sábado, 29 de agosto de 2020

O CANGACEIRO


 

 

 

José Lima Santana*

 

 

O cangaceiro olhou para a casa de janela aberta. O bando passava a passo lento, entrando no povoado miserável, xexelento, de casas de taipa e gente de pés no chão. Na janela, uma mocinha, que não devia ter mais do que quinze ou dezesseis anos de idade. Ela não parecia assustada com aqueles homens mal-encarados, bem montados, com roupas cobertas de poeira. Fuzis a tiracolo, punhais atravessados na cintura.

O bando vinha de um tiroteio, na fronteira do estado vizinho. Alguns macacos mortos. Dois cangaceiros mortos e um ferido, carregado numa rede dependurada nos arcos de duas selas. Hemorragia. Ferimento na barriga. Era o irmão caçula do cangaceiro que olhara para a janela, onde Mariinha estava coberta de inocência e, talvez, desejo. “Capitão, naquela casa, ali atrás, à direita, tem uma moça na janela. Deixe eu levar Tiro Certo para lá. Quem sabe, Nosso Senhor dá um valimento pelas mãos daquela moça”, disse Adalberto Rompe Cerco, o lugar-tenente do chefe dos cangaceiros. O capitão assentiu com a cabeça. E disse: “Faça como tu me pede”!

Rompe Cerco dirigiu ordens aos dois companheiros que conduziam, na rede, o irmão ferido. Voltaram. Adalberto dirigiu-se à mocinha, que não tinha arredado pé da janela: “Boas tardes, dona moça. Tem mais gente em casa? Este aqui na rede é meu irmão. Tá ferido. Precisa das mão dum anjo pra vê s’incontra um valimento de cura”.

Mariinha estava só em casa. A mãe fora a um povoado distante, ajudar uma parenta com dor de menino. Moravam sozinhas. O pai e os dois irmãos tinham arribado para o sul, um ano antes, procurando cavar a vida na terra estranha. Um dia, mandariam buscar as duas. No sertão, cavava-se a vida e a morte.

A moça não se fez de rogada. Ofereceu seus préstimos. O cangaceiro ferido foi levado para o interior da casa. Deitaram-no na rede, no chão de terra batida. Mariinha rasgou a camisa ensopada de sangue. Franziu a testa: “Parece mal. Mas, Deus tudo pode”. Dito isso, mergulhou no interior da casa e voltou com uma bacia d’água, panos limpos, uma faca de ponta e um alicate. Retornou e veio com um candeeiro aceso. Pediu que o irmão do moribundo esquentasse a faca no bico do candeeiro. Limpou a ferida. Um tiro. Adalberto Rompe Cerco admirou-se da disposição da moça, que não se intimidou diante deles – ele e os dois que transportaram Tiro Certo.

A tarde estava nos soluços derradeiros, preparando-se para ceder lugar ao negrume da noite. O sol explodia em vermelho e dourado. A mais esplendorosa de todas as mortes, na certa, era a do sol, que, tingia o espaço com as cores estonteantes, que o celestial pincel modelava. Mariinha tomou da faca. Estava acostumada a ajudar a mãe em precisões de partos. Era uma mocinha destemida.

Pediu que os três segurassem os braços e as pernas do ferido, que gemia gemidos soluçantes. Por sorte, a perfuração era quase rasa. O gibão de couro devia ter amortecido o impacto da bala. O problema era que tinha perdido muito sangue. O cangaceirinho, mais ou menos da sua idade, estava mais branco do que uma vela. Ela também estava acostumada a castrar frangos e bacorinhos, serviço que, desde doze anos, fazia melhor do que os dois irmãos, causando admiração ao pai.

Com cuidado, fez a faca penetrar na ferida. O cangaceiro soltou um gemido grosso, como um berro. Ela parou. Mas, pouco esperou. Tornou a enfiar a ponta da faca, aquecida na chama do candeeiro. Topou no projétil. O rapaz estremeceu. Ela pediu para o irmão do ferido esquentar o alicate. Feito isso, fez o alicate penetrar na ferida. Não deu muito custo, e eis a bala de revólver extraída. A cirurgiã de ocasião lavou o ferimento. Fez uma compressa e uma faixa. Exclamou, enxugando o suor da testa: “Agora, é esperar por Deus”!

Os cangaceiros precisavam tocar o caminho. O rapaz ferido ficaria. Não havia perigo de perseguição dos macacos, pois estavam em outro estado, no qual não haviam ainda tido ou dado trabalho. Rompe Cerco estava agradecido. Orientou a mocinha a encontrar alguém, para ficar com ela e o ferido, pois a sua honra não deveria ser atacada, por abrigar um homem em sua casa, estando sozinha. Deixou dinheiro, para alguma necessidade.

O bando partiu. Rompe Cerco seguiu com um rebuliço no coração. Estaria maluquecendo? Ao passar o alicate esquentado, sentiu o toque da mão da mocinha na sua mão. Demorou um átimo, mas pareceu uma eternidade. Teria sido de propósito? Um engraçamento? Pareceu-lhe que sim. Nunca tinha sentido nada parecido, antes. Teria que voltar, pelo irmão ferido e por ela.

À noite, amoitados na caatinga, sentiu cólicas e acesso de vômito. O pensamento voltado para Mariinha. Seria sua. Seria a primeira mulher num bando de cangaceiros. Seria sua, e de mais ninguém. Jurou pelo Padim Ciço. Logo, a sua família seria formada por ela e seu irmão, a quem deveria cuidar, tão moço que ainda era.

Passadas seis semanas, numa boquinha da noite Rompe Cerco voltou ao povoado. Sem a costumeira indumentária, para não chamar a atenção. Precisava saber do irmão. Precisava rever a sua pretendida. Ah, o olhar dela, quando o bando passou em frente à sua casa...! O olhar da mocinha foi direto no seu olhar. Achou mesmo ter percebido um sorriso, que seria para ele. Naquele instante, brotou um alvoroço no seu coração de homem embrutecido.

Não ousou dizer nada, por ora, ao capitão, mas a levaria consigo, junto com o irmão, se curado estivesse. O único irmão, já que os três outros tinham tombado no cangaço, anos antes. O cangaceiro apeou do cavalo. A porta da casa estava aberta. “Ô de casa”! De dentro, a resposta: “Ô de fora”! A mãe de Mariinha acudiu ao chamado. O visitante se identificou. Ela chamou pela filha, que estava ainda mais bela. Um sorriso de flor aberta iluminou o seu rosto ao vê-lo. Ele não teve dúvida: ela era sua. Mariinha gritou: “Roberto, teu irmão tá’qui”!

Adalberto Rompe Cerco recebeu o abraço do irmão, que estava bem. Quando se desenlaçaram, o rapaz segurou a mão de Mariinha e disse: “Mano, eu vou largar essa vida do cangaço. Encontrei a mulé da minha vida”. Adalberto amarelou. O sangue lhe fugiu das veias. Caçou chão sob os pés e não achou. De chofre, avermelhou. O sangue voltou. Quente. Uma fornalha parecia lhe queimar o corpo inteiro. Não perderia a sua mulher para homem nenhum, nem mesmo para o irmão caçula, único ainda vivo. Desaforo daquele tamanho, homem nenhum suportaria. A moça seria sua ou de ninguém. Lavaria a sua honra com o seu próprio sangue, o sangue do seu irmão. Sacou do parabélum e grunhiu: “Ela é minha”! Mariinha pôs-se diante de Roberto, o primeiro rapaz por quem ela se engraçou, e, abrindo os braços, disse: “Deixe disso, Adalberto. Roberto e eu, a gente tem um destino. Se tu quer matar, mate os dois”. Rompe Cerco levantou a mão, segurando a arma com firmeza. Lá fora, o Saci, ave cuculiforme do sertão (Tapera naevia), tida, na voz do povo, como agourenta, cantou: “Buraco feito”! “Buraco feito”! A mãe de Mariinha suplicou: “Valei-me, meu bom Jesus”! Na sua mão, a luz do candeeiro bruxuleava.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Sergipana de Letras Jurídicas, Academia Dorense de Letras, Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.   


domingo, 23 de agosto de 2020

ADEUS AO AMIGO RAYMUNDO JULIANO

 

 

 

Antonio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Aos oito anos, em plena “idade da razão”, o jovem Raymundo aprendeu, rapidamente, o conceito fundamental da filosofia existencialista sartriana, o da liberdade. Munido de uma tosca caixa de engraxate, a fim de custear o seu divertimento, iniciava a sua caminhada de trabalhador incansável nas estreitas ruas de Estância, sua terra natal. Compelido a se inventar, logo passou a vender jornais e revistas nas cidades circunvizinhas ao “Jardim de Sergipe” e, adotando o lema de “lutar para vencer”, abraçou, definitivamente, o desafiador e fascinante mundo dos negócios. O passo seguinte, ainda pré-adolescente, foi o emprego de balconista nas Lojas Esperança, onde, para a perplexidade de muitos, passou a exercer, habilmente, o dom de comerciante nato, não parando mais de conquistar fregueses e fazer amigos!

Dotado da inquietude dos vencedores e consciente de que são suas escolhas que constroem a sua essência, o jovem Raymundo, na condição de caixeiro-viajante, passa a percorrer os caminhos tortuosos e malcuidados do interior de Sergipe e Bahia, montado no lombo de um burro, levando mercadoria para novos fregueses. A luta extenua não o desanimava, pelo contrário, servia de incentivo para seguir adiante. As trilhas que outrora percorreu, procurando sempre traçar um circuito otimizado de distância entre as cidades que visitava, servia para aguçar o raciocínio matemático necessário para o sucesso nas “trilhas” do comércio.

O esforço, a coragem e a perseverança criaram as energias propulsoras para que ele montasse o seu próprio negócio. O sonho se concretizou em 1953, com a aquisição do Bar Central de Estância, constituindo, assim, em um marco de sua vida empresarial e da economia do nosso Estado. A localização privilegiada do estabelecimento e as suas ações inovadoras na distribuição de bebidas, utilizando, inclusive, veículos de tração animal, fizeram-no prosperar. O reconhecido sucesso de Raymundo, despertou, em 1960, o interesse de empresários da “Antártica” para a formalização de uma aliança, que o tornaria representante da marca, passando, assim, a erguer a maior distribuidora de bebidas de Sergipe.

Em 1970, ele se transfere para Aracaju e funda a Distribuidora de Bebidas Raymundo Juliano (DISBERJ) e, uma década após, cria o Grupo Raymundo Juliano, diversificando os negócios, passando a atuar, também, nos ramos: atacadista, concessionária de automóveis, iluminação, hotelaria, construções, posto de combustível e agronegócio. No gerenciamento deste conglomerado de empresas, que gera empregos para centenas de sergipanos, ele conta com o apoio incondicional dos filhos Ana Suely, Cynthia e Juliano César, além dos genros, nora e netos.

Nenhum império se constrói sozinho! Conforme relata Juliana, a sua primeira esposa Suéle, compreensiva, teve participação decisiva na sua estruturação financeira e na construção do seu sonho. Todavia, uma doença fatídica roubou-lhe, prematuramente, a companheira, deixando Raymundo à deriva, apesar de contar com o aconchego de seus familiares. Mas, como todo homem de sucesso precisa, também, ser aquinhoado com sorte, ele encontra mais um porto-seguro, Ana Maria, com quem se casa, passando a desfrutar da companhia na convivência cotidiana, do estímulo em todas as dificuldades e do apoio em todas as horas.

Tive o privilégio de ser médico de Raymundo Juliano por mais de duas décadas. Durante este convívio foi possível testemunhar as suas qualidades morais, espirito agregador familiar, intensa capacidade de trabalho e liderança, que lhe fez credor da admiração do povo sergipano. No dia 21 de agosto de 2020, seu coração silenciou, deixando o mundo terreno mais pobre de homens dignos e contabilizando mais uma vítima para o pedágio da Covid-19.

 

 

*Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

AS PERÍCIAS MÉDICAS DE TUNINHO CHEIRA PEIDO

 

 

 

José Lima Santana*

 

 

Ora, deu-se o ocorrido em 1974. Por que eu lembro tão bem do ano? Porque trabalhava na Prefeitura Municipal da minha cidade, aos dezenove anos de idade, no pomposo, mas pouco rendoso, cargo de diretor do departamento da fazenda do Município, equivalente, hoje, a secretário municipal de finanças.

Para se ter uma ideia de quão pouco rendoso era o cargo, ao deixá-lo, em março de 1977, eu ganhava, bruto, Cr$ 900.00 (novecentos cruzeiros), ao passo que, nomeado, após aprovação em concurso público, para o cargo de auxiliar de controle externo do Tribunal de Contas do Estado, por portaria do então presidente conselheiro Manoel Cabral Machado, meu mestre de Direitos Reais, na Faculdade de Direito da Av. Ivo do Prado, em julho daquele ano, eu passei a ganhar Cr$ 4.680,00. Mas, os 900 da Prefeitura representavam o maior vencimento de um servidor daquela municipalidade. Logo, não era rendoso, mas era, sim, grandioso para mim. O salário mínimo de março de 1977 era de Cr$ 768,00.

Pois bem, pois bem. A perícia de Antônio dos Santos, trabalhador braçal da Prefeitura, da turma de “seu” Bonifácio, velho e operoso cabo de turma, a dirigir parte do pessoal que cuidava das estradas vicinais, roçando, consertando valetas, espalhando piçarra etc., eu mesmo marquei no INPS.

Era assim naquele tempo: INPS. Ele andava cheio de dores. Pobre trabalhador de sol a sol, de chuva a chuva, como tantos outros. Vivia reclamando que não aguentava mais trabalhar, com dores nas pernas, nos braços e “nas cruz”. Socorri-me de um fiscal do INPS, “seu” Eutímio, que, prestimoso, conseguiu abreviar a data da perícia médica.

No dia marcado, lá foi o colega Antônio dos Santos, vulgo Tuninho Cheira Peido, porque diziam os seus colegas de eito, que ele tinha a mania de passar a mão no para-choque traseiro e levá-la ao nariz. Eu pessoalmente jamais o vi fazendo esse ato anti-higiênico. O carro da Prefeitura foi buscá-lo em casa, logo cedo, no Acoita Manhoso, lá para as bandas do Cruzeiro das Moças.

Para acompanhá-lo ao local da perícia, no prédio da esquina da Rua de Geru com Itabaianinha, foi a porteira da Prefeitura, Maria Nicolina de Menezes, filha de Januário Bispo de Menezes, oficial de justiça que, em dezembro de 1931, recebeu o encargo de intimar Lampião, em face do assassinato de Elpídio José dos Santos, morto com requintes de crueldade pelo bando do afamado cangaceiro, na madrugada de 16 de outubro de 1930, na fazenda Candeal.

Naquele tempo, Dores era Termo da Comarca de Capela. Apenas para informar, a denúncia contra Lampião foi lavrada pelo adjunto da Promotoria, cidadão Artur Dias de Andrade, pai de José Barreto de Andrade, da loja “A Suprema”, já falecido. O juiz municipal do Termo era Nicanor Oliveira Leal e o titular do Ministério Público era Joel Macieira Aguiar. Ambos acabariam desembargadores.

E lá se foram Nicolina e Tuninho à capital, numa manhã chuvosa. Na época, ainda não havia asfalto da BR-101 para Dores, que só viria no ano seguinte, no segundo governo do Dr. José Rolemberg Leite. A estrada de rodagem era muito ruim de Dores para Maruim, passando por Siriri e Divina Pastora.

No caminho havia a ladeira dos Cinco Paus, temida pelos viajantes, local da ocorrência de vários acidentes, especialmente de caminhões. Faltar freio naquela ladeira, era fatal. E isso ocorria com certa frequência, porque os veículos tinham deficiências de fábrica ou porque não recebiam a devida manutenção.

Nicolina, que chamávamos de Nicola, só viajava de terço na mão, o trajeto todo. Não sei o que aconteceu com Tuninho diante do perito médico. O que ele revelou foi que o médico o auscultou e, segundo suas próprias palavras, “fincou o dedão na minha barriga, na minha caixa dos peitos e nas minhas costas”. E mais: “Perguntou se doía aqui e ali, mas eu disse que não”. Pronto. Estranho, pois naquele dia, nada doía.

O perito mandou que ele aguardasse em casa uma carta do INPS. A carta chegou duas semanas depois, pelas mãos do carteiro Germínio de “seu” Juviano. Negada a pretensão de Tuninho, para “se encostar”. Decepção. Pobre homem, que continuaria no eito, na labuta semanal, sofrendo com dores, tomando pitadas do mal-cheiroso. Putz!

As reclamações de Tuninho continuaram. Eram dores e mais dores. Chegava a não ir ao trabalho, algumas vezes. Um colega dizia que ele tinha era “mais preguiça do que uma preguiça de verdade”. Palavras de Zé Labisone, assim mesmo pronunciado, tido e havido, este, sim, como um contumaz preguiçoso.

“Seu” Bonifácio, preocupado, informava ao prefeito Paulo Garcia que a situação de Tuninho era cada vez pior. Faltava, e quando ia, pouco rendia no serviço. Seria preciso dar um jeito de “encostar” Tuninho. Passados uns meses, eis “seu” Eutímio de volta para auditar a Prefeitura, analisando as folhas de pagamento, os recibos de prestação de serviços de terceiros e os recolhimentos ao INPS.

Tornei a falar com ele sobre Tuninho. Pelo tempo decorrido, ele já poderia retornar à perícia médica. Foi marcada. Dessa vez, quem acompanhou Tuninho foi Marilene, também nossa colega. Ela, porém, avisou: “Como esse peste disse que não reclamou de dor nenhuma ao médico, e, por isso, a perícia não deu em nada, eu vou dar umas porradas nele, antes dele entrar no consultório do doutor. Só assim, ele vai gemer quando o doutor tocar o dedo nele e a perícia vai dar positiva”.

Não sei se ela deu as prometidas porradas. Não lhe perguntei. Mas, presumo que não. Claro que não. O certo mesmo foi que, dias depois – oh, glória! –, chegou a informação de que Tuninho Cheira Peido estava “encostado”. Com porradas ou sem porradas. Seis meses depois, ei-lo devidamente aposentado por incapacidade para o trabalho.

Não demorou muito e acabou morrendo da coisa braba, da doença que, muitos se escusavam de pronunciar o temível nome: câncer. Nos ossos. Ajudei a viúva, Maria Angélica, a pleitear a pensão para si e para os oito filhos, quase todos de cobrir com um cesto.

Na cova de sete palmos de Antônio dos Santos, no cemitério municipal, alguém escreveu uma troça. Na cruz, até então sem inscrição, passou a constar o seguinte epitáfio, em letras miúdas: “Aki Discansa Tunio Xêra Chão”.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


domingo, 16 de agosto de 2020

SE BEM NÃO FIZER, MAL É QUE NÃO FAZ

 


  

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Este adágio popular tem sido muito utilizado, atualmente, na pandemia da Covid-19. Como todo dito popular, ele procura transmitir conhecimentos comuns sobre situações que vivenciamos no cotidiano. Vale ressaltar, todavia, que estes provérbios não necessariamente estão alinhados com o paradigma científico. Puro empirismo. 

Esse cenário dantesco promovido pelo vírus SARS-CoV-2, deixando a população em pânico, curiosamente, tem se repetido a cada cem anos. Assim, em 1720, ocorreu Grande Peste de Marselha, matando mais de 100 mil pessoas, na cidade francesa. Em 1820, foi a vez da primeira pandemia de Cólera, em algum lugar da Ásia, causando, também, cerca de 100.000 mortes. Já em 1920, ocorreu uma das pandemias mais implacáveis, a Gripe Espanhola, que infectou cerca de meio bilhão de pessoas e matou 100 milhões, tornando-se, portanto, a pandemia mais mortal da humanidade, registrada oficialmente. A história tem nos ensinado, ainda, que a situação de anormalidade social, causada por estes agentes infecciosos, infelizmente, não desaparece em meses. Enquanto ela perdura, o medo de contrair a doença leva muitas pessoas a adotarem condutas, algumas das quais, sem o necessário lastro científico, visando à almejada proteção.

Como a sonhada vacina, específica contra o novo coronavírus, talvez só esteja disponível para o uso populacional no próximo ano, inúmeros medicamentos têm sido utilizados, com a perspectiva de proteção contra a Covid-19, a exemplo da Vitamina D, do Zinco e até do vermífugo Ivermectina, com a premissa de que “não faz mal”, mesmo sem a comprovação de “que faz bem”! É oportuno salientar que, apesar do conceito da bioética de primum non nocere, termo latino que significa "primeiro, não prejudicar", na prática clínica, a prescrição deve, sempre, ser norteada pela argumentação de eficácia e não pela segurança. Na investigação clínica, o poder de um estudo e, consequentemente, o tamanho amostral, é calculado para a eficácia da droga e, secundariamente, para a segurança da mesma. Portanto, na ausência de benefício, usar o argumento da ausência de risco, para a utilização de determinada droga, fere a racionalidade do pensamento clínico.

Por outro lado, toda conduta médica é passível de provocar a ocorrência de consequências não propositais, entre as quais os efeitos colaterais da droga utilizada. De tal forma que, a chance de um dos múltiplos e desconhecidos efeitos indesejáveis acontecer, é maior do que o único que se espera da droga que é o de mitigar a doença ou os seus efeitos.

Até o momento, nenhuma droga passou pelo crivo de um estudo robusto, portanto, não existe comprovação científica para o uso profilático de tais medicamentos. Dessa maneira, recomenda-se a adoção de medidas preventivas, comprovadamente eficazes, tais como: o distanciamento social, o uso de máscaras para os deslocamentos necessários, a higiene rigorosa e constante das mãos, o isolamento dos contaminados por 14 dias e a quarentena dos contactantes, por igual período.

Por fim, concluo que, mesmo nos tempos difíceis de pandemias, cabe ao paciente, orientado por seu médico, seguir o melhor caminho, escolhido, racionalmente. Muitas vezes, não usar medicação, constitui a melhor opção, porque, segundo o médico e físico do século XVI, o famoso cientista suíço, Paracelso, permite inferir que a chave para a eficácia de um medicamento está no uso de quantidades corretas: “a diferença entre remédio e veneno está na dose prescrita”.

À luz do filósofo.grego, Sócrates, “Só é útil o conhecimento que nos torna melhores.”

 

 

* Professor Titular da UFS e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.


O SÍTIO DO MEU PAI

 

 

José Lima Santana*

 

 

Eu nasci na Praça João Ventura, atual 23 de Outubro, onde meus pais foram morar, em 1954, quando se casaram. Dali, a família se mudou para um sítio, na estrada do Gonçalão. Primeiro imóvel comprado por meu pai. Perto ficavam os sítios dos irmãos do meu pai, meus tios Carivaldo e José, que chamávamos Danda.

Os três irmãos eram marchantes, assim como outros parentes, expoentes no fabrico da carne de sol, iguaria que apetece o gosto e o paladar dos dorenses. Muito perto, o barracão de João de Rita, pai do meu compadre Tonho da Copa, que comprava sebo de boi para derreter e fornecer a uma saboaria de Capela.

Nossos vizinhos de frente eram Tonho Miúdo e Dona Júlia, que meu irmão chamava de vovô e vovó. Eu chamava Dona Júlia de Dudua. Vizinho do lado direito, o velho Sinhô, sozinho. No lado esquerdo ficava o pasto de Gaspar. Adiante, os sítios do meu tio-avô Vangelo e o de “seu” Nonô, da Igreja Batista.

Descendo para o Gonçalão, as soltas de gado de “seu” Areto (Ariston Luiz dos Santos, pai do ex-prefeito Aldon da Festa do Boi) e do meu tio-avô Dadá (João Soares Santana). Descendo uma ladeira, ia-se dar no tanque e no açude da cidade. O primeiro, lugar dos homens e meninos tomarem banho e de lavar carros e cavalos. Banho com sabão de alcatrão. No segundo, as mulheres lavavam roupas, cada uma tendo a sua pedra de ensaboar, mas, também, lugar, depois do Trampolim, de lavar fatos de bois, a chamada “Fateira”.

Que tempo o da minha infância até os sete anos, naquele sítio, que não era somente um simples sítio! Ali, além da casa de morada, papai tinha o curral de abater gado e a salgadeira, anexa à casa. No curral, parentes e amigos abatiam os seus bois. Ninguém pagava nada pelo uso do curral. Tinha dias que o cheiro forte de sangue ressecado empesteava a casa, ao soprar do vento.

Havia, porém, algo positivo: a doença que matava galinhas, e que se chamava murrinha, não chegava lá em casa. Morriam galinhas em toda a redondeza, mas não no sítio da gente. Diziam que era porque as nossas se alimentavam do sangue dos bois, derramado na matança. Vai-se saber! O certo é que a murrinha não encontrava guarida lá em casa. Sorte nossa. E, sobretudo, das galinhas.

Quando alguma vaca dava leite, era uma festa para os dois neguinhos, eu e meu irmão Neném, acompanhar papai ao ato da ordenha, que se dava debaixo de uma sucupira, no lado direito da casa. Vaca amarrada e apeada, tetas lavadas, o leite descia borbulhando na tigela grande de estanho, dali para o vaso. Ah, um copo de leite cru, morninho de dar gosto, ali mesmo!

Vivíamos, eu e meu irmão, soltos no sitio. Muitas vezes, nós o percorríamos em busca de ninhos cheios de ovos que as galinhas botavam pelos matos. Não raro, quando cobras ou saruês não devoravam os ovos, algumas galinhas apareciam com suas ninhadas, pois chocavam nos ninhos que nós não descobríamos. Fartura de ovos, que mamãe distribuía com a parentela.

Entre agosto e setembro, mamãe vendia gordos capões, frangos e um bacorinho, a fim de comprar os tecidos para as roupas das festas do fim do ano: festa da Padroeira, em setembro, Natal e Ano Novo. Roupas confeccionadas pelas costureiras dona Elvira e Sila de João Nogueira.

Nunca se podia repetir uma roupa numa daquelas três festas. Embora a família fosse pobre, mamãe era zelosa. A roupa para a festa da Padroeira, ou seja, para a procissão, no domingo, era especial, geralmente um terninho de linho, calça curta, camisinha branca, tudo bem engomado, gravatinha borboleta, e lá íamos nós acompanhar a bela imagem de Nossa Senhora das Dores, percorrendo as principais ruas da cidade, com as beatas se esguelando no hino que Edilberto Andrade compôs.

Festas esperadas pela meninada eram mesmo as feirinhas do Natal e do Ano Novo. A Praça da Matriz cheia de gente. Íamos à tarde, com mamãe, uma tia ou uma prima mais velha, nos dias 24, 25, 31 e 1º. Para cada tarde, uma roupa. Os barcos de mestre Pedrinho e “seu” Lió, a onda, de Zezé da Noturna, a sombrinha de Roque, o balanço de Tonho do Bode, o carrossel de Alvino Bororô. Ah, eu gostava do carrossel! Montar nos cavalinhos, dando voltas. As bancas de doces. Doceiras? Dona Rosa de Artur, Dona Delfina, Dona Neném de Alípio, Dona Perolina de Izídio. Saquaremas, manauês de milho, puba, arroz e macaxeira, cocada branca e preta, cocada-puxa, confeitos de castanha de caju em cestinhas coloridas. As barracas de comida, via de regra, de arroz com galinha, para quem jantava na Praça.

No sítio, aos sábados à tarde, papai espelhava as mantas de carne, estendidas num varal (paus com cerca de quatro, cinco metros de comprimento, com uma espessura de uns vinte centímetros, em madeira de lei). Limpar a carne, retirando as pelancas, dando um banho de tutano de mocotó, derretido. As mantas de carne ficavam expostas ao sol por cerca de uma hora, escorrendo a salmoura, tomando cor. É por isso que se chama carne de sol. Jamais do sol, como a gente encontra no menu de alguns restaurantes. Eu fico danado da vida quando leio isso nalgum cardápio. Nunca peço, pois não vou comer um pedaço do astro-rei.

Atenção: apenas uma sugestão, para quem faz carne de sol em casa. Aliás, muita gente faz carne salgada, mas não de sol. Porque, simplesmente, salga, põe num vasilhame e não a espelha ao sol. Quem faz assim, experimente comprar um mocotó, tire o tutano, derreta e banhe a carne exposta ao sol. Se preferir, e gostar, salpique a carne com pimenta do reino, sem exagero. Vai ficar uma delícia por demais. Só para quem gostar de pimenta do reino. Depois, se tiver um bom braseiro, leve ao espeto. Não esqueça de fazer um delicioso molho com vinagre orgânico de maçã, óleo de girassol ou canola, cebola roxa, coentro, e pimenta malagueta, quem gostar, ou sem pimenta. Acompanhamento? O do gosto: uma boa farofa d’água, ou, simplesmente, uma cerveja mais do que suada. E de preferência, chame os amigos.

Aos sete anos, nós deixamos o sítio. Papai o vendeu e comprou a casa onde eu moro até hoje, na estrada da Caiçara, atual Rua Gilberto Amado, denominação por mim escolhida quando o subúrbio virou bairro, por decisão da Câmara Municipal. Saudades do sítio. Saudades da minha infância. Saudades do meu pai, que se foi aos 45 anos. Infarto fulminante, enquanto dormia. Meu pai orgulhava-se porque eu seria advogado, e queria que eu fosse escritor. Faleceu quando eu estava iniciando o terceiro ano do curso de Direito e dez anos antes da publicação do meu primeiro livro. Entre autor e coautor, já são treze livros. Mas, estou em dívida com papai: ele queria que eu escrevesse cordel.

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

PROGNÓSTICO DA COVID-19

 



 

 

Antônio Carlos Sobral Sousa*

 

 

Ainda não conseguimos superar a devastadora “onda” da Covid-19, causada pelo contagioso vírus SARS-CoV-2, que tem sobrecarregado os sistemas de saúde, estrangulado a economia e ceifado, impiedosamente, vidas. Os reconhecidos esforços, desprendidos pelas sociedades médicas e científicas, esbarram na ausência de medicamentos específicos, nas desinformações promovidas pelas Fakes Coronavírus e, na indisponibilidade, ainda, da almejada vacina.

Na esteira dessa pandemia, têm-se constatado que, certas comorbidades tornam os seus portadores mais vulneráveis a desfechos desfavoráveis. Este grupo de risco é constituído pelos idosos, os obesos e àqueles portadores de hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares, doença pulmonar obstrutiva crônica, câncer e insuficiência renal.

Até o momento, não se conhece, totalmente, os mecanismos do aumento de risco na referida população. Todavia, observações procedentes de Wuhan, China, onde tudo começou, dão conta de que a letalidade da Covid-19 (total de mortes, dividido pelo total de positivos) entre aqueles com doenças subjacentes foi de 10,5%, comparativamente a 2,3% dos não pertencentes ao chamado grupo de risco. Ao que parece, idosos e pessoas com as referidas condições médicas, são mais suscetíveis às complicações relacionadas à infecção, por causa de deficiência do sistema imunológico e por apresentarem maior propensão a desenvolver infecções bacterianas secundárias. Acredita-se, também, que tanto a infecção viral, como as patologias do grupo de risco compartilham mecanismos fisiopatológicos, responsáveis por favorecerem o aparecimento das complicações.

Portanto, nesta fase em que várias cidades já começam a adotar a flexibilização do isolamento, clamada pela queda econômica, os que compõem o grupo de risco só devem abandonar as suas trincheiras para atividades essenciais. Devem, ainda, não se descuidar das vacinações recomendadas, do uso das suas medicações habituais e das medidas essenciais de prevenção: alimentação e hidratação adequadas; pratica de exercícios físicos regulares, mesmo em casa; uso de máscaras para eventuais deslocamentos e, fazer higiene, sobretudo, das mãos. Vale ressaltar, ainda, que se apresentar queixas cardiovasculares, procurar a segurança do atendimento médico.

 

 

* Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe e Membro das Academias Sergipanas de Medicina, de Letras e de Educação.

                          


domingo, 9 de agosto de 2020

O MATADOR

 

José Lima Santana*

 

 

Manuelão de Zé Timbira do finado Afonso de Miguelin. Eis o nome. Manuelzão era fruto do cruzamento de brancos, negros e índios. Na pele, uma mistura de cores, no sangue uma mistura de gênios bons e maus. Viúvo sem filhos, ainda muito novo decidiu fazer rancho na Serra do Tabuleiro Grande, depois do Alecrim de Cima, da Mata Verde, da Caatinga Amarela e das Timbiras, lugar de sua família. Isolou-se do mundo. Tinha roçado e cabras de leite.

Cidade? Depois que se refugiou na Serra, não foi por lá mais do que duas vezes. Bicho do mato. Fera nos rebuliços de encantamentos. O neto do finado Afonso de Miguelin, pelo lado paterno, e de Mané Grigório da negra Maria de Rumão Catunda, pelo lado da mãe, era muito requisitado para fazer coisas. Animal fujão ou perdido, ele o trazia de volta, apenas tocando o polegar esquerdo no rastro deixado. Livrava pastos e soltas de gado, expulsando cobras venenosas de todo tipo e tamanho, balançando na mão esquerda um pequeno chocalho, enfeitado com guizos do rabo de uma cascavel.

Por onde ele passasse tilintando o pequeno chocalho, as cobras mudavam-se de capineiras ou de capoeiras, de baixios ou de carrascos (terras ruins, pedregosas). Valho-me do testemunho bem testemunhado de Valdomiro Carrapatoso, para lhes dar nota do sucedido na fazenda Riacho Torto, comprada de novo por Antônio Jurema, bodegueiro fino em roubar nas contas de cadernetas dos fregueses descuidados.

Jurema perdeu duas vacas no mesmo lugar de beber. Picadas por cobra. Ora, sendo no mesmo lugar, era cobra vezeira, por ali entocada. Só podia ser. Manuelão de Zé Timbira correu por pastos afora, beiras de riacho, baixios e elevados, enfim, toda a fazenda do bodegueiro, que estava tendo ares de rico. Desentocou cobras jararacas, jararacuçus, corais, corres-campos e o que mais ali podia se entocar ou rastejar.

Valdomiro, cabra da minha desmedida confiança, homem sem treitas e sem tortuosas palavras, afiançou-me que viu dezenas de cobras, dezenas não, disse ele, centenas, em debandado rastejamento. O chocalho de Manuelão tinha mais poder do que muita autoridade de terno e gravata, de toga ou jaquetão. Disse-me, cruzando os dedos em sinal de veracidade de suas nunca desmentidas palavras, que uma jararacuçu malha de sapo, bicha traiçoeira que nem matador de aluguel entrincheirado numa curva, meteu-se no oco de um pé de pau seco, para fugir do furor do chocalho. Adiantou não. Na mesma horinha, desceu do céu o fogaréu de um raio, fulminando o pau seco, que ardeu até virar um amontoado de cinzas. Num átimo. E não era tempo de trovoadas. Era agosto, atolado em bom inverno.

Até matar gente, Manuelão matava, a depender da ocorrência de um caso escabroso, que merecesse a devida reparação. Matava de sopro. Nunca perdeu um. Serviço de batimento de botas, encomendado a Manuelão era garantido. O que ele dissesse, valia.

Em Monte Azul, cidadezinha pachorrenta, de casas quase caindo, de gente de pouca eira e pouquíssima beira, mas muito presunçosa, fazia morada um tal de Francisquinho Canuto, cujo nome a molecada vadia o arrastava na lama mais podre, que o diabo mexeu e deixou para trás. Diziam as línguas de fétido trapo que os dois filhos do Canuto tinham, cada um, um pai. Uma miséria! O que não eram capazes de inventar pessoas que cuidavam da vida alheia, deixando as suas vidas escondidinhas, debaixo da sujeira dos tapetes de sacos de estopa! “Raça de víboras egípcias, a matar princesas”, dizia Tonho de Malaquias Zanóio, leitor de almanaques, referindo-se a uma rainha do Egito que foi se apaixonar por uns grandolas de Roma, em tempos de há muito idos.

Línguas de trapo ou não, alguém deu com a língua nos dentes e delatou a mulher de Francisquinho, numa noite em que ele estava no costumeiro carteado, no bar de Cardosinho de Sá Bilica. “Tem urso na sua cama”, disse o delator. Mas, disse em voz alta, para todo mundo ouvir. O supostamente traído, avermelhado que era, amarelou e cinzou. Atirou na mesa as cartas do baralho, passou a mão na cintura, procurando o revólver, pois só andava armado, sob os auspícios do sargento Tonho Perneta, seu compadre, levantou-se, empertigou-se e tomou o rumo de casa. Ninguém ficou no bar. Todo mundo na rua. Haveria uma morte ou duas mortes?

Honra lavada com sangue. Tempo antigo... Não demorou muito e a cidadezinha foi sacudida por uma sequência de tiros. Cinco ou seis? Divergiam as pessoas. “Matou os dois, com certeza”, gritou uma velha de voz esganiçada. “Matou os dois, não. Matou o Ricardão. Francisquinho é caidinho pela mulher. Corno convencido é a pior peste que há”. Fala de Juca do Berimbau, soldado de polícia reformado. Matou não. Nem ele, nem ela. Francisquinho Canuto meteu bala no sofá da sala, onde encontrou a mulher em safadística conxambrança com Marcos Pé de Bode, oficial de justiça. Errou todos os disparos. “Na certa, a mão tremeu. Tem corno, que além de chifrudo, tem frouxidão nos nervos”, comentou Peixotinho de Zé Crioulo.

Ao que parecia, ficaria o dito pelo não dito, o ocorrido pelo não ocorrido. Ao que parecia. Francisquinho ficaria com a mulher que, pelo que se alardeava na cidadezinha, era um pedaço de mau caminho. Bonitona, azeitada e foguenta. Quanto ao oficial de justiça, continuaria citando e intimando os chamados em juízo.

Pela primeira vez, Francisquinho tomou tenência na vida, com relação à bonitona foguenta. Atravessou terras e foi, de rota batida, parar na Serra do Tabuleiro Grande, no pardieiro de Manuelão. Encomendar a morte de Marcos Pé de Bode. Contou o ocorrido. Falou dos filhos, que precisavam da mãe. Fez arrodeios, como se quisesse justificar os chifres. O eremita da Serra escutou, calado. Um fedorento bode pai de chiqueiro acercou-se dos dois.

Manuelão topou fazer o serviço. “Faço, sim, seu Francisquinho. Faço, sim. Mas tem uma condição, que eu digo adispois”. Trato feito. Manuelão encheu as bochechas. Das suas ventas saiu um sopro gélido, que desceu a Serra, atravessou caminhos até chegar à cidadezinha. Era noite. O oficial de justiça, desassossegador de família, estava no jantar com a esposa. Eram casados de novo. Diante dele, um prato de sopa esfumaçando. Ele sentiu um vento glacial entrar em suas narinas. Era o sopro da morte. A cabeça caiu no prato de sopa. Caiu murcha como um maracujá de fim de feira. Sentindo o alcance do serviço, Manuelão exclamou: “Seu Francisquinho o tal Pé de Bode foi encontrar o aparentado, nas profundezas do inferno. E agora, a minha condição: o senhor nunca mais vai fazer coito com sua patroa. Se fizer, morre”.

Aliviado, mas assustado com a condição que lhe fora imposta, Francisquinho voltou para casa. Nunca mais procurou a mulher para os chamegos da alcova. Passaram-se uns anos. Numa noite, o diabo atentou. Ela estava com uma camisola vermelha, transparente. O fogo consumia as entranhas do marido e ele não resistiu. Então...

 

 

*Padre, advogado, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, da Academia Dorense de Letras, da Academia Sergipana de Educação e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

BURCKHARDT E O RENASCIMENTO ITALIANO

 

 

Claudefranklin Monteiro Santos*

 

 

No primeiro semestre de 1994, na disciplina Moderna I, a Profª Drª Terezinha Oliva lançou um desafio para seus alunos: fazer a leitura, resenha e apresentação de uma obra da historiografia que discutisse um tema específico da História Moderna. Todos, naturalmente, foram escolhendo aquelas que estivessem escritas em português e que tivessem o menor número de páginas possível. Restou sobre a mesa da professora, uma massaroca de mais de 400 páginas, que ficou sob meus cuidados e responsabilidade.

Refiro-me ao livro O Renascimento Italiano, de autoria de Jacob Burckhardt. Curiosamente, ao vasculhar alguns de meus exercícios acadêmicos, me deparei com uma resenha que fiz para aquela ocasião e notei, ao relê-la que a obra está completando 160 anos da publicação de sua primeira edição. A versão a qual eu me debrucei foi de 1973, editada pela Livraria Martins Fontes e traduzida por Antônio Borges Coelho.

Die Kultur der RenaissanceenItalien: ein versuch. Este foi o título original da obra, que segue sendo uma grande referência para entender um dos maiores acontecimentos culturais e científicos da Europa, entre os séculos XV e XVI. Movimento que revolucionou não somente as artes, mas também a ciência, a filosofia e até mesmo a religião. A ênfase no humanismo e na razão deu novo ânimo e apontou novos rumos para o mundo, cujos efeitos ainda se fazem sentir em nosso tempo.

Natural da Basiléia (Suíça), no dia 25 de maio de 1818, Jacob Burckhardt doutorou-se em História, ministrando seus primeiros cursos em sua cidade natal. Viajou muito, percorrendo importantes lugares da Itália, da Alemanha e da França, onde morou por muitos anos. Foi professor de História da Arte na Escola Politécnica de Zurich. Além de O Renascimento Italiano, escreveu A Época de Constantino, o Grande (1853) e Civilização Grega (1880-90). Morreu no dia 8 de agosto de 1897, na Basiléia.

Ele viveu numa época onde a Europa atravessava um momento de discussão em torno da identidade nacional, do patriotismo e da defesa da unidade territorial, que lançou as bases para a Unificação Italiana (1870) e a para a Unificação Alemã (1871). Uma preconização dos conflitos que o mundo irá viver no século seguinte, em razão da formação de grandes impérios.

Além disso, era um final de século onde a História, enquanto conhecimento, almejava à cientificidade, sob a batuta das ideias de Ranke e a necessidade de contar a história como ela tal e qual aconteceu e se apresentou. Uma busca quase inglória pela objetividade na ciência histórica. Elementos historiográficos que ele acabou agregando às suas obras e a sua análise, com um particular: dando vasão aos aspectos culturais.

O Renascimento Italiano, de Jacob Burckhardt, é uma obra robusta e de fôlego discursivo, rica em informações e bem fundamentada. Está dividida em seis partes: 1) O Estado considerando como obra de arte; 2) Desenvolvimento do indivíduo; 3) O ressurgimento da Antiguidade; 4) A descoberta do mundo e do homem; 5) A sociabilidade e as festas; 6) Costumes e religião.

Na primeira parte, o historiador suíço dedica-se a analisar a existência da tirania nos séculos XIV e XV, que dominava o território italiano à exceção de Veneza e Florença, considerada pelo autor como o primeiro Estado Moderno. Destaca ainda a questão da guerra e seu avanço em razão das novidades tecnológicas. Por fim, analisa o papado, com destaque para o pontificado de Sisto VI.

Em seguida, na segunda parte, Burckhardt opta por uma análise mais filosófica dos fatos, mas sem abrir mão do objetivismo. A palavra-chave é o individualismo. Procurar compreender o sentido do indivíduo na Itália da época Moderna, em contraposição ao que se convencionou ser o corporativismo do Medievo; discute ainda sobre a questão da personalidade e também a zombaria do comportamento espirituoso do homem moderno, com seu humor predominantemente mordaz e às vezes até cruel.

A larga influência da Antiguidade na produção dos renascentistas será uma das tônicas da terceira parte do livro. Dedica também especial atenção a descrever a atuação de figuras como Dante, Petrarca e Boccácio, bem como dos chamados promotores do humanismo, a exemplo de Manetti e o papa Leão X, ao qual esbanja comentários e tece elogios.

A ciência é o escopo da quarta parte. Burckhardt realça duas ideias que geraram outros temas: a preocupação com o natural e com a descrição fidedigna do objeto em atenção. Nesse sentido, ressalta o desenvolvimento das ciências naturais. Para ele, aqueles tempos permitiram ao italiano abrir-se ao que ele chama de “um espírito de consciência da corporeidade humana”, que irá refletir na inserção do conceito de beleza, na sensibilidade artística e poética, enfim, no espírito italiano moderno de pintar, falar e cantar aquilo que é belo, real e natural.

Nas duas últimas partes, o autor mostra a sua versatilidade analítica de um historiador singular do final do século XIX, discorrendo sobre a sociedade e seus costumes, a situação da mulher na sociedade moderna, a vida doméstica e o cotidiano, a religião e a religiosidade, a liberdade de ser e de crer ou não crer, as festas e gosto pelo esplendor e pela pompa.

Aos historiadores do nosso tempo que perderam a mão na escrita da história, divagando e se perdendo em estruturas complexas e teorias densas que nada explicam e dizem, vale a pena uma leitura acurada e interessada de O Renascimento Italiano. A obra, além de apresentar-se como um grande legado da historiografia do século XIX, também, em grande medida dialoga com o século XXI, apontando para uma metodologia que dá conta de analisar o homem sem deixá-lo nulo e inexistente em meio a tantos floreios discursivos que dizem mais da vaidade e da arrogância de quem escreve do que da vida, do ser humano e de suas sutilezas históricas.

 

 

*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em História e membro das Academias Sergipanas de Letras e de Educação.

A IGREJA CATÓLICA NA E NO PÓS-PANDEMIA

 

 

Claudefranklin Monteiro dos Santos*

 

 

Entre as cenas mais marcantes da pandemia da COVID-19, a Igreja Católica assumiu algum protagonismo. Lembro aqui aquela imagem do papa Francisco solitário num Vaticano desolado, pranteando por seus mortos. Ou ainda, o padre italiano Giuseppe Berardelli que abriu mão de seu direito ao respirador e morreu para salvar uma pessoa mais jovem. Por outro lado, a doença também se apresenta como um chamado profético para a reflexão profunda do ser e agir cristão no século XXI e para alguns no anunciado Fim dos Tempos.

Os templos foram fechados, obras de reforma interrompidas, efemérides importantes e festas de padroeiro e outras atividades pastorais suspensas ou readaptadas, adiadas e mesmo canceladas. Ficamos distantes do Santíssimo e, curiosamente, alguns de nós mais próximos Dele. Ouvi de uma grande amiga católica que nesta pandemia, em algumas situações, a distância da instituição nos tornou mais próximos de Deus, pela oração e pela confiança.

Aliás oração e confiança marcaram a recuperação milagrosa do bispo de Pinerolo, Dom Derio Olivero, após 50 dias no hospital, em coma e praticamente desenganado pela ciência e pela medicina. “Estou vivo por um milagre”, afirmou o clérigo, que ao retornar nos apresentou uma série de reflexões que nos parecem muito oportunas e decisivas para a sobrevivência da instituição no pós-pandemia. Digo sobrevivência, porque entendo que há muito o que fazer e refazer no “novo normal”.

Dom Derio Olivero nos aponta alguns caminhos que já podem ser percorridos desde já, sem esperar uma solução para o fim da doença ou mesmo uma vacina que a mantenha sob controle. Para ele, mais do que nunca, faz-se necessário criar e reforçar uma “rede comunitária”. Nunca trabalhar e viver em comunhão e em comunidade se tornou tão imperativo na história da Igreja e da humanidade.

Além disso, a “confiança em Deus” precisa ser uma constante e uma realidade. Somente essa experiência (e não apenas louvor) nos abrirá perspectivas para além daquela que o rastro do medo e da morte deixam a cada nova estatística. Para o bispo de Pirenolo alguns verbos se tornaram muito mais caros em nossa jornada cristã durante a pandemia: confiar, se entregar, orar, crer e agir. Somente isto fará “uma mudança radical de paradigma” que supere o convencional, a mesmice dos últimos tempos, a frieza, a distância, a pompa: “Não precisamos de uma igreja que frequente a igreja, mas de uma Igreja que frequente a todos”, afirma o religioso.

Uma Igreja verdadeiramente em saída, como preconiza há algum tempo o papa Francisco. Uma Igreja que viva a “transparência” do Evangelho, uma Igreja no agir de Santa Marta, Santa Maria Madalena, de São Paulo, de São Francisco de Assis e de Santa Teresinha do Menino Jesus, só para citar alguns sinais de algum tempo já verificados no seio da instituição e que não foram ainda devidamente levados em consideração.

Uma peça de madeira envernizada é muito bonita. Um mármore talhado artisticamente, também. Mas são feitas apenas para ser conservadas, cuidadas e admiradas. A razão de ser de minha fé não tinha beleza para se admirar. Prostrado na Cruz sob o peso de nossos e de meus pecados, o Cristo vertia seu sangue sagrado por aqueles, inclusive, que o agrediam. Sua morte e sua ressurreição sugerem a Igreja que sempre deveríamos ser: que dá de si em plenitude, confiante, orante, crente, mas também aquela que deve habitar os corações dos aflitos, indo ao encontro deles e, preferencialmente, deles.

 

 

*Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em História e membro das Academias Sergipanas de Letras e de Educação.


sábado, 1 de agosto de 2020

O CONSTRUTOR JOÃO ALVES



Marlene Alves Calumby*


O Construtor João Alves João Alves veio de baixo. Fez o seu pé-de-meia empresarial com muito esforço e sacrifício. Não se vendeu nem se trocou. Não corrompeu, nem foi corrompido. Milhares de aracajuanos gozam da felicidade de possuir a sua “casinha” graças a benevolência de João ao seu estímulo, facilitando o empréstimo, os juros e, até a “entrada” para aquisição do imóvel desejado. Nunca tomou a casa de ninguém só porque atrasou o pagamento das prestações.
Era um sonhador nato. Certa vez sentado à tardinha na amurada que circunda a pequena praça no alto da colina do Santo Antônio, braço sobre os ombros do seu primogênito João Alves Filho, de braço estendido apontava pontos distantes daquele belo panorama, que ia do verde forte, que revestia a linha do horizonte como um invólucro por quilômetros, até alcançar o azul pálido do mar, lá bem distante onde a vista mal conseguia distinguir. E o garoto sonhava a certeza do pai, que garantia: “esta cidade meu filho é do mar e vai crescer muito em direção às praias”.
Foi na Rua Divina Pastora, nos idos da década 40, que João Alves começou uma atividade que iria desenvolver por mais de 50 anos em Aracaju. Construiu ali sua primeira casa e, logo em seguida, outra residência, na rua Oliveira Ribeiro. Enquanto isso, no bairro Santo Antônio, na Rua do Carmo ergueu com as próprias mãos, tendo como auxiliar de pedreiro (que era ele mesmo) D. Lourdes, cuja parceria era preciosa.
João preparava a masseira e quando o assentamento dos tijolos chegava a uma certa altura, ele subia numa pequena escada de madeira, feita por ele mesmo com caibros, enquanto sua companheira trazia a massa em pequenos baldes. D. Lourdes ajudou também na entrega dos caibros, ripas e azulejos, ripas e telhas que foram colocados na casinha do casal. E, claro, teve a comemoração tradicional da “festa” da cumeeira. Foi ali que João construiu família. A casa era simples, mas era para ele um relicário. Tudo era novo. Casinha de tijolos, com massa de cimento 3 por 1, masseira bem feita, tudo no capricho. Seria o lar da sua família. Testada de platibanda, janelão, corredor, até a sala de jantar, copa e cozinha, com os quartos na extensão do corredor. Era o luxo da simplicidade, costuma repetir.
Lembrar que era comum o veículo do DER ir até a sua casa, por ordem do Engenheiro José Rollemberg Leite (que anos depois seria governador do Estado) para as viagens que fazia pelas estradas do interior. A garotada da vizinhança e os filhos ainda pequenos ficavam alvoroçados e faziam algazarra enquanto se acercava do veículo, porque não era comum veículo circular por aquelas bandas.
O engenheiro-chefe gostava da maneira eficiente como João anotava todos os itens que seriam utilizados na realização destes ou daquele tipo de obra, estabelecendo a quantidade dos materiais e tipo dos serviços a serem feitos, registrando os dados relativos ao tempo de operações de máquinas, retroescavadeiras e tratores, como, também, o material de construção, tipo cimento, areia, água, enfim, tudo que deveria ser requisitado ao DER para ser conduzido até o local onde a operação seria realizada (recuperação de estradas, aberturas de novas estradas, pontilhões, pontes, etc.). Enquanto o funcionário do DER, serviu-lhe como base para a profissão a qual se dedicaria por mais de 50 anos: a construção civil.
Desde que começou a construir casas e residenciais em Aracaju, João adotou em sistema muito bem planejado. Com a facilidade que tinha de projetar o orçamento para casa que iria construir, inicialmente por encomenda, a construção civil sempre foi para ele um jogo de xadrez que já começava com xeque-mate devidamente traçado no seu tabuleiro mental. João era um construtor por devoção, por amor à arte.
Além de ter transformado a cidade inteira numa autentica tábua de pirulitos, pontilhando ruas, áreas e bairros com construções da sua autoria - no caso das transversais “Estádio Lourival Batista”, a partir da própria rua do Cedro, lateral do “Instituto “Parreiras Horta”, implantou um estilo moderno de “bangalôs” determinando no levantamento de mais 300 casas, um novo estilo de habitação para as famílias classe média de Aracaju.
Depois de ter começado a construir casas e a sentir que iria dedicar sua vida a essa missão, João Alves, já em 1946, registrou firma individual para dar um cunho oficial a suas atividades. Em 1953, o volume de obras realizadas, merecedora da aceitação popular, levou a construir uma firma sob a dominação de Construtora Alves LTDA – CAL, empresa que se tornaria durante meio século a principal responsável pela urbanização de Aracaju.
O envolvimento de João Alves com o progresso social, em decorrência, de estimulo à economia, foi marcado por obras que perenizaram seu pioneirismo na construção civil. Quando o Bispo de Aracaju, D. Fernando Gomes, promulgou uma campanha para retirar do centro de Aracaju núcleos e favelas que cresciam à medida que a cidade evoluía, o apoio do então governador Arnaldo Garcez foi direcionado para que João Alves participasse do grandioso programa de erradicação das favelas que contaminavam o centro da capital sergipana – dentre outros, a volumosa concentração de miséria e prostituição que, com todos seus malefícios, imperavam na região conhecida como “Ilha das Cobras”, nas proximidades da Praça Sta. Izabel, bairro Santo Antônio.
É daquela época a construção do Conjunto Residencial “Agamenon Magalhães” com mais de 200 casas populares, obediente a um modelo que atraiu as atenções de faixas da população mais abonada que, aos poucos, foi adquirindo aqueles imóveis dos seus primitivos proprietários.
A visão expansionista do Construtor João Alves não se limitou a obras subvencionadas pelo poder público – como ocorreu com o financiamento através da COHAB para construir o Conjunto Habitacional “Castelo Branco”, com 381 unidades – pois, com recurso próprios ergueu Conjunto “Amintas Garcez”, este com 500 bangalôs e o Conjunto João Alves, com 700 casas, ou, ainda, a construção de várias centenas de casas em diferente ruas e bairros de Aracaju. Qualquer espaço em qualquer lugar era o tamanho exato da febre de construção que engolfava João Alves.
Começou partindo do zero, fazendo argamassa e fixando tijolos, multiplicando tempo para alcançar resultados, marcando presença com competência. Foi nesse ritmo incessante que construiu casas em quase todas as partes de Aracaju.
O Construtor João Alves era um apaixonado por automóveis e tinha sempre um “ponta de linha” em sua garagem. Era o seu “hobby”. O carro de chapa “17-17” de propriedade do Construtor João Alves tornou-se uma verdadeira lenda em Aracaju. Mesmo quando adquiria um veículo novo, sempre conseguia manter a mesma chapa “17-17”. Sozinho ou sempre bem acompanhado, homem de muitos amores.
As incontáveis aventuras que lhe foram atribuídas, e sobre as quais nunca procurou dar explicações, levaram o seu nome a ser equiparado ao nível igual superior ao do incansável Don Juan, de lendários contos eróticos famosos em todo mundo.
Meu pai, João Alves Construtor pioneiro de uma obra transformadora de Aracaju dos primeiros anos em uma cidade moderna, interligando ruas e avenidas, em cuja extensão as centenas e centenas de casas que o empreendedorismo de sua visão única tornou possível.
Antes da implantação do Banco Nacional de Habitação pelo Governo Federal. O Construtor João Alves, com sua visão empreendedora extraordinária e humanista, criou um sistema de financiamento na sua Construtora, com centenas de clientes que tinham suas residências financiadas, por até 10 anos, com pagamentos mensais fixos. Nunca se ouviu falar de pressões por ele exercidas contra qualquer um dos adquirentes de suas moradias, por inadimplência. Costumava dizer: “mais vale o pior acordo do que a menor briga”... e, tudo se resolvia após uma breve conversa amigável.
Quando as enfermidades levaram o Construtor João Alves a buscar assistência médica, ele tomou conhecimento de situações aflitivas de doentes renais que não podiam arcar com os custos de operações de transplante que lhes salvariam a vida. Sigilosamente, ele assumiu esses encargos de vários pacientes, pessoas que sequer conhecia.
Aracaju, sob a ação progressista de sua visão empresarial especial e obstinada, antes bucólica, passou a ser uma cidade moderna, apta a se transformar numa das mais belas do Nordeste. O construtor João Alves construiu casas, teve filhos e sonhos. Nunca se deixou abater por seus problemas, se deixava conduzir por seus sonhos.
Seu mais precioso sonho se concretizou em 1965 quando seu primogênito João Alves Filho conquistou o título acadêmico de Engenheiro Civil graduado pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia. Cristalizada estava uma das suas grandes metas. Que mais posso desejar? Ter meu filho ao meu lado na Construtora Alves Ltda-CAL! E por alguns anos dividiram seu comando.
Duas características do seu pai atraíam o jovem João Alves Filho: sua atitude tranquila e seu olhar firme, independentemente da situação em que se encontrava. Ele sabia que as lições mais importantes e duradouras vêm das estradas difíceis. Seu pai não sabia falar difícil, mas tinha graduação na Universidade da Vida, era a única pessoa em sua vida que parecia ter sempre uma resposta.
Com esta certeza veio a resposta positiva e o apoio, em julho de 1970, mês de aniversário do pai e filho, nasce a HABITACIONAL CONSTRUÇÕES, um novo estilo na arte de morar. E a saga da família Alves se pereniza. Como dizia o Construtor João Alves, meu pai e ídolo, “quando descanso, carrego pedras”. Que assim seja, Deus lhe dê o descanso merecido!


*Membro da Academia Sergipana de Educação e da Academia Sergipana de Letras.

BOTARAM SAL NO DOCE DO GOVERNADOR

PÓ DE SOVACO DE MORCEGO

      José Lima Santana*     Zé Calango esbravejou diante do prefeito: “O que é que você pensa, seu cabeça de vento? Que o povo é ...