procedimentos de diagnóstico e de tratamento das mais diversas patologias e depois de tantos medicamentos, eficazes, no tratamento e na prevenção de várias patologias, ver-se ferido e menosprezado o paradigma da Medicina que é o de “escolher o melhor caminho”, embasado cientificamente, considerando-se as particularidades clínicas, as preferências do enfermo e as disponibilidades do local. Neste sentido, alguns, insensatamente, propagam a utilização, não comprovada cientificamente, de tratamento precoce da Covid-19, baseado em Cloroquina, Ivermectina, Azitromicina e complexos vitamínicos.

O momento em que vivemos está a exigir de nossos dirigentes esforço conjugado, vontade resoluta, mentalidade sadia, espírito forte e audacioso para vencer este inimigo versátil e traiçoeiro, que ora nos aflige, sem ódios e paixões, embasados nos princípios democráticos, cujas raízes históricas foram plantadas nos mais recuados tempos da civilização helênica, sobrevivendo às transmutações dos séculos.

E o determinismo histórico, por força do seu capricho invencível, delegou-nos, a nós, sergipanos, o privilégio de contarmos com a presença feminina na direção de peças-chave da saúde pública de nosso Estado:  Mércia Feitosa (secretária de Saúde do Estado); Waneska Barbosa (secretária de Saúde de Aracaju); Márcia Guimarães (diretora do Hospital de Cirurgia, um dos maiores do nosso estado) e Ângela Silva (superintendente do Hospital Universitário-UFS).

Ressalte-se, ainda, que, atualmente, a professora Valéria Barreto vem conduzindo, com galhardia, o maior Departamento da UFS, o de Medicina. Estas abnegadas e diligentes profissionais de saúde, além dos encargos inerentes à condição de mulher, problemas outros, que transcendem os limites do interesse individual, têm exigido delas o máximo de coragem e desprendimento, num verdadeiro desafio aos sentimentos cívicos. As suas missões têm sido, deveras, espinhosas.

O Brasil de agora, reclama por um sistema de saúde igualitário, que não deixe desamparada quase 80% da população, que não têm acesso à eficiente medicina privada. Glória, pois, àqueles intimoratos profissionais que, num rasgo de sublime inspiração, dedicam-se, também, ao atendimento dos dependentes do SUS, convocados que foram, na resplandescência do seu fascínio para o nobre trabalho.

Neste momento difícil, tributo as mais sinceras homenagens às Mulheres, sobretudo às que estão na linha de frente da batalha insana contra o poderoso novo coronavírus. A Sociedade está a dever-lhe a admiração, o reconhecimento e a mais sincera gratidão. Seja-me também permitido, cumprimentar Dorinha, Nathália, Gisela e Maria, a quem devo os cânticos e as palmas do meu viver! Salve o Dia Internacional da Mulher!

 

 

* Prof. Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.
 

sexta-feira, 12 de março de 2021

OS SEISCENTOS


  

 

José Lima Santana*

 

 

Seiscentos. Esse foi o número exato. Francisquinho de Maria de Terto e Jugurta de Fenelon bacamarteiro contaram tudo bem direitinho. Estavam todos lá, estendidos no chão. O sangue escorrendo como água numa bica. Era uma manhã de sol ardente, daquelas manhãs ensolaradas do verãozão de começo de ano.

E naquela manhã, já meio andada, o sol tinia e parecia ter descido um pouco mais, despejando faíscas sobre a caatinga. Não custava nada para tudo pegar fogo, como aconteceu em 1941, quando a caatinga do Boqueirão de Cima ao Sítio do Pau Torto virou uma coivara só. Foram precisos dez anos para que tudo se regenerasse por completo, e, ainda, assim, olhando bem, restaram umas falhas nisso ou naquilo.

Naquele ano, 1962, as brigas políticas entre o partido de Marcão do Sapé-Mirim e Bernardo de Chico Pintado prometiam matanças e mais matanças. Terra de gente agoniada, pronta para, por um pequeno senão, por menorzinho que fosse, fazer um fogaréu com as armas.

As brigas políticas vinham dos tempos do Império, dos embelecos entre pebas e cabaús, adentrando na República, quando os barões decaídos se tornaram coronéis de patente comprada, herança da Monarquia dos dois Pedro, pai e filho, um raparigueiro escancarado e o outro bem mais comedido.

Na capital, embora as eleições estivessem longe, cerca de nove meses, falava-se aos cochichos, que haveria uma grande traição no partido situacionista. Alguns próceres desse agrupamento tendiam a bandear-se para a oposição, que pretendia retomar as rédeas do poder estadual, após tê-las perdido, mediante falcatruas, segundo alegavam, oito anos antes.

Cupinchas mais alterados dos dois lados prometiam arrancar as tripas uns dos outros. Aguardava-se um banho de sangue. Até a Polícia estava, há muito, dividida. De soldados a coronéis, todos tinham o seu lado. Havia, pois, no Estado, duas polícias.

Raimundão de Geraldinho da Malhada Nova, cabra de bofes mais quentes do que forja de ferreiro, caiu na besteira de meter-se com uma viúva de família contrária ao seu pai. Um cunhado da dita cuja, Tenório, irmão do falecido marido, este tocaiado após uma discussão numa noitada de forró, na casa de Belmiro Rosca Frouxa, alardeou que mataria Raimundão, caso ele continuasse se enxerindo para a viúva, Madalena do finado Procópio, esse o nome da sujeita.

Por seu lado, Raimundão, na bodega de Juca de Manezito, estando o salão mais cheio de homens do que o mercado da cidade em dia de feira, tomou duas lapadas de milone, engarrafado há sete dias, azeitado, daquela pinga que gerava cuspe grosso, atirado ao pé do balcão como uma cagada de pato, bem espalhada, e ali estando um primo de Tenório, falou com voz de trombone: “Num sei vivê ameaçado. Antes de baixar os sete palmos, eu meto nêgo lá dentro”.

Recado dado, recado passado. A partir dali todos esperavam um morticínio. Se um morresse, outros morreriam. Era assim. Brigas de famílias. Sangue quente de cada lado. Ranços de valentias chamuscadas. Armas de prontidão. Sempre.

A provocação de Tenório de Severino do Alecrim e a imediata resposta de Raimundão ocorreram uns meses antes da queda dos seiscentos, naquela manhã de verão. Houve outros estardalhaços de parte a parte. Pólvora seca perto de fogo. Armas lubrificadas. Dedos nervosos. Copos cheios d’água, rentes, faltando uma gota para transbordar.

A família de Tenório votava com Marcão do Sapé-Mirim. E a de Raimundão com Bernardo de Chico Pintado, cujo partido amargava estar de baixo há oito anos, no Estado e no Município. Os ânimos acirravam-se mais e mais, a cada dia.

Se, ali, a polícia estava de um lado, o juiz de direito estava do outro. Mantinha-se, assim, um equilíbrio. Todavia, a cangibrina estava prestes a provocar queimores em muitos buchos. O padre Maurício Pontes Madeira, que, na surdina, também tinha lá a sua preferência política, andava preocupado com os boatos que cresciam.

Uns forasteiros tinham chegado à casa de Bernardo de Chico Pintado e foram homiziados na fazenda deste. Dizia-se na cidade que eram pistoleiros vindos de outro Estado. Carnificina à vista. O padre foi entender-se com o juiz, mas este desconversou, deixou o dito pelo não dito, não restando ao padre outra coisa, senão rezar. Que Jesus Misericordioso, padroeiro do lugar, tivesse misericórdia de toda daquela gente de bofes ruins.

Uma desgraça nunca vinha sozinha. Como se não bastasse o indevido arrastar de asas de Raimundão pela viúva, eis que, na festa de Natal, na Praça da Matriz, um neto dos Pintados foi flagrado de conversa com uma afilhada de Marcão do Sapé-Mirim, por este criada.

Estavam debaixo de um oitizeiro, lugar de pouca claridade, a poucos metros da Matriz. De conversê no escuro, era moça perdida. Ora, ia-se ver! Um neto de Chico Pintado misturar-se com uma molequinha da casa de Marcão, que nem da família era? E, se fosse, seria ainda pior.

Um Pintado juntar os cacarecos com gente da laia do Sapé-Mirim, nem que a Virgem Maria segurasse nas mãos dos dois. Nem assim! Nem que a noite virasse dia e o dia virasse noite. Já tinha gente, de fora das duas famílias adversárias, que antevia o riacho de sangue encharcando as ruas de Marimbondo. Exagerava-se? Seriam dezenas, centenas de mortes.

Daquela vez, o juiz e o padre juntaram-se para ajustar a situação. Encontrados debaixo de uma árvore, na quase escuridão, para os dois só tinha um caminho: o casamento. Ou a moça ficaria falada. O rapaz tinha dezoito anos e a moça, dezesseis. Eram menores púberes. Precisariam de autorização. A afilhada de Marcão, órfã de pai e mãe, era herdeira de um bem avaliado cabedal.

O rapaz se disse satisfeito com o casamento, mesmo que a família fosse do contra. Moço de opinião. Nisso, provava ser um Pintado. E com um cabedal à vista... Depois de muito disse-me-disse, choro da mãe do rapaz, berros de toda a família, ânimos, enfim, serenados, sabia Deus a qual custo, o casamento foi feito. As brigas ficariam para mais adiante.

Naquele início de fevereiro, uma imensidão de caititus invadiu as terras de Marimbondo. Era uma vara enorme. Devastavam tudo que podiam. Além do mais, alguns foram detectados com a doença da raiva. Um perigo. Não se sabia de onde tinham vindo. Os donos de propriedades rurais se uniram contra os invasores. Até os do Sapé-Mirim entenderam-se com os Pintados. Declararam guerra aos caititus.

O juiz, diante da calamidade causada pelos porcos-do-mato, não teve alternativa: atendeu a um pedido da Prefeitura Municipal, autorizando o abate dos intrusos. Naquela manhã da contagem de Francisquinho de Maria de Terto e de Jugurta de Fenelon bacamarteiro, dois grupos de caititus foram cercados. Seiscentos foram abatidos. Uns poucos escaparam. Alívio para a comunidade.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

quarta-feira, 10 de março de 2021

CIÊNCIA E QUALIDADE DA EDUCAÇÃO BÁSICA


  

 

José Fernandes de Lima*

 

 

A sociedade brasileira tem cobrado a ampliação de investimentos para melhoria da educação, notadamente nas etapas do Ensino Fundamental e Ensino Médio. É comum ouvirmos dizer que as escolas necessitam motivar os estudantes e oferecer aprendizagens que sejam significativas para os mesmos. Alguns analistas sugerem que imitemos determinados países ou importemos suas tecnologias educacionais.

Eu me incluo no grupo daqueles que não acreditam nesse tipo de solução e que preferem apostar na capacidade de invenção e criatividade das escolas brasileiras. O acontecimento registrado nesse fim de semana em Sergipe é um atestado de que há professores e estudantes desenvolvendo atividades de pesquisa e ensino/aprendizagem de alto valor, que necessitam ser levadas ao conhecimento da população sergipana para que esta consiga enxergar as coisas boas que são produzidas no estado.

Na última sexta feira, 5 de março, aconteceu a premiação da CIENART VIRTUAL (https://cienart-virtual.academico.ufs.br). A Feira Cientifica de Sergipe – CIENART ocorre anualmente, no mês de outubro, junto com as comemorações da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. É uma feira de ciências promovida em parceria pela Associação Sergipana de Ciência (ASCi), Universidade Federal de Sergipe (UFS), com o apoio do CNPq, da FAPITEC/SE e da SEDUC.

O evento consiste na apresentação de trabalhos de pesquisa que são desenvolvidos durante o ano por estudantes da educação básica das redes pública e privada, sob a orientação dos professores cadastrados. No correr do ano, a CIENART oferece oficinas e cursos, ministrados por especialistas das diversas áreas do conhecimento, que visam orientar a organização e a apresentação dos trabalhos. Além disso, publica os melhores trabalhos na Revista Feira de Ciências e Cultura.

No ano passado, as reuniões presenciais foram proibidas por causa da pandemia da COVID 19 e a CIENART não pode ser realizada na forma tradicional. Por isso, os organizadores decidiram transformar o evento numa reunião virtual, que só foi realizada agora de 28 de fevereiro a 6 de março.

Tendo em vista que a realização de um evento desse tipo na forma virtual é ainda mais difícil do que no modo presencial, podemos afirmar que a realização desse evento é uma demonstração de capacidade, de resistência e de criatividade dos cientistas, professores e estudantes do nosso estado. O que era para ser uma reunião presencial foi transformada em reunião virtual, sem perder a qualidade.

A CINEART VIRTUAL contou com 61 trabalhos de diversas áreas de conhecimento, provenientes de escolas de todas as regiões do estado. Tivemos trabalhos que trataram de preservação ambiental, de ensino de matemática, da construção de laboratórios, de literatura e de teatro. São trabalhos teóricos e experimentais que podem, inclusive, gerar patentes.

Essa diversidade pode ser atestada pela análise dos três primeiros lugares da categoria Ciência e Tecnologia, quando verificamos que o ganhador do terceiro lugar Físico e Educador foi o projeto - RIACHO DAS LAGES: ENTRE O MISTICISMO E A CIÊNCIA, realizado pelo Colégio Estadual Monsenhor Olímpio Campos, do município de Itabaianinha. O segundo lugar foi obtido pelo projeto – PRODUÇÃO DE PAPEL ARTESANAL A PARTIR DE FIBRA DE BANANEIRA, apresentado pelo Colégio estadual Leandro Maciel, do município de Rosário do Catete. E o primeiro lugar foi obtido pelo projeto – POTENCIAL DE APLICAÇÃO DO BIOGÁS PARA CONVERSÃO DE ENERGIA DE COZIMENTO, realizado pelo Centro de Excelência Hamilton Alves Rocha, do município de São Cristóvão.

Fiquei muito bem impressionado com a qualidade dos projetos apresentados e com a desenvoltura dos estudantes apresentadores. Vendo aquelas apresentações, fiquei esperançoso a respeito do futuro científico do nosso estado.

Cada um daqueles projetos é uma semente para o desenvolvimento de futuros grupos de pesquisa e uma contribuição da ciência para melhoria da educação básica no nosso país. Vale a pena apostar na capacidade e no entusiasmo desses estudantes e professores.

 

 

*Físico, professor, doutor em Física, foi reitor da Universidade Federal de Sergipe, secretário de Estado da Educação de Sergipe e presidente do Conselho Nacional de Educação. É membro da Academia Sergipana de Educação.

sexta-feira, 5 de março de 2021

FROUXIDÃO


  

 

José Lima Santana*

 

 

Cardosinho de Zé Timbira foi dormir depois da meia-noite. Tinha passado um tempão acocorado na calçada, cismando, mirando a lua cheia que se derramava no céu com sua cara gorda. Seus raios desciam sobre o terreiro, sobre a estrada, sobre o mundo, onde era noite.

Tia Suzana, aparentada com o povo do Chapadão dos Caboclos, lugar de mistura de negros com índios, dizia que os raios da lua cheia eram os cabelos prateados de uma moça morta pelo namorado ciumento.

O filho mais velho de Zé Timbira estava apaixonado. Mas, não era ciumento. Também, nem o podia ser. Era paixão recolhida, guardada no silêncio do peito. Paixão que o deixava agoniado, suspirando pelos cantos.

Flecha certeira atravessara o seu coração desprevenido. Foi um choque. Um baque igual ao de uma jaca caindo sobre a cabeça de alguém, vinda lá do galho mais alto da jaqueira. Foi de deixá-lo se arrastando pelo chão, moído, dor de barriga, daquela que pegava na ponta da costela e descia para a parte esquerda do ventre. Dor fina, também conhecida por dor de veado. Na verdade, dor desviada. Essa, a correta expressão.

Cardosinho preferiu deitar-se na rede, balançando-se para lá e para cá, ouvindo o ranger dos armadores na parede. Rram-rram-rram... O sono tinha parado nalgum canto. Não chegava aos olhos. Ah, que frouxidão! Não tinha a coragem, o ímpeto, o fogo aceso do irmão do meio, dois anos mais novo que ele, mas já de namoro na porta de “seu” Domício Venta de Mergulho. Namorava a caçula dele, Celinha, moça prendada, porém, esquisitinha.

A dele, não era esquisita nem nada. Era uma flor de mandacaru, de bochechas avermelhadas, olhos da cor das águas plácidas do riacho Marmeleiro, assentadas depois das cheias do inverno. Azuis claros. Duas pedras preciosas, que ele nem sabia o nome. Só sabia que eram lindos de endoidecer um-qualquer. Ah, que sorriso de abrir as portas do céu! Não havia quengo que não girasse, que não ficasse perturbado diante de tamanha formosura.

Ele era um sujeito desmedidamente trabalhador. Aos vinte e um anos, ainda não se tinha botado para moça nenhuma com propósito de namoro sério. Andara, aos dezoito anos, querendo arrastar asas para uma prima, mas recolheu-se. Não, não seria aquela a andar de salto alto no seu coração.

Afora isso, uns ligeiros chamegos sem futuro com duas colegas da escola. Nuvens passageiras, portadoras de chuviscos. Nada mais. Na verdade, Cardosinho vivia para o trabalho. Tinha, há um ano e meio, um bom emprego, na agência de coleta do IBGE. Emprego federal. Passara no concurso em terceiro lugar, em todo o Estado. Nível médio. Seguro, diferente dos dois irmãos, já fazia o seu pé-de-meia.

Rram-rram-rram... A música dos armadores não lhe incomodava. Bocejou. Enfim, o sono parecia aproximar-se. Quisesse Deus! Nos próximos três dias, haveria a preparação para o Censo Econômico. Dados e mais dados a serem coletados. Ele ajudaria a instruir os recenseadores.

Um galo rouco cantou por perto. Dois outros responderam com gargantas mais afiadas. Outros mais reverberaram adiante e assim os galos foram tecendo uma serenata galinácea, naquela noite de lua. Ah, noite endoidecedora!

Lá para as tantas da madrugada, enfim, Cardosinho tirou um cochilo. Manhãzinha, Dona Marieta bateu de leve na porta do quarto do filho, como fazia com os outros. “Tô acordado, mãe!”. Mais um dia de labuta. Mais um dia para ser flagrado cismando, olhos perdidos na distância sem fim que somente os enamorados conheciam.

“João Cardoso, o senhor está no mundo da lua?”, perguntava, de vez em quando, o chefe Oliveira. Sim, estava, sim, no mundo da lua. Não era raro. O pensamento voltado para Maria Clara. Nunca trocaram uma palavra sequer. Todavia, bastou um sorriso, que nem fora endereçado a ele, para o coração ser mortalmente ferido. Oh, desgraçada agonia!

Na cidade, todo mundo sabia que Maria Clara era pretendida por dez em cada dez rapazes de juízo ou sem juízo. Até o médico da cidade, há pouco tempo formado, já manifestara pretensões e desejos. Cobiçada, a moça parecia sem pressa de fazer uma escolha.

Dezoito anos. Com pretensão de continuar os estudos, na capital, no ano vindouro. Queria ser professora diplomada. Pedagogia. Desde os doze anos, ajudava os irmãos e vizinhos menores, nas lições. Tinha tino para o magistério.

Antes do sorriso, naquela tarde de sábado, há quatro semanas, na casa do chefe Oliveira, aniversário de Solange, filha do chefe, Cardosinho jamais atentara bem para Maria Clara, embora a moça fosse quase sua vizinha. Moravam na mesma rua, passando oito ou dez casas, um do outro.

Ela lhe parecia inacessível. Mas, naquela tarde, os olhos azuis como as águas do riacho, fizeram-no suspirar. Faltava coragem para lhe dirigir a palavra. Para dizer o que lhe ia n’alma. Ora, era só desencantar as palavras. Temia um “não”? O mundo desabaria sobre a sua cabeça? Era possível. Um coração apaixonado, derrubava qualquer um, quando o “sim” acalentado não vinha. Que frouxidão! Uma pergunta, umas palavrinhas. Nada mais. O problema era, sim, o temor da resposta, se negativa fosse. Frouxidão.

O ponto do ônibus, que diariamente transportava os habitantes da cidade para a capital, ficava na Praça da Independência, onde se situava a agência de coleta. Na terça-feira, por volta das cinco e pouco da tarde, Cardosinho deixou o trabalho e atravessou a Praça. O ônibus do Expresso Eldorado acabara de encostar no ponto.

Pessoas descendo, pessoas esperando. Algazarra. Cumprimentos. Abraços. O coração do agente de coleta parou, disparou, parou, disparou. Pressão arterial descontrolada. Maria Clara atirou-se nos braços de um rapaz moreno, de porte atlético, muito bem vestido, vivaz, alegre como um assanhaço comendo mamão, manhã cedinho.

Pequena mala na mão esquerda, a mão direita colada na mão esquerda de Maria Clara, o rapaz parecia brilhar mais que o sol prestes a explodir no crepúsculo. Pobre Cardosinho, apaixonado!

Como sofrem os platonicamente apaixonados! Como o sangue gelava nas veias, em diversas situações, como naquela! Maria Clara atirada nos braços de um rapaz, antes nunca visto por Cardosinho. Sim, devia ser o namorado. Ela tinha passado as férias na capital, no mês anterior, na casa dos avós maternos. Por certo, arranjara um namorado. Ali estava o sujeito.

Naquela noite, os armadores da rede rangeram sem parar. Rram-rram-rram... No escuro do quarto, um tanto quebrado por um raio de luar, a forçar entrada por uma fresta, os olhos de Cardosinho marejaram. Frouxidão! As faces avermelhadas como flor de mandacaru de Maria Clara já tinham dono.

Rram-rram-rram... A ponta da costela voltou a doer. A dor desceu para o lado esquerdo da barriga. Mais forte que nunca. Um acesso de vômito. Mal deu tempo para chegar ao banheiro. Maria Clara era a flor desejada, mas que se despetalara aos seus pés, tomada por outro. Frouxidão.

Pela manhã, a mesa posta, Dona Marieta disse que mais tarde iria à casa de Dona Rosa Veiga, para conhecer o irmão mais novo dela, que tinha chegado no ônibus da tarde anterior. Dona Rosa era a mãe de Maria Clara. Coração aos baques, Cardosinho suspirou.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...